A inesperada Pandora


Quando Zeus quis punir Prometeu por roubar o fogo imortal para o dar como qualidade ao homem criado sem qualidade nenhuma por seu irmão Epimeteu, ele incubiu a Hefesto, Atenas, Hermes e demais deuses que criassem uma mulher, a quem chamou de Pandora, com diversas prodigiosidades para superar o ardil de Prometeu, e a enviou para Epimeteu que a recebeu sem qualquer reserva ou preocupação, mesmo que seu irmão Prometeu o tivesse advertido de não receber nenhum presente de Zeus. O resultado foi que Pandora abriu um jarro que continha diversos males dentro deixando-os sair dando origem aos males que abate o homem sobre a terra como mortal, mesmo que nele habite o fogo imortal dos deuses. Todavia, dentro do jarro ficou ελπίς (Elpís), comumente traduzida por Esperança, mas que Alessandro Rolim traduz por Antecipação e Mary de Camargo por Expectação.

Este mito, cantado por Hesíodo de dois modos, em suas obras Teogonia e Os trabalhos e os dias, narra assim a história da criação do homem como um ser mortal, mas dotado de um fogo imortal, bem como da mulher, dotada de qualidades divinas prodigiosas. Além dessa história sobre a criação dos seres humanos, e de como a mulher é considerada um mal ao homem por Hesíodo, há sempre o questionamento de por que Elpís (Esperança, Antecipação ou Expectação) não saiu do jarro donde provém, quicá, o dito popular de que a esperança é a última que morre. A questão, porém, é por que este mal não voou para fora como diz Alessandro Rolim, ou antes dele voar, Pandora fechou novamente o jarro e não a deixou sair segundo o desígnio de Zeus.

Que a Elpís (Esperança, Antecipação ou Expectação) é um mal, isto pode ser dito literalmente por ela estar num jarro que continha os males humanos. Agora por que Elpís (Esperança, Antecipação ou Expectação) Ã© um mal, isto já não é literal e advém de uma interpretação do que Elpís venha a ser conforme sua tradução como Esperança, Antecipação ou Expectação. E, mais ainda, por que Pandora, sob o desígnio de Zeus, segundo a tradução de Mary de Camargo, não deixou Elpís (Esperança, Antecipação ou Expectação) sair ou Elpís (Esperança, Antecipação ou Expectação) não voou enigmaticamente, eis o derradeiro problema, e talvez o principal na medida em que nele há, implicitamente, um bem, um bem inesperado reservado ao ser humano por Pandora a mando de Zeus, um bem que seria, ouso dizer, o da própria Pandora como Elpís. Desse ponto de vista, se sua ação de abrir o jarro daria origem a todos os males humanos, e não somente dos homens, a sua ação de fechar o jarro não daria a eles nenhuma esperança e isto seria um bem, o bem do inesperado, o bem de Pandora contrária a qualquer esperança como aquela da qual não se pode esperar nada, isto é, não se ter nenhuma expectativa do que ela é ou do que vai fazer, da qual, por sua vez, não se pode antecipar nada, prever algo sobre si e que não daria ao homem nenhuma esperança em sua vida, e, deste modo, seria inteiramente livre do fogo imortal humano, isto é, da capacidade de conhecimento que Prometeu lhe proveu.

Pandora é, sob este aspecto, o inesperado contrariamente a tudo que Elpís Ã© enquanto Esperança, Antecipação e Expectação. Seu ato de conter a saída de Elpís ao fechar o jarro ou o ato mesmo de Elpís não sair é contrário a tudo que se esperava, antecipava e se teria expectativa de que acontecesse, isto é, que Elpís saísse e, assim, o mal abateria o ser humano completamente. Que Pandora fizesse isto, ou que acontecesse de Elpís não sair, eis algo que somente Zeus saberia o porquê, mas nós, seres humanos, desde que Hesíodo cantou este mito, podemos interpretar o seu querer. Para tanto, é preciso ter em conta as três traduções de Elpís, não tanto para saber qual delas é mais verdadeira ou mais aproximativa da palavra em grego, mas do que cada uma acrescenta a ela, quer-dizê-la e diz de algum modo.

Primeiramente, a Esperança. Ela introduz, ao ser dita, algo bom para aquele que a escuta ou a escreve. É preciso termos sempre esperança, assim se diz, quando algo não vai bem em nossas vidas, ou quando algo acontece que nos abate, deprime-nos de algum modo. A esperança é a última que morre, assim se diz, como algo bom, uma forma de resistência ao que está acontecendo e ao que acontece de mal. A esperança, como tradução de Elpís, se seria um mal por estar junto com os outros, também seria um bem não ter saído, pois, neste sentido, o ser humano não seria completamente dominado pelo mal em sua vida. Poderia acreditar que haveria algo de inesperado, a própria Esperança assim contrariada em sua presença, neste caso, sendo Elpís um mal travestido de bem ao não sair do jarro dos males como seria senão Pandora também um mal travestido como um bem enviada por Zeus com dons divinos.

Ao não sair do jarro por intervenção ou não de Pandora, Elpís se converteria de mal em bem, e este gesto também converteria Pandora de mal ao ser humano enviado por Zeus também num bem, em algo adorável pelos homens como ele disse que ia ser, não tanto por este gesto, ademais, e, sim, principalmente por seus belos adornos, belo corpo e belo caráter como virgem. Contudo, a ação inesperada de Pandora em conter a saída de Elpís ou desta não sair, fez de Pandora também um bem quanto a isto, no sentido de que ainda bem que pelo menos este mal Pandora evitou, tendo piedade quiçá do ser humano, ainda que a mando de Zeus. Algo, de certo, inesperado tendo em vista que ela seria enviada senão como um mal aos homens devido ao mal que Prometeu fizera dando a eles o fogo imortal.

Traduzir Elpís por Esperança não é de todo mau como julgam os tradutores, como se pode perceber, pois revela algo diretamente relacionado ao que acontece no mito. Pode ser preciso numa tradução ater-se a um sentido que se queira traduzir em particular quanto a uma palavra, mas não se pode evitar os outros sentidos que fazem parte dela como se fossem menores. Há sempre algo que possa dizer a mais e isto é sempre importante do ponto de vista do conhecimento de um texto e não pode ser deixado de lado. Ater-se a um único sentido para uma palavra querendo dizer que ele é o sentido dela em sua origem só leva a um desconhecimento mais amplo do mito ou de qualquer texto em seu sentido mais amplo, e mesmo da vida como em sua esperança, quando tudo já faz sentido ou não faz sentido nenhum. Se a esperança é a última que morre, ou talvez nem morra, é porque ela não faz parte do mundo dos mortais, ela é imortal em si mesma e a esta imortalidade não por menos aspirariam os homens se eles a detivessem, algo que Pandora lhes impede de ter para seu próprio bem. Somente os deuses são imortais, nunca os seres humanos, do contrário, não haveria nenhuma separação entre eles, o que faz de Pandora ser senão este aviso: não tenha esperança na imortalidade! Viva a sua vida, mesmo com todos os males que advenham nela, com ela! Perca a Esperança! Viva o inesperado!

A Antecipação. Na história, Pandora é enviada por Zeus a Epimeteu que a recebe sem seguir a advertência de seu irmão Prometeu de não receber presentes de Zeus. A precaução de Prometeu se justifica por saber que Zeus não deixaria impune o roubo do fogo imortal e faria alguma coisa contra ele. Porém, Epimeteu, em seu nome, designa aquele que pensa depois do que acontece e, deste modo não é nenhum pouco previdente, como se pode perceber no mito da criação mesma de todos os animais, incluindo o homem, pois dotou todos aqueles de todas as qualidades deixando este sem nenhuma, motivo pelo qual Prometeu roubou o fogo imortal de Zeus dando ao homem a capacidade de conhecimento. Que tenha sido, por fim, Prometeu que tenha dado ao homem esta capacidade de conhecimento e, a partir da capacidade de conhecimento, a possibilidade de previsão do que vai acontecer, não é por acaso, pois, Prometeu, conforme seu nome, designa aquele que pensa antes.

Prometeu e Epimeteu designam no mito dois modos de pensar o acontecimento, antes e depois, e por isto mesmo são irmãos, se deve dizer, mesmo que não saibam de fato o que vai acontecer, se bem ou mal, posto que este poder de presciência pertence a Zeus desde que ele engoliu sua primeira esposa, Métis (Astúcia), a mais sábia entre os deuses e os mortais, para lhe indicar o bem e o mal. Que Zeus tenha enviado Pandora justamente a Epimeteu não é, pois, por acaso divino, mas por ele saber que Epimeteu não pensaria antes o que ia acontecer como faria Prometeu, o que isto demonstra também o quanto Pandora é o inesperado, no caso, o inesperado por Epimeteu, mas também por Prometeu, mesmo que ele esperasse que acontecesse algo. Mais inesperado ainda posto que a Epimeteu foi confiada a tarefa de criar todos os seres, mas a mulher mesma não fazia parte de sua criação ou não estaria em seu poder criá-la na medida em que a Epimeteu foi incumbido dar a cada animal uma qualidade ou atributo específico e esta seria especificamente sua arte. Pandora, porém, foi criada pela arte de todos os deuses do Olimpo e pensada por Zeus, não tendo apenas um atributo, mas diversos, e, ademais, não visíveis em aparência como demonstram os animais e também o homem, posto que os atributos de Pandora seriam invisíveis diante de sua aparência bela como mulher.

Nem Prometeu e nem Epimeteu podiam esperar por Pandora. Ninguém esperava por ela que foi criada apenas porque Prometeu roubou o fogo imortal dos deuses. Sua criação não era prevista, antecipada quando Zeus confiou a Epimeteu a tarefa de criação de todos os seres. Ela surgiu, deste modo, por um acaso e como acaso mesmo foi dada a Epimeteu e como companheira dos homens mortais. E foi dada aos homens como um bem que eles esperavam ou podiam antecipar ao ser bela em corpo, vestimentas e caráter, isto é, bela, recatada e do lar, mas não era definitivamente o que se esperava de uma mulher segundo a tradição ao trazer todos os males para o homem e a inesperada Elpís. O que era esperado dela era apenas uma aparência que não condizia com a realidade dela mesma, sua essência, sua verdadeira divindade como algo inesperado, um bem inesperado, uma graça divina, a piedade dos deuses.

Neste caso, ao encerrar no jarro a Antecipação, ou esta não sair como deveria acontecer, ou ainda, ao ser dada sem que Prometeu pudesse antecipar o que ia acontecer e Epimeteu mesmo diante de Pandora tão bela dada como um bem não antecipasse segundo seu nome também isto, Pandora é, a partir do seu ato, aquela que impede qualquer antecipação do homem em sua capacidade de conhecimento dotada por Prometeu. É aquela cujas qualidades ou atributos mesmos não podem ser antecipados pelo homem, posto que é uma multiplicidade prodigiosa a qual ele não pode dar conta, isto é, não pode calcular, e tão pouco pode perceber na mera aparência, posto que é uma essência dela que ele não pode prever, nem tão pouco determinar, uma essência que se aparece é de modo inesperado, como no gesto de abrir e fechar o jarro, ambos inesperados também.

Por fim, a Expectativa. Não se pode esperar nada da mulher, ter-se nenhuma expectativa em relação a ela. Tudo que ela faz e desfaz é imprevisível, não pode ser antecipado, previsto. Ao impedir que a Expectativa saia do jarro, ou mesmo quando esta não sai, Pandora e os deuses dizem ao homem: não tenha expectativas! Nem em relação à sua vida, em relação a mim! Não crie expectativas com a vida ou comigo! Você não a vai conhecer ou me conhecer, mesmo que muito a observe ou me observe, pois só verá uma aparência dela e de mim, nunca nossa essência. Eu e ela sempre seremos uma coisa ou outra que você não espera, mesmo que você espere e nos espere.

A ausência de Expectativa ao ser humano, pode ser vista como um mal ou como um bem. Em princípio, é um mal, posto que está no jarro dos males, assim como é um mal também a Antecipação. Em ambos os casos, o problema é o mesmo: ter expectativa ou querer antecipar algo pode ser ruim, pois gera ansiedade, angústia e possível desespero, isto é, descontrola a ação. Ter tudo isto seria um mal ao ser humano, algo que Pandora evitou a ele sob o desígnio de Zeus, e ao fazer isto fez com que o ser humano vivesse sem o mal da Expectativa e com o bem de não a ter. Não ter Expectativa, neste caso, seria um bem, mesmo que isto possa também ser visto como um mal, pois em geral considera-se a Expectativa como uma Esperança, algo bom, algo que daria enlevo ao ser humano e o faria se sentir melhor. Mas ter Expectativa levaria o ser humano ao ressentimento, a um sentimento de que deveria ter algo que não tem, mas deveria ter, e Pandora seria de certo modo isto, aquilo que o homem tem aos olhos, em aparência, porém, não a tem para si, pois não a tem na essência já que não a conhece. Ela é a ausência de Expectativa, ainda que, por sua aparência, possa ser Expectativa de algo bom, pareça algo bom, um bem, e é, mas não como ele pensa.

Nada angustiaria mais ao ser humano dotado de conhecimento e toda previsibilidade que possibilita ter do que a ausência de Expectativa, pois a Expectativa, mesmo um mal, pode ser revertida num bem. Ao impedir que a Expectativa saia, ou esta ao não sair, Pandora tira do homem qualquer possibilidade do conhecimento de conseguir aquilo que mais ansiaria segundo sua capacidade de conhecimento, isto é, a Expectativa de estar certo, de deter a verdade, pois a Expectativa, mais do que a Esperança, é uma certeza que se tem de que algo vai acontecer por se ter observado ou verificado algo que espera que aconteça de novo, enquanto a Esperança é apenas uma crença de que algo bom pode acontecer. Sem isto, o conhecimento humano, por mais certo que possa ser em termos de previsibilidade, será sempre algo imprevisível, pois sem qualquer Expectativa.

O motivo para que isto acontecesse, deve-se senão a Zeus, mais que a Pandora, apesar desta ser quem por seu gesto se torne o motivo disso. Isto porque a ausência de Expectativa é a ausência de algo que somente Zeus pode ter, a presciência, e, mais ainda, isto é o contraposto mal ao bem que Prometeu fizera aos seres humano dando-lhe o fogo imortal, deste modo, fazendo o que era justo. Era justo que o ser humano não pudesse ser dotado de Expectativa, pois isto iria fazer com que tivesse a pretensão de saber tanto quanto os deuses sobre qualquer coisa, já que estava dotado da capacidade de conhecimento e, com ela, sua certeza poderia se tornar uma verdade e, sem ela, por mais que tivesse uma certeza, não teria a Expectativa de que estaria com a verdade.

A Expectativa levaria o ser humano ao pior dos males que poderia ter: a pretensão de verdade, bem como, por meio desta, a pretensão de poder. Não tendo Expectativa, o ser humano continuaria piedoso sem saber o que lhe poderia acontecer e isto seria um mal melhor do que ele ter Expectativa. A ausência de Expectativa limitaria assim a pretensão de saber e de poder do ser humano e, assim, de se sublevarem em relação aos deuses. Deste modo Zeus também demonstraria o mesmo a Prometeu, que este não poderia se sublevar ao saber e poder de Zeus sem ser punido.

A pretensão de saber e de poder que a Expectativa poderia dar ao ser humano seria um mal ademais porque sobre ele recairia todo o mal divino, a ira de Zeus, caso o homem tivesse a Expectativa de algo, neste caso, ser mais sábio e poderoso que os deuses, como Prometeu queria ser. Se Pandora ao fechar o jarro retira do homem esta Expectativa e se se torna com isto aquela em relação a qual o homem não pode ter nenhuma Expectativa, isto também pode ser considerado um bem, pois ela desviaria o homem de qualquer pretensão de saber e de poder. Ela limitaria o homem, fazendo dele um ser piedoso em vez de ímpio em sua Expectativa de saber e poder.

Se Pandora soltou os males dotando o homem de mortalidade sob o desígnio de Zeus e do homem retirou toda Esperança, capacidade de Antecipação e Expectativa quanto à sua vida como mortal ou imortal, posto que seria ambos, ela em si mesma não é um mal, posto que a ausência de tudo isto, bem compreendido levaria o ser humano a uma vida dentro dos limites de sua possibilidade de conhecimento e poder. Posto que o homem esperanço sempre espera que venha o bem e nunca pensa que pode advir o mal em alguma coisa, como Pandora, tão pouco o homem que tudo antecipa nunca pensa que algo pode não ser previsto por sua Antecipação e erra por conta disto, bem como o homem que em tudo cria Expectativa deixa-se invadir pela ansiedade, angústia e desespero e pode vir senão a morrer por conta disso.

Pandora, aquela que tira do homem toda Esperança, Antecipação e Expectativa, é assim o inesperado que o homem deve ter em vista, não como algo mal em sua vida, por tudo que trouxe de mal para si, mas como um bem que Hesíodo reconhece em certa medida à mulher quando diz que ela é o bem que contrapesa o mal constante como cuidadosa esposa. Assim, Pandora, como mulher, seria o bem que contrapesa o mal constante em si mesma, aquilo que, em aparência é bem, mas em essência é mal, bem e mal contrapesados deste modo nela, em constante equilíbrio, numa justa medida, algo que faltaria ao homem, dotado da capacidade de conhecimento e que com Elpís se tornaria um conhecimento sem qualquer medida, limite ou termo, motivo pelo qual lhe falta Elpís, para que isto não aconteça.

Pandora seria aquilo que é uno em sua aparência como mulher, mas múltiplo em sua essência divina e que, deste modo, seria algo esperado pelo homem como uno, mas totalmente inesperada em sua essência múltipla. E seria um mal seria, porém, enviada por Zeus com um bem contendo os maiores atributos divinos, entre eles, o maior deles, o da justiça, pois tudo que fizera foi limitar o homem em sua pretensão de saber e poder como mortal para não se ver como um deus por ser dotado do fogo divino.

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