O imprevisível afecto


É estranho como as coisas nos afetam. Vivemos rodeados de acontecimentos em nossa vida, acontecimentos imperceptíveis em nosso corpo e mente e pensamento. Coisas que vêm e vão em seu devir constante que se enlinham num novelo em que fios se sobrepõem rodeando-se um sobre o outro desordenadamente quando enrolados a mão. E que no fim formam um novelo e, em nós, uma novela na qual os afectos acontecem estranhamente em capítulos com acontecimentos inesperados, mesmo que o esperemos do decorrer de nossa vida.

Se muita coisa acontece em nós como uma novela advinda do nosso entorno em novelo, há sempre um momento em que há uma estranha desarmonia entre nós e as coisas produzida por um imprevisível afecto entre nós e elas. Desarmonia porque é sempre de modo desarmônico que os afectos acontecem, que adentram em nós causando um ouriçamento no corpo, um rebuliço na mente, um enlinhamento de pensamentos, muitas vezes imperceptível e que somente percebemos quando se forma o novelo de lã e nele nos vemos enredados numa novela buscando chegar ao fio de sua meada, o último capítulo. Aquele momento em que o fio de linha se prende a algo ou se contorce em si mesmo como origem de todos os afectos que sentimos e nos levou às perguntas: o que aconteceu? O que está acontecendo? Por que está acontecendo isto comigo?

Afectos são sempre abalos sísmicos da Terra em seu torno, seu tornar-se, sua volta em si mesma movendo tudo em si e produzindo fissuras em sua crosta insensíveis a maior parte, mas algumas vezes abrindo rachaduras imensas na superfície como os afectos em nossa vida. Eis a estranheza dos afectos, eles são sempre incompreensíveis e somente por meio de torneios, ou ritornelos, podemos nos deter neles tentando compreender os acontecimentos que produzem nossa vida. Estranhos acontecimentos que buscamos organizar em nosso corpo, ordenar em nossa mente, conceituar em nosso pensamento de algum modo tentando compreender a realidade que nos afecta retirando de nossos sonhos e ao mesmo tempo nos fazendo voltar a eles, pois é sonhando que pensamos nos afectos que acontecem em nossa vida, recordando-os. Ou seja, pensando-os a partir de um fio que estabelecemos amarrando-os, fio tecido por eles próprios como um destino produzido pelas míticas Moiras que nós percebemos apenas quando já estamos enlinhados nele e tentamos nos desenlinhar.

A estranheza dos afetos é a de sermos atingidos por algo em algum momento, mas principalmente por aquilo que nos atinge demonstrar uma vulnerabilidade em nossa estrutura orgânica, ordenação mental e em nosso pensamento das coisas por conceitos ou, em nossa capacidade, de nomear aquilo que nos acontece. Se os afectos se remetem a sensações, sentimentos e sentidos e, deste modo, a uma lógica, eles são não por menos a subversão a isto tudo na medida em que acontecem e toda esta lógica é senão uma tentativa de limitá-los de algum modo. Pois estamos constantemente nos organizando, ordenando-nos e pensando de modo a evitar os afectos que acontecem em nós, impondo uma estrutura à gênese dos acontecimentos que eles produzem em nossa vida. Não uma imposição de modo autoritário, mas para nossa própria sobrevivência, pois afectos demais podem nos destruir orgânica, mental e conceitualmente como ser, o que não quer dizer que os afectos sejam inimigos do ser e que devam ser deixados de lado por conta das sensações, sentimentos e sentidos que eles produzem. Pelo contrário, os afectos definem o nosso ser que é sempre afeto de algo em seu devir a si mesmo e se somos algo, isto é, um ser, é senão pelos afectos que acontecem em nossa vida atravessada por afectos por todos os lados a nos abrir fissuras muitas vezes indizíveis.

O afecto é uma falha, uma ruptura, um desarranjo orgânico, mental e conceitual para o qual nunca estamos preparados, ou estamos, mas não adianta, pois nunca sabemos o que vai acontecer, que afectos aparecerão de modo perceptível a nós como fenômenos. Tão pouco podemos evitá-los com toda esperança, antecipação, expectativa, especulação ou previsão científica sobre o que vai acontecer, pois tudo depende dos afectos, literalmente deles, da introdução deles em algum momento em nossa vida. Introdução desavisada adentrando nosso corpo, mente e pensamento constantemente nos pondo em desatino quando o destino nos tem compelido em si, em seu joguete de afectos enredando-nos em seu fio cuja meada desconhecemos totalmente.

A estranheza que os afectos produzem é o que os torna indesejável para muitos. Organizadas, ordenadas e conceitualmente definidas em suas vidas, muitas pessoas não gostam de ser afetadas, de mudanças bruscas, de desatinos que as façam perder o eixo do mundo em que vivem. Não querem ser atormentadas como Hamlet, ou pior ainda como Édipo, e se verem diante da morte como a falência de seu organismo, mente e pensamentos, afetadas por algo que as impeça de ser o que é. Em outras palavras, um ser que conhece sua existência sempre seguindo cotidianamente os passos do dia anterior, de modo semelhante sempre, sem mudar o caminho ou fazer do mesmo caminho algo diferente, buscando seguir sempre um mesmo caminho, pois, ainda que tedioso, ainda é um caminho... Mal sabendo que são os afectos que o levam àquele caminho, todos os dias, tediosamente, em seu ser.

De fato, não importa saber a que caminhos nos levam os afectos a não ser quando chegamos à velhice e buscamos recordá-los, deslindar o novelo de lã e a novela de nossas vidas, tudo que aconteceu nela e, numa narrativa mítica e histórica, pensar nos fatos e em como eles nos afetaram, fazendo uma biografia de nós mesmos que se poderia ser chamada de autobiográfica seria talvez menos por ser feita por nós como seu autor de modo autônomo do que pelo modo automático como a fazemos, movidos pelos afectos do início ao fim, no caso, afectos dizíveis, os que queremos dizer. E é sempre como um apelo ao querer-dizer que os afectos nos afetam fazendo com que nós busquemos querer-dizê-los de algum modo, pois já não podemos evitar falar deles, reprimi-los em nosso corpo, mente e pensamento, porque somos impelidos, enfim, a falar sobre eles e o que aconteceu a partir do momento em que fomos afetados deste ou daquele modo, seguindo a partir deste momento um determinado caminho, não determinado por nós, mas pelos afectos.

Podemos e devemos determinar um caminho em nossa vida independente dos afectos, isto é, independente do que os afectos nos fazem. Não de modo ascético como pensava Platão ou de modo ordenado geometricamente como pensava Spinoza. É necessário limitar sua ação sobre nós sob o risco de perdemos a possibilidade de seguir um caminho, qualquer que seja, e ficarmos inertes numa encruzilhada sem saber por onde seguir com tudo que nos afeta. Neste caso, quando no mínimo dois afetos que se cruzam e nos atravessam nos pondo em seu meio numa dúvida atroz, o ser ou não ser de Hamlet, ou ainda, de Parmênides muito antes dele, e mais ainda, o de Édipo na encruzilhada de sua vida. E se apenas com dois afetos já nos colocamos sob a inércia da dúvida do ser ou não ser, o que dizer quando é uma multiplicidade de afectos que nos atravessam e já não é mais uma inércia ou catatonia a que eles nos impelem e, sim, a um movimento incontrolável do corpo, mente e pensamentos que já não conseguimos dominar em esquizofrenia?

Eis o problema dos afectos que se é um problema muitas vezes é por paranoia em relação a eles, tentando controlar a todo instante o que acontece em nós ou conosco, limitando os afectos em nossa vida para que ela seja vivida de modo estruturado como um organismo, em ordem e pensada no que é é em seu ser. Se preocupar com os afectos que acontecem em nossa vida é se preocupar em não viver afectos e, consequentemente, não ter nada o que recordar na velhice, pois nada lhe afetou ao ponto de ser recordado. Desse ponto de vista, se existe uma maioridade da razão que é quando nosso pensamento se torna esclarecido e nossas ações visam a liberdade em relação a uma ordem exterior, isto é, uma autonomia em relação aos afectos, pelo contrário, existe uma maioridade dos afectos que é quando nosso pensamento busca compreender os afectos que constituem o nosso esclarecimento não podendo ser evitados por este em sua autonomia, isto é, em sua nomeação própria num conceito, a partir de uma ordem mental ou estrutura orgânica, e compreendemos que os afectos, mais do que a razão, constituem o nosso ser. E, deste ponto de vista, a nossa razão de ser é senão a razão dos afectos, isto é, uma tentativa de compreendê-los em sua multiplicidade, reduzindo-os, em geral, àqueles que nos fazem ser o que somos em nossa existência, e nos alegram, e aqueles que virtualizam nosso ser naquilo que não é em sua existência, mas poderia ter sido se não fossem os afectos e o que aconteceu a partir deles conosco em nossa existência nos deixando muitas vezes tristes, ressentidos e negadores dos afectos.

Ser ou não ser, neste caso, esta questão somente é possível pelos afectos que nos atravessam e são reduzidos por ela numa encruzilhada na qual nos pomos a pensar, ordenar e organizar nossa existência a partir da razão que busca limitar os afectos, de uma razão de ser deste ou daquele modo a seguir um determinado caminho independente dos afectos, mas que é senão o que os afectos nos fazem seguir. Em geral, podendo ser dois caminhos: um, trágico e, portanto, triste, outro cômico e alegre, mas também existindo um terceiro, moderno, no qual nos pomos no entrecruzamento constante destes dois, o dramático, no qual somos alegres e tristes dependendo dos afectos de cada dia. E assim seguimos a vida e seus imprevisíveis afectos num caminho nunca tedioso se soubermos compreender os afectos em nossa vida como velhos a recordar tudo que vivemos e, assim, vivermos a vida e seus afectos imprevisíveis sem problema, pois eles são o que definem a nossa história, aquela que narramos e outros narrarão em seu destino.

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