A nova onda fascista
Há 10 anos, era lançado o filme A onda (The Welle, 2008), da Dennis Gansel, que aborda a possibilidade de ressurgimento do fascismo nazista entre os alemães. O filme é baseado em fatos reais que aconteceram, porém, nos Estados Unidos quando, em 1967, Ron Jones, um professor de História Contemporânea da Cubberley High School, em Palo Alto, Califórnia, Estados Unidos, depois de uma aula sobre o Nazismo, seu aluno Steve Conigio o questionou como o povo alemão tinha permitido que o nazismo acontecesse, se eles não sabiam o que estava acontecendo com os judeus. Mais ainda considerava que isto nunca aconteceria nos Estados Unidos, considerando que os estadunidenses seriam mais esclarecidos do que isto.
Lembro que antes mesmo de assistir ao filme, fiquei tão entusiasmado com as questões sobre a escola levantadas por ele em relação ao fascismo nazista alemão que não pude deixar de exibir no ano seguinte para os estudantes da escola profissional recém-criada em que trabalhava dando aula de Sociologia além de Filosofia, e na qual, por uma atroz coincidência, os estudantes usavam calça jeans e blusa branca como farda. Não era tanto o fascismo que importava para mim no filme à época, mas o que Kant deixa bem claro e distinto em seu texto Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?, de 1783, que se ensinamos preconceitos, mesmo quando fazemos revoluções, estes preconceitos se voltam contra toda e qualquer perspectiva de esclarecimento. Foi assim logo após a Revolução Francesa, em 1789, com seu perÃodo de Terror, confirmando mal grado na prática o que Kant afirmara de modo absurdamente esclarecido, foi assim anos depois da Revolução Russa, em 1918, com o Stalinismo, foi assim com ascensão do fascismo nazista alemão, a partir de 1939, que revolucionaria o mundo com o seu poder, foi assim no Brasil com o golpe de 1964, que os militares veem como "revolução" e o ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli vê como um "movimento".
De lá para cá, não senti necessidade de reexibir este filme ou mesmo o planejamento das aulas não permitia, ainda mais quando passei a dar apenas aulas de filosofia, enfim, ele caindo no esquecimento, afinal, o Nazismo era algo distante do contexto filosófico que eu abordava e também, como não podia deixar de ser, do Brasil. Todavia, ao se confirmar a nova onda fascista no Brasil recentemente em nÃveis alarmantes, assim como no mundo, não pude deixar de desejar de reexibi-lo para os estudantes e, mais ainda, discuti-lo fortemente naquilo que até então era muito distante de nossa realidade: o fascismo, abordando-o dentro de uma perspectiva estética.
Mas o que dizer sobre este filme cujas análises já foram feitas alhures por diversas pessoas no Brasil e no mundo desde seu lançamento e agora talvez mais ainda como eu a faço? Como analisar um filme que é tão didático em relação à s condições de possibilidade, como diria Kant, do ressurgimento do fascismo em qualquer lugar do mundo e na própria Alemanha? Como expor ainda mais o fascismo como algo tenebroso para as pessoas que já estão saturadas de ouvir sobre o nazismo e suas consequências cujas imagens terrÃveis estão no Youtube para qualquer pessoa assistir e desde a década de 60 são expostas a ela e já naquela época estavam saturadas?
Ao reexibir o filme A onda novamente para estudantes do ensino médio não tardou em emergir o que Deleuze e Guattari consideram o grande motor do fascismo, em particular, o alemão, o desejo. Isto porque ao transpor o contexto da escola estadunidense na década de 60 para o contexto de uma escola de ensino médio alemã na época recente, já saturada da história do nazismo, o filme vai além do que aconteceu no Estados Unidos e demonstra como não apenas o nazismo pode surgir em qualquer lugar do mundo a partir de diversos aspectos sociais, mas também pode surgir na própria Alemanha, que tanto quer esquecê-lo e faz isto de modo consciente com uma educação voltada contra o nazismo. Mais ainda, o filme demonstra, como no caso particular estadunidense, que não é preciso condições psicossociais macropolÃticas para que ele aconteça, tão somente condições psicossociais micropolÃticas como as existentes numa escola, sem a necessidade de um grande lÃder, uma grande ideologia ou muitas pessoas para isto, bastando um professor, algumas aulas sobre autocracia e alguns estudantes. E, sobretudo, que para o surgimento do fascismo basta tão somente o prazer proporcionado por algumas caracterÃsticas do fascismo para que ele venha à tona novamente e que apenas um projeto escolar de uma semana é o suficiente para demonstrar isto.
Se para muitos, ao pensar no nazismo é um sentimento de desprazer, angústia ou ressentimento que advém, o que se demonstra no filme é que o fascismo pode ser prazeroso para as pessoas sem elas perceberem, sendo educadas de modo fascista sem ter consciência disto e sem conseguir evitá-lo em si mesmas constituindo-se no seu próprio desejo como uma busca de prazer pelo fascismo. É sobretudo de um ponto de vista estético, isto é, da produção de prazer que se coloca portanto a questão do fascismo, no caso, uma estética que é a de uma regra, norma, cálculo matemático e forma geométrica, uma ordem considerada bela ou perfeita que se estabelece como um padrão de arte na modernidade com origens gregas e vai ser a principal caracterÃstica dele, a começar pela suástica. Não é por acaso que Hitler era apaixonado por arte, pois a arte traduzia a perfeição que ele pretendia para o povo alemão, não o que existia, mas o que ele produziria em sua subjetividade de uma determinada forma, conforme uma determinada regra, a partir de normas muito especÃficas e um cálculo e ordem matemática geométrico considerados belos e perfeitos aos moldes do perfilamento militar.
Pode-se perceber como isto se produz n'A onda quando o jovem Jens no inÃcio do filme retoma a interpretação do estudante Steve Conigio de que o nazismo não seria possÃvel nos Estados Unidos e diz que eles, os alemães, estão além disso, isto é, também não permitiriam o ressurgimento do nazismo diante do esclarecimento atual deles e o professor alemão Rainer Wenger ao ouvir esta resposta diz "Interessante" e tudo muda a partir de então. O que venha a ser interessante para Wenger, percebemos no decorrer do filme, quando o que era uma aula chata sobre autocracia, ditaduras, fascismo, nazismo alemão, sem prazer algum para ele e os estudantes se torna uma aula prazerosa até demais tal como aconteceu nos Estados Unidos na década de 60, quando Ron Jones deu inÃcio ao movimento da chamada A terceira onda, ou, simplesmente, A onda, com seus estudantes sem eles saberem que era sobre o nazismo. Mas o que importa sabermos, e isto é o mais importante, é como o fascismo nazista deixa de ser um movimento tão desprazeroso e passa a ser desejado como prazer por Wenger e seus estudantes e se torna possÃvel ressurgir a qualquer momento ao se tornar prazeroso.
Nada mais repressor para o desejo de um anarquista do que uma autocracia, mais ainda, nada mais absurdo, poder-se-ia dizer seria um professor anarquista gostar de dar aula sobre autocracia e seguir seus princÃpios na prática. Mas é isto que o filme mostra de um modo impressionante, como a repressão do desejo de prazer anárquico do professor, dá inÃcio a todo um processo de produção de desejo autocrático no decorrer do filme desde que o professor considera interessante demonstrar não apenas na teoria, mas também na prática o fascismo. Bem como é a escola que opera toda esta mudança na produção deste desejo quando ela se estrutura de modo disciplinar e a disciplina é senão o desejo de prazer autocrático do fascista.
O desejo de prazer anárquico do professor coincide com uma certa anarquia da juventude tal como é demonstrada a partir dos estudantes que vão se matricular para as aulas sobre autocracia, bem como um desejo de prazer autocrático presente neles. Primeiramente, isto é demonstrado no ensaio de uma peça de teatro quando se contrastam estes dois desejos, o anárquico de Ferdi e o autocrático de Karo. Posteriormente, quando Marco contrasta seu desejo anárquico com o desejo autocrático do treinador de polo aquático que é também o professor Wenger, também expresso quando ele encontra sua namorada Karo e diante do desejo autocrático dela de se matricular no projeto de autocracia, ele pede para ela matriculá-lo também sem qualquer interesse no projeto. E novamente ele expressa este desejo anárquico quando quer transar com ela no quarto dela e ela não quer, pois prefere planejar a vida deles em Barcelona, depois do colegial. Também há um contraste entre o desejo anárquico de todos os jovens numa festa e o desejo de Dennis de algo pelo que lutar, um objetivo comum para unir os jovens que só querem diversão, com sexo e drogas como aparece também na festa.
Todavia, assim como acontece com Wenger, e isto é a grande questão da micropolÃtica tal como a define Guattari com Suely Rolnik em MicropolÃtica: cartografias do desejo, de 1984, mas está presente já em O Anti-Édipo desde 1972, cada indivÃduo em sua subjetividade tem ambos os desejos, o paranoico e o esquizofrênico. No primeiro caso, um desejo propriamente de uma estrutura disciplinar ordenada e no segundo caso numa desestruturação dela inconsciente, mas que aqui são tomadas como um desejo de prazer numa estrutura autocrática e o desejo de prazer numa desestruturação anárquica. Porém, ambos os desejos, ou o desejo deste duplo modo, existe em cada sujeito inconscientemente como uma produção do próprio inconsciente considerado por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo como uma máquina de produzir desejos paranoicos e esquizofrênicos, ou ainda, autocráticos e anárquicos. É o caso de Marco que ao mesmo tempo que tem o desejo anárquico também tem o desejo autocrático em relação à sua namorada, por ciúmes dela, e manifesta também este desejo em relação ao irmão mais novo dela, querendo lhe impor a ordem de não fumar.
O que parece ser uma oposição entre um desejo autocrático e um desejo anárquico é apenas uma aparência, pois o que se coloca em questão é que o desejo pode adquirir tanto a forma autocrática como anárquica dependendo de como é produzida a sua subjetividade e esta é a grande questão que o filme A onda apresenta. Nossa subjetividade em relação ao desejo ou ao inconsciente não está definida, ela é produzida constantemente pelo que se produz em nossa volta e a subjetividade fascista não é um governo racional dos seres humanos e tão pouco está sob o poder da razão e do Esclarecimento deles, como pressupõe Kant. O fascismo é um desejo de prazer autocrático inconsciente de disciplina, ordem, normas, regras, estrutura, de uma forma geométrica e aritmética que expressa de modo estético. O fascismo é a transformação de todo um desejo de prazer anárquico num desejo de prazer autocrático como se expressa no filme A onda a partir do momento em que Wenger diz interessante.
Como dar uma aula sobre o fascismo de modo interessante? Como demonstrar para os estudantes de modo interessante que o fascismo tal como surgiu na Alemanha pode ressurgir novamente em qualquer lugar, entre nós, em nós? Como demonstrar não de modo chato a partir de uma teoria, mas na prática, isto é, de modo interessante como isto é possÃvel? Em última instância, pedagogicamente, como fazer de algo tão desinteressante e desprazeroso como o fascismo nazista se tornar algo interessante e prazeroso?
Tais questões que talvez tenham passado na mente de Ron Jones em 1967 e pela mente de Wenger, o personagem dele no filme, colocam em questão um planejamento pedagógico que qualquer professor faz para tornar mais interessante qualquer assunto em sua aula. Todavia, ao pensar deste modo em relação ao fascismo, corre-se o risco como percebeu Ron Jones e Wenger de não simplesmente ensinar algo desprazeroso com mais prazer, mas que algo desprazeroso como o fascismo se torne um prazer para o estudantes. E o pior, nem precisa ser fascista para isto, até mesmo uma anarquista podendo fazer isto, bastando implementar na prática o fascismo para demonstrar como a disciplina, a ordem, as normas, as regras, o cálculo matemático e a forma geométrica, toda uma ordem que culmina no desejo de prazer autocrático fascista deixa de ser desinteressante e desprazeroso para muitos estudantes do ensino médio em qualquer parte do mundo para ser algo interessante e prazeroso como é demonstrado no filme.
O que se vê no decorrer do filme depois que Wenger considera interessante Jens dizer que não é possÃvel o fascismo nazista ressurgir na Alemanha é toda a produção de um desejo de prazer autocrático por Wenger e pelos estudantes no lugar de um desejo de prazer anárquico deles que se expressa esteticamente de diversos modos: a ordenação das cadeiras e mesas em fila, o modo de se sentar com uma postura ereta do corpo, o modo de se dirigir ao professor levantando-se a cada momento em que vai falar, o que tem que falar quando se dirige ao professor, como deve falar quando responde a uma pergunta do professor, ressaltando sua autoridade por "Senhor", a definição de um uniforme para a turma (calça jeans e blusa branca), a definição de um nome e de uma imagem para a turma. Tudo isto, no caso, para tornar mais interessante a aula sobre autocracia e o fascismo, mas também algo que está presente na estrutura disciplinar de muitas escolas de ensino médio no mundo e, principalmente, nas escolas militares nas quais tudo isto é seguido à risca, do contrário, há uma punição, como também na aula de Wenger, e quem não está de acordo com esta estética da autocracia fascista é senão excluÃdo.
Obviamente, esta estética não é propriamente fascista, mas a tradicional que veio a se tornar moderna na escolas e da qual o fascismo se apropriou e fez dela sua principal expressão. É ademais esta junção entre o que é tradicional e moderno, ou a transformação de algo tradicional em moderno, isto é, algo tradicional como moderno, em outras palavras, algo desprazeroso e desinteressante por ser antigo em algo prazeroso e interessante como algo novo, a grande mudança produzida no desejo pelo capitalismo e que o fascismo vai levar ao seu extremo. E é também o que acontece quando professor Wenger transforma uma aula tradicional com estudantes passivos escutando sobre algo já antigo em uma aula moderna com estudantes participativos discutindo algo antigo de modo novo. É a partir outrossim deste momento em que o antigo é transformado em algo "novo" que acontece um entusiasmo tanto em Wenger como nos estudantes, o entusiasmo que Kant dizia ser o leimotiv de toda revolução, e também do ensino podemos dizer. Um entusiamo que vemos brotar no rosto deles em sorrisos de prazer com a aula sobre o fascismo, na teoria e na prática, e não por menos, um desejo de prazer pelo próprio fascismo, pela autocracia, um desejo de prazer que deixa de ser anárquico pouco a pouco para ser autocrático.
Transformar o desprazer em prazer, o desinteressante em interessante, eis algo comum em nosso cotidiano. Em geral, aquilo que é prazeroso e interessante de modo estético é bom de modo ético, mas somente vem a ser bom na medida em que se pensa que o bom é o que dá prazer, o que é interessante como uma aula. Desse ponto de vista, qualquer coisa que dê prazer é considerada boa não importa o que seja, podendo ser até mesmo uma aula sobre o fascismo ou o próprio fascismo, e aquilo que é mais próprio dele, a dor e o sofrimento, advindo da disciplina que é algo propriamente negativo como diz Kant em Sobre a pedagogia, em 1783 e que adquiriu seu auge de violência na escolástica como atesta Erasmo de Rotterdam em De Pueris (Dos meninos), em 1530. E este é o grande problema em termos da micropolÃtica, segundo Guattari, e de nossa época atual contemporânea, na qual “os campeões da liberdade são tão desprezÃveis quanto os outros, os defensores do conservadorismo.” (GUATARRI; ROLNIK, 2005, p. 157. Grifos dos autores.) Ou ainda, que aqueles que defendem a liberdade são defensores senão do maior conservadorismo como foi Hitler em sua época fazendo do tradicional algo totalmente novo aos alemães, e não por menos deste modo se confunde o arcaico com o novo, o tradicional com o moderno, o desprazeroso com o prazeroso, o desinteressante com o interessante, a disciplina como algo negativo em algo positivo, enfim, todo o mal que seria o desejo de prazer autocrático produzido pela disciplina em um bem, posto que substitui o que passa a ser um mal, no caso, o desejo de prazer anárquico.
Eis o grande problema da nova onda fascista atual e que se pode perceber no filme A onda: como na medida em que Wenger transforma a sua aula sobre o fascismo em algo interessante e prazeroso o próprio fascismo se torna interessante e prazeroso para ele e para seus estudantes até que tudo sai, obviamente, do controle, como Kant pressupôs ao dizer que quando ensinamos preconceitos, os preconceitos acabam por se impor contra nós com raiva, ressentimento, violência, levando senão à morte mesmo com todo nosso esclarecimento. É todo um desejo de prazer autocrático que se coloca em questão atualmente em diversas pessoas que faz o fascismo ressurgir em todas as partes do mundo, dentro de salas de aula e através de vÃdeos que não simplesmente falam sobre o fascismo, mas o demonstram na prática como uma disciplina que tem por objetivo excluir e matar todos aqueles que não são disciplinados, ou ainda, todos aqueles que pensam e agem diferente daqueles que impõem a disciplina com toda suas regras, normas, cálculos matemáticos, formas geométricas, enfim, sua ordem considerada perfeita, a melhor, bela, verdadeira, justa e boa esteticamente.
Se hoje cada vez mais pessoas se tornam fascistas é porque, como no caso de Wenger, o fascismo é ensinado a elas sem que elas saibam, quando tudo que é valorizado pelos fascistas é ensinado como algo bom, prazeroso, interessante, principalmente a violência ao outro que provém do desejo de prazer autocrático com a disciplina. Assim é que famÃlias tradicionais que tem como princÃpio principal disciplinar seus filhos aderem facilmente ao fascismo, pois ele faz do tradicional algo novo, aquilo que se deseja como novo e de novo sempre. Pois nele há toda uma disciplina inerente a este tradicionalismo baseado em regras e normas familiares que se expressa também nas escolas mais tradicionais, quando a escola se torna uma extensão da casa e famÃlia tradicional com as mesmas regras e normas disciplinares.
É, por fim, na democracia capitalista, quando esta se torna mais desprazerosa e desinteressante, isto é, quando entra em crise em seu desejo de prazer anárquico que o fascismo tende a se tornar algo prazeroso e interessante com a produção de um desejo de prazer autocrático e uma nova onda fascista surge no Brasil e no mundo cujas consequências ainda não podemos saber quais serão, mas a história já demonstrou que podem ser as piores possÃveis assim como no filme A onda.
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