O passeio do esquizo


Quando começamos a andar sozinhos? Há algum tempo formulei esta pergunta e tento lembrar de quando isto aconteceu comigo, mas não consigo lembrar. O motivo de formular esta pergunta foi ver o quanto meu filho depende de mim a cada momento em que saímos juntos e não sabe ainda andar sozinho. Mais ainda, o fato de na idade dele, eu já perambular por ruas e mais ruas em torno de minha casa. Mas era outra época e andar sozinho hoje em dia é muito mais preocupante do que antes, pelo menos é o que pensamos, não o que é necessariamente de fato em algumas circunstâncias.

Andar é sinônimo de se libertar. Andar e libertar não são, obviamente, verbos semanticamente semelhantes, mas afetivamente remetem um ao outro. Quando bebês, desejamos andar, movimentar-mo-nos de algum modo, rolando em princípio, apoiando-nos nos joelhos e mãos em seguida até conseguirmos o equilíbrio labiríntico perfeito para darmos os primeiros passos. A partir daí estamos livres para correr pela casa e na rua até um poste aparecer em nossa frente ou nossos pais simplesmente mandarem que paremos de correr pela casa. É a este afeto produzido pelo andar que se remete a liberdade do corpo e da mente que encontra em cada vão da casa ou apartamento objetos novos para experimentar seus sentidos e em cada rua pessoas, animais, bicicletas, carros e tudo mais nela para uma experimentação ainda maior de suas potencialidades perceptivas, afetivas, mentais.

Mas andar pela casa sozinho nu imberbe não é a mesma coisa que andar na rua paramentado com roupas de bebê em princípio e com outras roupas no decorrer da vida e, dependendo da saída de casa, isto pode ser traumático ao ponto de gerar agorafobia. Algo cada vez mais comum, mesmo que pessoas não sejam diagnosticadas com esta doença que pode ser definida simplesmente como medo da rua por tudo que ela traz de insegurança em relação à casa e o sentimento de segurança que esta nos dá como a barriga de uma mãe antes de nascermos. Agorafobia que, de modo mais complexo, é um sentimento de ansiedade pelo desconhecido que paralisa as pessoas e faz com que elas não queiram sair de casa ou do lugar nem um passo se quiser sob o risco de acontecer alguma coisa.

Ao pensarmos nesta doença, temos a dimensão do que significa andar sozinho, da liberdade que ele significa em nossa existência e como isto se torna cada vez mais complicado nos dias atuais dependendo das circunstâncias em que vivemos, principalmente se a pessoa for uma mulher com determinada roupa que estimule o prazer masculino, não apenas estético, mas libidinal e, em muitos caso hoje, violento. À medida em que cresce a violência não apenas contra mulheres, mas também contra negros, homossexuais e pobres nas grandes cidades principalmente, aumenta o sentimento de insegurança e a agorafobia deixa de ser um fenômeno mental para ser um fenômeno social que invalida as pessoas em suas vidas preferindo ficarem em casa do que saírem para um simples passeio na rua ou na praça do seu bairro ou pela cidade. Também a dominação em regiões pobres das cidades por meio de traficantes impossibilita cada vez mais a saída para andar como uma ação livre, o direito de ir e vir fundamentado em lei como condição legal da liberdade, um direito a andar que adquirimos e que é cada vez mais cerceado pela violência dos preconceitos e por criminosos.

A insegurança em relação ao crescimento da violência e do preconceito atualmente não é a única condição de um fenômeno de agorafobia social. Cada vez mais as pessoas estão vivendo mais com os seus pais demonstrando insegurança em levarem uma vida sozinhas economicamente ou afetivamente ao se envolver com alguém numa vida a dois. E mesmo quando uma vida a dois acontece não é muito distante da casa dos pais com toda uma assistência familiar necessária, até mesmo morando-se em cima ou ao lado da casa dos pais, de modo que o casamento não produz muitas mudanças na vida da pessoa quanto a experimentar uma vida sozinha. Não há deste modo um abandono familiar, um andar sozinho longe dos pais levando uma vida distante deles e sem qualquer possibilidade de seu auxílio, com a sensação angustiante de estar só e ter que resolver seus problemas mentais, afetivos e de relacionamentos por conta própria, sem alguém que lhe dê alento, uma solidão quase absoluta que lhe lança num turbilhão de sensações no qual é preciso sobretudo aprender a pensar e observar tudo em sua volta buscando se encontrar como se estivesse perdido numa selva, de pedra no caso de uma cidade.

Não por acaso, quando nos encontramos perdidos numa situação desta em algum lugar, se não temos ninguém a esperar ou qualquer meio de comunicação, a melhor solução é andar observando cada detalhe em sua frente para se orientar e chegar a algum lugar mais longe da confusão de afetos e pensamentos em que se encontra parado, catatônico devido a eles. Eis algo que poucas pessoas pensam neste caso quando estão em meio à situação problemática de desorientação espacial, mas também afetiva e mental, isto é, de como o andar possibilita um equilíbrio de nosso corpo, mas também da mente, aquilo que Deleuze e Guattari resumiram tão bem como o passeio do esquizo. É como se no labirinto no qual fluidos regem nosso equilíbrio corporal ao andarmos estivesse a solução para nossos problemas naquele momento. Solução que vai além de uma questão de saúde do corpo por meio de exercícios físicos como advogam muitos e que é um benefício também à nossa mente, libertando-nos daquilo que nos impede de pensar e nos fazendo encontrar um equilíbrio em nossos afetos e pensamentos ao mesmo tempo que encontramos um equilíbrio do corpo ao andar.

Quando criança, como outras, eu não parava de andar e com frequência seguia as outras crianças por algum lugar correndo atrás de um bola ou simplesmente uma atrás da outra. Depois me acostumei a grandes períodos catatônicos sentado em frente de casa ou em algum lugar, parando por horas par ver as pessoas andando pela rua. Até que resolvi andar, simplesmente sair para andar e isto se tornou uma libertação não apenas do meu corpo catatônico ou de uma saúde sedentária, mas principalmente de minha mente e todos os afetos que faziam ficar sedentário principalmente em meus pensamentos. Andar um pouco se tornou um projeto de saúde mental para a prisão que me encontrava frequentemente em casa, ou ainda, dentro de um quarto como muitos adolescentes fazem, sobretudo andar sozinho até um determinado ponto sem a menor necessidade de chegar nele ou mesmo a necessidade de voltar dele em determinada hora. Apenas sair para andar um pouco e desanuviar a mente como se diz, respirar um ar puro ainda que impossível numa grande cidade, mas sem ser este meu objetivo e, sim, andar e por um momento alcançar a liberdade na ponta dos pés a cada passo mesmo que fosse por caminhos já muito percorridos como o calçadão da praia onde vou com frequência atualmente.

Andar sem preocupação, eis o passeio do esquizo, eu poderia dizer, um andar libertador que contradiz toda a lógica da cidade em que vivemos no qual nossos passos são contados hoje literalmente pelo tempo cronometrado dos relógios e geridos por todas as preocupações cotidianas. Um andar que nos faz sair do lugar comum e encontrar coisas diferentes em nossos passos admirando tudo que há em nossa volta mesmo que já tenhamos visto diversas vezes o que vemos. Um andar que busca um equilíbrio consigo mesmo, com a natureza, mas principalmente com a cidade que nos dá tanta insegurança hoje em dia, equilíbrio que é o que nos possibilita sairmos do lugar e seguir em frente, sempre em frente, para além de tudo que nos impede de andarmos livremente.

Não lembro quando comecei a andar sozinho sem pegar nas mãos de meus pais, mas lembro que desde muito cedo aprendi a valorizar as andanças apreciando cada caminho a pé ou de ônibus e sentindo uma liberdade por estar ali, andando, simplesmente andando, locomovendo-me. Talvez seja isto o que Aristóteles em sua filosofia peripatética queria ensinar aos seus discípulos quando estimulava eles a andarem atrás de si pelos jardins em volta do seu Liceu ensinando-os seus conhecimentos, mas sobretudo a andar, serem livres em seus pés e pensamentos, algo que ensino no primeiro dia de aula aos estudantes fazendo-os se perderem pela escola até a sala onde realizo a primeira aula de filosofia dos recém chegados ao ensino médio e tudo para eles é desconhecido. Talvez seja isto que Aristóteles aprendeu com Sócrates e que Platão não aprendeu, quando Sócrates filosofava andando por Atenas fazendo as ideias circularem pelas mentes e corpos de quem encontrava pela frente. Sócrates que andou muito durante sua vida e aprendeu ao fim dela a mover seu pensamento para lugares pouco comuns para a maioria dos gregos e que nem mesmo ele sabia quais eram com sua habitual ignorância ao dizer só sei que nada sei.

Andar é romper com a inércia que a natureza impõe ao nosso corpo e mente buscando na imobilidade alguma segurança. É libertar-se dos afetos e pensamentos que nos impedem de sermos livres. É passear como esquizo, sem paranoia, sem estarmos doentes da cabeça ou dos pés. É seguir o nosso próprio caminho sem nenhuma mão para nos agarrar ou para agarrarmos, buscando em nós mesmos a segurança em cada passo firme sobre a terra, esta que está sempre conosco para apoiar nossos pés e nos acolher em nossas quedas, pois, como diz aqueles que nos estimulam a saltar algum obstáculo, do chão não se passa.

De qualquer modo estamos seguros quando aprendemos a andar sozinhos como crianças que andam despreocupadamente e, ao cair, choram, mas voltam a caminhar de novo, pois aprendem cedo que é andando que se libertam do lugar que são postas muitas vezes impedidas de andar. Não por acaso, o castigo infantil mais comum sendo aquele que os pais as colocam num canto, sentadas ou em pé, fazendo da imobilidade sua prisão e do andar para elas cada vez mais o sinônimo de ser livre. E assim desde crianças aprendemos como andar é se libertar, inclusive dos nossos pais e de todos aqueles que nos oprimem em algum tempo querendo que fiquemos parados, sem mover o corpo e o pensamento para além dos limites que eles querem nos impor.

Mover o corpo em meio ao que lhe afeta e obriga a ficar parado é movimentar a mente e os pensamentos para além dos limites impostos, mudar a cada passo os afetos do corpo e pensamentos da mente libertando-se. Andar é pensar, pois pensar é ser livre. Quando andamos, pensamos, e quando fazemos isto somos livres, adquirimos nossa independência, a maior de todas, a da nossa vida, mesmo que seja na completa insegurança dela a cada momento. Precisamos andar, precisamos pensar, precisamos ser livres andando e pensando nossos próprios caminhos, passeando como esquizo pelas ruas sem temor e preocupação em busca de um sentido para nossa existência que está senão em cada passo que damos a cada momento sozinhos sem deixar que a angústia de estarmos sós na andança nos faça querer deixar de andar, pensar, sermos livres de modo independente, pois o contrário disto é senão a morte.

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