O desejo de poder
Há muito tempo, Platão definiu o desejo como uma falta em seu simpósio O Banquete quando ErixÃmaco lembra um reclame de Fedro de que poucas pessoas elogiam o Amor e fazem discursos a ele em sua época e os participantes decidem, então, por fazer isso. O desejo é, deste modo, definido a partir da falta de discursos sobre o amor, mas também pela falta do amor, isto é, daquele que o afeta de algum modo, que é sua outra metade ou apenas alguém idealizado. Mas e quando o desejo não é do Amor, mas de poder, por que desejamos o poder? Ou ainda, por que sentimos falta do poder?
Parece óbvio que desejar o Amor é desejar algo que é um bem para si, um bem em si mesmo como diria Platão. Mas desejar o poder não seria um bem tão óbvio assim, nem mesmo um bem em si mesmo. Pelo contrário, na história há diversas demonstrações de como aqueles que desejaram o poder acabaram trazendo um mal para si e quanto mais o desejaram foram dominados por uma paranoia a levá-los a grandes tragédias. Para não lembrar todos, lembremos Édipo em sua resposta à Esfinge, que não é uma simples resposta, mas a resposta daquele que tem o poder de responder, o único capaz de ter o poder para isto, o único dentre os cidadãos tebanos que podia ter o poder para isto, já que a tragédia foi causada por seus pais e era ele senão que tinha que responder por eles, salvando sua cidade, mesmo que não soubesse que era a sua cidade de nascimento e aqueles que tinham feito mal a ela e a ele neste momento eram seus pais e que estava agora fazendo mal a eles e também à cidade.
O desejo de resposta de Édipo para saber quem matou Laio é outrossim o renovado interesse da Esfinge em também obter uma resposta para seu enigma o que a levou à morte pensando que iria ter o poder sobre os outros a partir do enigma, de ter um conhecimento maior que eles. Ao responder sua pergunta, Édipo toma o poder da Esfinge, mas agora é ele que busca uma resposta para o enigma que assola a cidade, quem matou Laio, mais ainda, quem matou Laio e está no lugar dele agora, ou ainda, quem matou Laio e só matando Laio tomaria-lhe o poder. Enfim, todo um desejo de resposta que culmina no desejo do poder que vai além do poder humano na medida também que o oráculo é aquele que propõe enigmas divinos para o desejo de perguntas humanas sobre o futuro de suas vidas na busca de um poder que os humanos não têm, o de saber o que vai acontecer a eles e, como demonstra a história de Édipo, colocam todas as suas vidas numa interpretação literal do enigma, sem qualquer questionamento.
Laio não se questionou por que seu filho iria matá-lo, simplesmente acreditou no oráculo e decidiu matar Édipo que lhe tomaria o poder. Também Édipo acreditou no oráculo e saiu da cidade acreditando que mataria seu pai, quiçá talvez pensando todos que era para lhe tomar o poder. Em ambos, a crença de que o futuro era como o oráculo dizia, e que isto não era apenas uma predição, fez com o que Laio e Édipo tivessem um fim trágico, o de Laio, a morte, o de Édipo, o ostracismo.
O desejo de resposta ao se perguntar aos deuses o que vai acontecer leva as pessoas a uma resposta que se torna a crença na vida delas, uma resposta que dá sentido à s suas vidas e na qual nenhuma outra resposta é possÃvel, pois isto é o que deus quer para ela. Contudo, o que os oráculos gregos demonstram muito bem é que uma coisa é o que os deuses dizem e outra o que os humanos pensam que os deuses dizem. Uma coisa é o poder divino da previdência como o de Zeus, ou a onisciência do deus cristão, e outra muito diferente é a interpretação deste poder, pois se Zeus e todos outros deuses têm um poder sobre-humano de prever o futuro, os humanos não têm, mas desejam ter. Eles sabem muitos deles, prever o futuro é ter não apenas o poder da predição, mas ter o poder sobre os humanos e muitos querem ter um poder divino na terra, principalmente reis aos se dizerem descendentes de deus, imperadores a se fazerem donos do mundo como deuses, ditadores de regimes autoritários e totalitários que desejam ter o poder sobre a vida de cada uma das pessoas.
O desejo de poder não é apenas de algumas pessoas ilustres como se pode perceber na história. Por trás destas pessoas que anseiam pelo poder paranoicamente, há todas as pessoas que também o desejam, mas não tem a ação necessária para isto, ou seja, não tem a areté ou virtù para isto como os aristocratas gregos e deve ter o prÃncipe para Maquiavel. Não tendo suficiente desejo de poder que as leve à ação, elas preferem apoiar alguém para que chegue ao poder, para que tenham poder a partir dele, donde provém todo o desejo de poder por meio de golpes na história que os césares já conheciam muito bem, e toda a paranoia deles para saber quem seria o Brutos da vez que iria traÃ-los.
As pessoas desejam o poder como desejam o amor, mas diferente deste, o poder não traz um bem ou bem em si mesmo, e, sim, um mal. Todavia, por que mesmo sabendo que lhe pode trazer um mal, como até mesmo o amor traz com sua ausência, ainda assim as pessoas desejam o poder por si e por outros? O que o poder tem para ser tão desejado como o próprio amor pelas pessoas? O que o poder traz de bom para as pessoas que fazem elas desejarem-no mesmo sabendo que ele trará mal a si e mal a outros? Seria o desejo do próprio mal para si e para os outros? Desejariam as pessoas o mal em si mesmo através dele? E, deste modo, desejar o poder é desejar o mal para si e para os outros?
Em boa parte, sim, é o mal para si e para os outros que as pessoas desejam ao desejarem o poder, pois desejam realmente fazer o mal a outras pessoas e desejam fazer o mal a si, mas neste último caso, inconscientemente, pois ao desejarem o mal para os outros não percebem que estão desejando o mal para si mesmas, pois, se fazem o mal a outros, é passÃvel dos outros fazerem mal a elas, e nisto surge toda a paranoia do poder. Pois por desejarem fazer mal aos outros, pensam que sempre alguém quer também fazer mal a si e somente tendo o poder, poderá evitar isto. É a paranoia de Hobbes pensando que num estado de natureza o ser humano é mal, ou deve ser mal pois do contrário não sobreviverá na maldade do mundo, e, para conter sua maldade e a de todo o mundo, deve se instituir um poder em que apenas uma pessoa pode ser má com todos, ter o poder absoluto, o rei tirano, ou o ditador.
Todavia, a despeito de todo este mal visÃvel na história, o desejo de poder é também um desejo de sentido para a vida, um sentido que muitas pessoas não conseguem ter por si própria e requerem dos outros. Um sentido que dê poder para elas viverem diante de um futuro incerto que não sabem como vai ser. Um poder de deus para continuar caminhando em segurança contra todo o mal que as assola de um lado e outro do seu corpo e dentro dele na sua mais profunda alma fazendo-as temer tudo e a todos. Um mal que as espreita constantemente e as faz clamar por deus a todo instante, valha-me deus...
Enfim, na ausência de poder das pessoas sobre sua própria vida, desejam o poder dos deuses para que tenham este poder, e pouco importa para elas, neste caso que isto seja mal, ou que de deus advenha o mal, pois, como Hobbes, elas acreditam que alguém deve ter o poder absoluto, que é o poder de fazer o mal com todos sem ser julgado. Para elas, nestes casos, é deus que deve ter o poder absoluto inclusive de fazer o mal, para muitas outras, o tirano como descendente direto de deuses ou o ditador militar agindo em seu nome como deus na terra.
O desejo de poder que as pessoas não têm e sentem falta se manifesta na busca constante de deus na terra, donde a necessidade delas de terem alguém que o represente, alguém que seja filho de deus, ainda que não necessariamente filho direto dele, mas que aja como o deus que elas gostariam de ter presente em suas vidas. Neste sentido, a famÃlia tradicional é defendida a todo custo por muitos religiosos que veem no pai a imagem de deus, porque deus é senão um homem como pai ou vice-versa. É o homem-pai que deve ter o poder sobre os outros componentes da famÃlia, a mulher e os filhos, mas também de todos aqueles que descendem dele e constituem sua famÃlia mais amplamente, pois é o mais velho de todos. Motivo pelo qual o poder se estende do pai ao avô e estes são valorizados na famÃlia mais do que qualquer outros e se não tiver eles na famÃlia, a famÃlia é desestruturada ou desajustada, pois há senão uma briga entre os filhos para saber quem vai tomar o poder. Lembremos toda a história de guerras pelo trono na polÃtica e de competição para saber quem vai substituir o pai no comando de uma empresa entre os filhos do dono. É a imagem clássica de Laio querendo um filho que valorize o seu poder e não que venha a destruÃ-lo e, por isso, prefere matar o seu filho do que ter alguém que não valorize o que ele fez.
Quem deseja o poder, deseja o poder a qualquer custo, deseja o próprio desejo de poder. É assim que o desejo funciona desde a assunção de Eros no panteão grego para além do panteão olÃmpico, como aquilo que é insaciável e que é sempre o desejo de ter poder sobre os outros. É o poder do Céu, pai, homem, sobre a Terra, e todo aquele que tente limitar ou limite este poder, como a Terra, mulher, mãe, tentou limitou o poder do Céu, numa armadilha para ele com o filho Cronos, e este é visto como traidor, indigno do poder, e aquela, a Terra, a mulher é mais mal vista do que ele porque foi quem tramou a armadilha sendo a ela, como mãe e mulher, impingida de toda o desejo de poder obtido pela traição.
Ninguém pode trair o poder, ninguém pode fugir ao poder, ninguém pode não desejar o poder. Todos devem desejá-lo. É assim que é o poder, é assim que deve ser o desejo do poder. O poder deve ser desejável por si mesmo, o que quer dizer que o próprio desejo deve ser o desejo de poder e nada mais. Em contrapartida, a ausência de poder é a própria ausência de desejo, uma falta de vontade, um não fazer nada, a perda de todo o poder sobre o corpo e do corpo em depressão profunda. Uma ausência total de poder sobre a vida levando senão à morte, motivo pelo qual outrossim as pessoas desejam o poder, ou mesmo, o principal motivo, sobreviver, desejo de estar vivo que se confunde com o desejo de poder, de ter um sentido para sua vida e desejando que este seja o sentido da vida para os outros, pois é também o que a pessoa que deseja o poder também pensa, que todos devem desejar o que ela deseja. Deste modo, o desejo nunca é apenas para si mesmo, é também para o outro e, deste modo, o desejo de poder não é somente para si, mas para os outros que, se julga, desejam também o poder e se não podem conseguir por si mesmos, é dado a eles como imposição. O poder imposto de deus na terra, o poder do homem, pai, sobre os humanos, mesmo que eles venham a fazer o mal e muito mal a todos e não seja mesmo o desejo de muitos terem o poder a partir deles ou que haja poder deles sobre si.
Ao se pensar o desejo como falta, neste caso, como falta de poder, na medida em que se falta também este desejo de poder aos outros, deve-se dar este poder a eles como imposição, sobrepor este desejo de poder ao desejo deles, para que eles desejem o poder. Deve-se fustigar as pessoas até que as pessoas ou desejem o mesmo poder que o seu, do seu deus, do seu rei, imperador, ditador, ou candidato polÃtico, ou sejam contra ele, e deste modo o desejo de poder seja reavivado em cada um e os jogos de poder comecem entre todos para saber quem tem mais poder no final numa guerra de tronos, num big brother, num aprendiz. Não importa o jogo, ele é sempre de poder no desejo de vencer o inimigo ou a versão amiga do inimigo, o adversário, o qual, porém, não se quer que chegue nunca ao poder, pois o desejo de poder fala mais alto, grita ou faz careta, faz dar a lÃngua, como entre os Maoris desafiando aqueles com quem guerreavam, fustigando o outro à luta. Ou mostrando à bunda, como os escoceses, ou fazendo um V com os dedos que não representava a vitória quando Churchill o fez para os alemães, mas era um insulto em origem, como dar o cotoco para alguém levantando o dedo médio.
Não importa o gesto, o que se diz, como se diz, ou ainda, o que se faz. O desejo de poder quer que se deseje o poder, não pode haver uma ausência de poder na vida das pessoas, um blasé, esta completa indiferença pelo poder na medida em que ele não lhe afeta, não lhe produz desejo, nem pela vida na medida em que a vida se resume a um desejo de poder, ou desejo de maior potência para se ter o poder, seja a potência do corpo, da alma, do discurso ou da grana que constrói coisas belas para depois destruir. Ou ainda, não pode haver este outro sentido de blasé, o de quem já se cansou tanto do poder que não o quer mais, que se torna indiferente aos seus estÃmulos, cansou de ser rei e agora quer virar mendigo e fazer o carnaval, ou quer ser pobre como no célebre conto de fadas O prÃncipe e o mendigo.
Quando um não quer, dois não brigam, diz o ditado, mas o desejo de poder ainda persiste naquele que quer brigar e ele vai fazer de tudo para despertar o desejo de poder nos outros, mesmo que este desejo seja o mais pacifista de todos, como o de Jesus Cristo, de Gandhi ou de Martin Luther King. Para aquele que deseja o poder e deseja vencer o inimigo ou o adversário, o que importa é ele estar de pé, na sua frente ou não, para que ele celebre a vitória em combate, pois, como lembra Benjamin, não há história dos vencidos. Ou somente há a história dos vencidos, podemos dizer, quando se vê toda a história a partir de um desejo de poder, de se mostrar vencedor e, igual, quem foi vencido, um desejo de poder até mesmo divino, como ele bem analisou em sua CrÃtica do poder e da violência.
Poder, poder, poder... Vamos vencer, vamos vencer, vamos vencer... Assim se manifesta o desejo de poder, assim se manifesta o próprio desejo para as pessoas, pois sem o poder de um deus, de um pai, de um homem, de um rei, imperador, ditador ou polÃtico, não sabem mais o que fazerem das suas vidas. Não sabem como governarem a si mesmas, como governarem a casa, como governarem a cidade, o Estado, o paÃs e a nação considerada uma grande famÃlia da mesma descendência ou raça num regime totalitário, ou de raças diferentes num regime semi-democrático, pois o voto não é e nem nunca vai ser a garantia de uma democracia plena, e democracias plenas não existem.
O voto nulo, neste sentido, para muitos, é interpretado na democracia como algo não democrático por justamente as pessoas quererem se excluir do jogo de poder, do desejo de poder, de terem poder sobre os outros por meio de alguém que deseja o poder mais do que eles. É uma anarquia o que eles pressupõem com o voto nulo, pois se ninguém é eleito para o poder, se pensa, todos agora vão brigar pelo poder, como diria Hobbes, imaginando-se que todos desejam o poder também. Todavia, a anarquia enquanto a ausência do desejo de poder do outro sobre si e de si sobre os outros, direta ou indiretamente, é muito mais do que isto. A anarquia não é uma luta fatricida para saber quem substitui o pai no poder desejando o poder como ele, mas a destruição do desejo do poder em seu Ãntimo, isto é, do desejo mesmo de poder, da recusa total a ter o poder sobre si por meio de outros e dos outros por meio de si. É a destruição do desejo como desejo de poder, ou ainda, do desejo como falta de alguma coisa na vida que tenha poder sobre si e sobre os outros.
A anarquia é a ausência de um poder originário, de princÃpios, de um poder de comando militar por alguém. É ausência de um poder que advenha desde as origens divinas, ou de princÃpios morais que se impõem sobre os outros obrigando-os a seguirem-no, ou que advenha de alguém que está no comando militar de outros homens, como é o polÃtico mesmo que não seja tirano, pois ele ainda precisa de um poder militar contra aqueles que desejam o poder como ele o deseja. É a ausência do desejo de poder que não se transforma numa luta pelo poder, pois somente há esta luta se houver alguém que desejo o poder e alguém que seja a favor ou contra ele.
Não se pode ter poder sem vitória, sem alguém que ganhe, sem o desejo de poder pelo menos de um a fustigar o outro, motivo pelo qual o voto nulo é tão temido nas democracias, pois representa uma anarquia em relação ao desejo de poder. E como as pessoas viveriam sem um governo para chamar de seu?Alguém que governe suas vidas em seu corpo, alma, casa, escola, quartel, hospital, cidade, Estado, nação? Como viver sem todas estas relações de poder que Foucault se empenhou tão bem em analisar numa sociedade disciplinar e regulamentadora na qual o poder se exerce na mais Ãnfima relação com o outro? Uma relação de poder que vai até o inconsciente maquÃnico como demonstra a esquizoanálise de Deleuze e Guattari, que leva à criação de um desejo de poder sobre a terra paranoico criando territórios em todo lugar dela, e em toda parte do corpo?
Deve-se retardar o desejo, incluindo o de poder, mas dentro de limites pré-estabelecidos, nunca recusar ao desejo de poder, pois isto seria a depressão e a morte. Freud leva até o inconsciente como fizeram os mitos ou até o fundo da alma como fez Platão, o desejo como falta e, consequentemente, o desejo de poder, mas também o desejo como falta de si mesmo vendo na falta de desejo algo complexo. Não que o desejo esteja em falta mesmo, pois ele nunca falta enquanto estamos vivos e desejamos viver, mas o que falta é o desejo manifesto na vida das pessoas, o desejo de uma vida que não está presente, que não é a vida imediata. Não se pode recusar, deste modo, a vida imediatamente, deve-se viver o presente tal como ele é e está e todo o poder se resume em ter o presente, algo imediato, nas mãos. E se se espreita o futuro num oráculo, numa ciência, numa filosofia e religião, não é tendo em vista o futuro, mas o presente imediato, de uma vida que é agora, tem que ser agora, não pode ser para depois, não pode ser deixada de lado, deve-se ter poder sobre ela, sobre os outros agora. O tempo é agora.
O instante, nada mais importa para o desejo do poder do que o instante em que se consegue o poder para além de qualquer perspectiva de tempo futuro ou passado. Não importa mesmo o passado e futuro que podem se transformar no que quiser, falsificado muitas vezes para se conseguir o poder no tempo presente. E, se poderia dizer que somente falsificando o tempo passado e futuro é que podemos perceber o presente no que ele é, o desejo de poder produz senão esta falsidade do tempo, dizendo que se tem que decidir, agora, em quem vai votar, no que vai fazer da sua vida, que governo quer para ela. Nada de blasé ou anarquia, é preciso desejar o poder às custas do próprio tempo e do pensamento que já não pode mais pensar, deve decidir, escolher em quem vai votar e apenas isto, ele sim, ele não.
É-se de tal modo imerso num desejo de poder que a própria vida se perde nele, se torna ausente e se faz somente presente se houver o poder de umas pessoas sobre as outras ou de outras sobre elas. Nunca se pensa a vida para além do desejo de poder. Uma vivida em comunidade com as pessoas, cada uma fazendo o que sabe fazer e trocando pelo que outras sabem fazer sem que haja o poder polÃtico e econômico intermediando tudo isso. Não há uma vida em comunidade, apenas em sociedade do ponto de vista do poder. Tal vida em comunidade é uma anarquia em seu modo mais sublime, quando as pessoas se relacionam não pelo desejo de poder, mas pelo desejo de estarem juntas, para além de amizade ou inimizade, estes dois polos do poder mais Ãntimo. O que importa é estar junto do outro, pois junto com ele está-se a salvo do poder, de todo o desejo de poder, de tudo que o poder é para a vida das pessoas.
Do ponto de vista de uma comunidade anárquica, o desejo não é mais uma falta, pois ele é plenamente realizado pelo outro em sua presença e em sua ausência quando é lembrado. Não se sente falta dele e do poder que ele exerce sobre sua vida, mas simplesmente do que ele é durante todo o tempo, passado, presente e futuro. Não existe uma origem, um princÃpio ou comando do outro que se deseje como poder ou para se ter poder, apenas o outro, que também não tem o poder de nos cativar ou de nos fazer admirar pelo poder que exerce sobre nós, pelo afeto que produz em nós fazendo-o seguir, como AlcibÃades a Sócrates por todo lugar, ou Platão, mais comedido olhando distante o seu amado. Existe apenas o tempo do outro para nós como alguém que amamos e desejamos estar junto de si em qualquer tempo, sem relação de poder.
Talvez, para muitos, isto seja uma utopia e de fato é, pois contra todo o desejo enquanto falta e desejo de poder que sempre se quer imediatamente, nada melhor do que um desejo do qual não se sente falta no presente, tão pouco no futuro, ou se ressente por ter havido no passado. Um desejo que está sempre presente em cada momento do tempo, sem faltar nele, ou ainda, sem sentir falta do próprio desejo como um poder sobre si. Um desejo que não é a ausência ou presença exagerada do desejo, ou de poder, é apenas desejo de si e do outro a todo instante, sem relação de poder, pois realizado a todo instante em si enquanto está vivo e no outro, próximo ou distante, em nossas vidas. Eis, de fato, a utopia como anarquia total do desejo do poder em algum instante do tempo, o que não quer dizer ter domÃnio de si como autogoverno ou cuidado de si, mas não ter poder nenhum em sua vida, nem desejar ter, apenas viver a vida realizando o desejo no estar vivo de corpo e alma.
Desejar viver, de modo utópico e anárquico, não é desejar ter poder sobre a vida que deve ser governada por si ou por outros considerando-se que, sem isto, há a morte. Somente se pode pensar porque há uma governo do corpo biológico pela natureza e esta por deus, ou pelo diabo, mas se a vida fosse apenas biologia, ninguém se preocuparia com ela, afinal, tudo nasce e morre, para que se preocupar com isto? A ciência não explica a vida em sua biologia, quÃmica ou fÃsica, ou ainda, como ciência humana, que vai apenas à concepção da vida em sociedade polÃtica e economicamente e suas relações como objetos cientÃficos. A filosofia, a religião e a arte, buscam explicá-las, mas enquanto a explicam como desejo de poder, não é da vida que falam, apenas da vida que alguns querem ter e não a que todos têm e com a qual se preocupam.
Viver ultrapassa todo entendimento, disse Clarice Lispector, e se pode dizer que ultrapassa também todo desejo de poder entendê-la ou tê-la a partir de um desejo de poder. Quando se deseja viver, já não é a vida mais que se tem, é a ausência dela porque algum poder a tirou e faz agora com que se sinta falta dela. Quando não sentimos falta da vida, que algo ou alguém nos deu ou tirou em algum momento, neste momento percebemos que o desejo de vida não é um desejo de poder viver deste ou de outro modo, mas um desejo que é a própria vida sendo vivida, muita vezes diferente da que nós desejamos em nosso desejo de poder.
O desejo não é uma falta, uma carência, de poder inclusive. Ele é a vida em seu estado bruto que nunca falta naquele que está vivo e enquanto está vivo, para além de todo poder dele sobre si ou sobre outros, ou de outros sobre si. Um desejo anárquico e utópico que é o da própria vida contra tudo que deseja ter sobre ela um poder, tirando-a de quem vive para dá-la de outro modo, alienado do seu viver em qualquer tempo.
Somente tirando a vida se pode desejar ter poder sobre ela, e este é senão o primeiro e último desejo do poder, o desejo de tirar a vida de alguém, nem que seja a de si mesmo, para ter algum poder. É, deste modo, um desejo de morte pela vida. A celebração da morte pela vida, o desejo de poder irônico de quem deseja se matar, ter poder sobre a vida tirando a própria vida quando não deseja ter o poder sobre os outros. O desejo de morte por uma vida futura na medida em que esta já foi lhe tirada quase totalmente, só resta ele pôr um fim a isto.
Contra todo o desejo de poder que tira a vida de si e dos outros ao ponto de se tornar um desejo de morte de si e dos outros, é que devemos pensar um desejo que não seja uma falta ou carência de vida em seu limite, mas a própria vida. Uma vida que não é tirada, nem dada, apenas vivida no instante e para além dele, na medida em que ela é duração, como diria Bergson, e ela, como o amor para VinÃcius de Morais, é eterna enquanto dura. Desejar e viver o amor pelo outro, mas sem ausência ou carência do amado, desejando-o, vivenciando-o, amando-o eternamente enquanto ele dura e ele dura senão toda a vida, pois o amor, como o desejo, como a vida, é inesquecÃvel.
Desejar uma vida inesquecÃvel, é desejar uma vida sem poder, uma vida que não pode ser esquecida e lembrada pela memória. É viver a vida em todo seu desejo de viver para além de qualquer poder sobre si e sobre os outros. Para muitos é loucura, mas apenas porque para eles o que importa é o desejo de poder ter uma vida normal, como todos os outros, mas não para aqueles que querem viver a vida sem poder, nem mesmo o desejo de poder saber mais que outros normalmente.
Assim, para aqueles que pensam que também há alguém que sabe mais da vida do que outros e pensa que se diz aqui como deve ser o desejo de viver sem poder, não há nenhum alento, pois o que há é simplesmente o abandono de tudo isto. O desejo de poder também está pressuposto no saber, como bem demonstrou Foucault, e não há aqui nenhuma pretensão quanto a isto, apenas o desejo pelo outro, em viver com o outro para além de toda fala imediata que encerra o desejo na voz, no falar, de modo egocêntrico e fonologocêntrico. Pela escrita não é o imediato que se impõe sob um desejo de poder, mas a ausência deste desejo, pois o texto que aqui se escreve é anárquico e utópico no sentido de que sua origem, princÃpio ou comando inexiste, cabendo a qualquer um, se quiser, ter um desejo de poder sobre ele, mas que nunca se realizará, pois ele também é contra seu poder.
Tal texto e no que nele se expõe de pensamento, mas também de corpo e de vida em sua duração, não pertence a quem o escreve mais do que pertence sua própria vida que pode ser tirada a qualquer instante por aqueles que desejem o poder sobre ela, mas que sempre será a vida em sua existência e para além dela neste texto, em sua duração eterna na lembrança de quem a lê-la aqui, em parte, em sua anarquefilosofia.
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