O ser ostra
Quanto mais tentamos abrir uma ostra, mais ela se fecha em seu mecanismo natural de defesa, protegendo a si mesma. Todo seu mecanismo de proteção de si mesma tem como resultado as pérolas que existem dentro de algumas delas que são formadas por aglutinação de tudo que consegue entrar dentro de si e é neutralizado por ela para que não lhe faça mal. Todavia, sem conseguir expelir o mal de dentro de si, ao se tornar cada vez maior, a pérola pode destruir a ostra.
O que as ostras fazem é o que todos os seres em sua necessidade de ser fazem. Todos os seres são ostras a se protegerem de tudo que os faça mal, neutralizando o quanto podem aquilo que consegue ultrapassar as defesas impostas por si mesmo. É uma defesa natural que acontece no seu corpo e que existe também no ser humano em processo de transformar em fezes e urina aquilo que lhe faz mal e que deve ser expulso do seu corpo para não afetar a si causando mal-estar. É também a defesa que acontece na mente e, mais profundamente, em sua alma quando afetada por algo que lhe faça mal e faz com que ela se feche cada vez mais em si mesma, retraia-se como o corpo e expila o mal por meio do esquecimento ou do pensamento que envolvem o mal em si evitando que ele lhe destrua.
Da mesma forma que são pequenos vermes, plânctons e areia que fazem formar as pérolas nas ostras não apenas em formatos arredondados perfeitamente quando elas fagocitam o que é mal também pequenas coisas afetam nosso corpo, mente e alma no nosso cotidiano as quais transformamos em pérolas expelidas ou não em algum extravasamento, por exemplo, no happy hour no fim da semana. Tais momentos são necessários se não quisermos que as pérolas cresçam dentro de nós por mais belas que sejam demonstrando com sua beleza toda a capacidade que temos em superar problemas de um modo natural, pois, do contrário, mesmo neutralizando o mal em nós morreremos se não expelirmos este mal. Mas sabemos muito bem que, diferente do nosso corpo, não é fácil expelir as merdas que atingem nossa mente e alma e, como as ostras, muitas vezes este não expelir fazem cada vez mais mal num cÃrculo vicioso como o da formação das pérolas, pois, incapazes de não conseguir expelir o mal de dentro de si, neutralizam-no o quanto podem até não poderem mais e encerrarem-se na mais profunda solidão da existência, a morte.
Ser ostra é inevitável, pois, por mais que queiramos evitar o mal e o pior dos males que é a morte, nosso corpo, mente e alma tendem a reter ele e sofrer cada vez mais com o que lhe afeta. Não importa o quão bom seja nosso sistema de defesa contra tudo que nos aflige e inflige nosso corpo, mente e alma ou simplesmente ser como foram boas as muralhas de Tebas para defendê-la até a guerra contra os gregos ou o exército espartano em sua defesa dos gregos, ou ainda, como foram todos os impérios já sucumbidos mesmo se prolongando por muito tempo. Há sempre um processo de falência do ser ostra na medida em que ele não consegue expelir o mal de dentro de si, para além de suas conchas, romper com o cÃrculo vicioso que forma suas pérolas.
Ao se pensar no ostracismo como desterro e despolitização daquele que fez mal aos cidadãos da terra em que vive e, no caso, à sua cidade (pólis), esta pena por exclusão imposta a todos os apolÃticos que não queiram contribuir para o bem da cidade de modo polÃtico como cidadão, e cuja palavra deriva de ostra (ostrakhismós, desterro, banimento, palavra formada de óstrakon, que tem forma de óstreon, ostra), podemos dizer que a cidade é também uma ostra, que há um ser-ostra da cidade, que evita que todo o mal penetre dentro de si e que, mesmo que atravesse seus territórios para lhe fazer mal por dentro, deve ser neutralizado pelas leis e banido como mal por elas. Todos aqueles que são apolÃticos, neste caso, são pessoas que não são cidadãos, pois não querem contribuir para o desenvolvimento da cidade de modo polÃtico e que podem destruÃ-la a qualquer momento, pois não estabelecem relações polÃticas nela, isto é, relações harmônicas visando o bem da cidade e são deste modo apenas indivÃduos a serem neutralizados e expelidos da cidade-ostra. Na pólis grega, quem não estabelece relações polÃticas não é consequentemente um cidadão, pois cidadão é aquele que contribui para a cidade politicamente com seu corpo desejante e sua alma pensante no que é melhor para a cidade, o que é o bem para ela.
É preciso expelir o mal, expurgá-lo e os gregos encontraram como toda civilização várias formas de fazerem isto promovendo entre eles uma catarse através de mitos, tragédias, comédias, misticismo, religião, arte, ciência e filosofia sentida em seus corpos em exercÃcios ou batalhas e vivenciada como cidadãos polÃticos através de discursos e julgamentos públicos em seus perÃodos democráticos. Se a palavra ostracismo se referia também aos cacos em forma de concha (óstrakon) nos quais se expressavam os votos no julgamento do ostracismo, que era neste caso se a cidade seria ou não uma ostra, se faria ostra contra aquele que considerava seu mal, isto demonstra que cada cidadão democraticamente devia expelir de modo público aquilo que era o mal de modo majoritário e ninguém da pólis poderia deixar de tomar esta decisão se tornando apolÃtico. Em outras palavras, por meio dos votos não apenas se decidia pelo ostracismo da cidade como neutralização do mal pelos cidadãos, mas se expelia o mal de dentro de si mesmo como cidadãos para conviverem politicamente na cidade e cada discurso devia expor o que era mal para si em relação ao que estava acontecendo buscando-se o melhor politicamente, isto é, o melhor para a pólis. Se há um desterro ou perda de direitos polÃticos que seria uma despolitização daquele que fez o mal, isto é a consequência direta da cidade se tornar ostra, de seu ostracismo que é, deste modo, um se fechar da cidade a todo mal, um recolher-se em si mesma e, não conseguindo expelir o mal de si, pelo menos neutralizá-lo. O desterro decorrente desta despolitização era uma consequência direta porque ao se tornar ostra, todo e qualquer cidadão da pólis não podia, por lei, acolher aquele que perdeu seu direito de ser cidadão, seu direito polÃtico por não seguir as leis da cidade e, sim, suas próprias leis, e ser inevitável que o desterrado politicamente saia da cidade, pois nela não encontra mais acolhida, já que quanto mais ela acolhe em si aquele que lhe faz mal mais ela tende ao seu fim na terra e isto deve ser evitado naturalmente como o ser evita o mal para si e em si mesmo.
Todo ser como toda cidade é uma ostra e somente sendo ostra ele consegue sobreviver. As pérolas que resultam do ser ostra, se são belas para o mundo, devem lembrar a todos esta lei geral a todo ser, incluindo o social, de que deve transformar todo os afetos que fazem mal em algo proveitoso para si e em si mesmo. Servem como advertências para aqueles que adentrem o ser para lhe fazer mal, mas também de convite àqueles que queiram entrar nelas tentados pelas pérolas das ostras que necessita também de que seres entrem nela para ela sobreviver, pois o mesmo processo de neutralização do mal que lhe adentra que tem como resultado a formação da pérola é também o processo de alimentação dela que se aproveita também de tudo que entra em si para sobreviver, de modo que não pode se fechar a todos os seres, como de fato não o faz. Nem tudo que adentra as ostras se tornam pérolas, e muitas delas nem produzem pérolas, e, neste caso, nem tudo é belo na perolização, pois há também um processo de atração do que ela precisa para sobreviver mesmo que possa vir a ser um mal para si como qualquer alimento para o ser humano e ela deve senão dentro de si mesma aprender a discernir o que é bom e mau para si para continuar a ser ostra.
Se existe beleza ou algo bom no ser ostra, esta beleza e bondade não está na pérola, está no saber neutralizar todo o mal e, expeli-lo o máximo possÃvel, bem como aproveitar todo o bem e impelir cada vez mais o ser em si mesmo a partir do que o faz bem até que isso não seja mais possÃvel de fato. No caso das ostras, pode levar centenas de anos para que elas deixem de ser, no caso dos humanos, o quanto podem ser ostras deixando de lado o encanto das pérolas que se lancem a eles como a porcos, pois se a beleza das pérolas fascina a muitos, elas não são mais do que merdas produzidas por ostras, tudo de ruim que há em si. Que todas as merdas de nossa vida sejam expelidas e que nosso corpo e alma vivam eternamente expelindo-as o máximo que pudermos, eis o que fazemos naturalmente e devemos fazer com a arte de abrir ostras e de retirar de nosso ser todo o mal que há em si, sua merda, expelindo-a nem que seja na lÃngua este mal dizendo:
Merda!
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