A morte da sogra
O casamento é um ritual comum em muitas tradições patriarcais na qual há uma valorização do sogro enquanto pai e patriarca na entrega da mulher à quele que se pretende casar com ela. Nestas tradições, a permissão da mulher a ser desposada e de sua mãe, a futura sogra, não importam a não ser quando se trata de um filho e não de uma filha. Faz parte do contrato social estabelecido há tempos em muitas culturas que as mulheres não têm o direito de expressarem seus sentimentos ou pensamentos a favor ou contrários à união conjugal. Elas são bens trocáveis em alianças polÃticas ou econômicas quando são vendidas por dotes e a sogra tem como filiação toda uma tradição de mulheres que foram trocadas em matrimônio para benefÃcio polÃtico e econômico de uma famÃlia, clã, reino ou império de uma nação. Como bem trocado, a mulher é útil em determinado momento, podendo-se fazer com ela o que se quer, até mesmo devolver porque não serve como esposa para o marido. Neste caso, é em geral a sogra quem determina este valor de uso da mulher como esposa, pois é ela senão aquela que detém o conhecimento da função da mulher na famÃlia como esposa ensinando as mulheres de seus filhos a se comportarem como mulheres e esposas, bem como futuras sogras com a devida consciência de sua utilidade atual e futura.
Se a sogra tem um valor na maioria das culturas é, deste modo, por conseguir identificar a mulher que fará bem ao filho como esposa e que ensinará a mulher dele a ser esposa e também sogra como ela na função de encontrar a esposa ideal para seu filho continuando assim a tradição da função familiar das sogras que é a tradição da utilidade das mulheres dentro de uma famÃlia desde o parto. Neste sentido, segundo um pensamento tradicional, a mulher é sempre algo útil na famÃlia e para a famÃlia e é a mulher que, em geral, defende esta utilidade, a sua utilidade, para não se sentir obsoleta talvez, pois o que seria das mulheres sem toda esta tradição de utilidade delas para os homens, parindo filhos, cuidando deles, da casa, trabalhando para cuidar de tudo isto economicamente e, além disso, ainda cuidar dos homens com carinho e sexo toda vez que ele quiser? Com certeza, seria uma dessas mulheres da vida que o pensamento tradicional familiar rejeita tanto por essas mulheres não valorizarem a sua utilidade e a defesa da famÃlia, de ter filhos e servir ao marido como muitas delas e homens tanto valorizam, e, futuramente, a função de sogra. Uma função para a qual as mulheres são treinadas desde cedo ao observarem o comportamento uma das outras e estabelecerem um juÃzo de valor sobre as outras mulheres e sobre si mesmas que é um juÃzo de valor para a mulher ser respeitada como futura esposa para o marido, como mulher de famÃlia, uma mulher pra se casar e não apenas para se ter uma aventura sexual que não tem valor algum diferente da mulher tradicional que tem o seu valor de troca por uma aliança polÃtica ou econômica.
Não importa a modernidade polÃtica ou econômica, existe todo um pensamento tradicional no qual a mulher se vê e deve se ver como um bem trocável e que como tal deve ser bem apresentável para ser adquirida e, como um produto do mercado, ser útil e sua utilidade é definida por ser esposa, mãe, sogra que faz dela ser respeitada e não por ser uma mulher em sua vida. Diferente do homem, neste caso, que é valorizado na sociedade em conformidade com sua natureza máscula, de masculinidade, enquanto macho, e é respeitado por isto e pela violência inerente a estas qualidades, a mulher não é valorizada em sua natureza feminina, de feminilidade, enquanto fêmea. Só há um respeito dela quando adquire uma utilidade social, no caso, quando é de famÃlia ao se tornar esposa, mãe e sogra ou se ver nela a possibilidade disto. Ou ainda quando assume o papel de homem com suas qualidades masculinas e patriarcais se tornando uma matriarca e sendo respeitada por parecer um homem ao agir como ele na famÃlia exercendo o duplo papel, neste caso, como sogra e como sogro. Algo sui generis, não por não ser algo comum hoje em dia mulheres serem chefes de famÃlia ou de Estado, mas por não ser esta a função da mulher na famÃlia segundo um pensamento tradicional e ela exercer a função de um homem na famÃlia e no Estado ser um grande problema para muitos homens e mulheres que defendem um pensamento tradicional e consideram que a mulher não serve para a polÃtica ou economia a não ser como bem trocável polÃtica e economicamente e que ela deve ser apenas esposa, mãe e a sogra de quem se ri em piadas.
Ser sogra é a última função da mulher numa sociedade de pensamento tradicional, não necessariamente tradicional polÃtica e economicamente, mas nem por isso a função mais respeitada. Sua depreciação demonstra claramente a depreciação que se tem em relação à mulher desde o momento em que nasce na qual o pensamento do homem é, em geral, a futura troca dela, quando a filha é vista já como uma mulher que vai ser de alguém sexualmente sem o seu consentimento. O que em geral isto acontece para os homens quando a mulher não ensina a filha desde pequena a se comportar como uma mulher de famÃlia, isto é, uma esposa e mãe desde pequena, quiçá uma sogra a saber diferenciar a mulher da vida que não serve pra casar e a que serve, por ter ela aprendido desde cedo isto.
As piadas com sogras são o último desrespeito que se manifesta em relação à s mulheres, mesmo de famÃlias, e a valorização da morte das sogras é a consagração de tudo isto para eles em seu desejo em muitos casos. Tanto para mulheres como para homens, o motivo para isto parece claro: a sogra é um rival. No caso do homem, uma rival de seu desejo de submeter a mulher à sua utilidade, pois se com o pai de uma mulher, o futuro sogro, é sempre possÃvel obter-se uma aliança polÃtica e econômica, com a mãe dela, futura sogra, isto nunca será possÃvel, sendo sempre uma possÃvel má influência para a filha, e a quem se reclama em geral por causa da filha como se reclamasse a uma empresa por um defeito de fábrica. No caso das mulheres, também a sogra é uma rival, mas devido à utilidade que querem demonstrar para os maridos tal como as mães demonstram para os filhos, por querem ser senão ambas úteis aos homens como esposas e mães.
Para o homem e a mulher com um pensamento tradicional, a sogra é sempre um problema cuja solução é o conflito ou a piada, ou ainda, a morte. Ao saber da morte de minha ex-sogra, não fiquei alegre com isto, senão muito triste, por lembrar de quando pedi a permissão para me casar com sua filha, receoso por tudo que tinham me dito sobre si como matriarca da famÃlia a qual todos respeitavam e não menos eu naquele momento. Triste por lembrar dela me perguntar se eu gostava de sua filha e me pedir que cuidasse bem dela, bem como repetir esta pergunta e se eu estava cuidando bem dela todas as vezes que fui visitá-la como genro, e eu lhe dizia apenas “sim” como uma promessa, mesmo que não estivesse fazendo isto tão bem. Uma promessa que é uma dÃvida que ainda tenho com ela como mulher antes de ser esposa, mãe e sogra desde a primeira vez que lhe disse sim, mesmo não tendo sido para ela o genro e o marido que esperava para sua filha naquele dia. Por saber que não eram laços polÃticos ou econômicos que nos uniam naquele momento, mas de amor por uma pessoa em comum não há porque se alegrar com sua morte, tão pouco fazer piada consigo, apenas uma gratidão por tudo que foi para mim durante o pouco tempo que passamos juntos em vida sentados numa cadeira de balanço olhando da varanda de sua casa a rua e o mato a perder de vista num silêncio cortado apenas pelas lembranças tão comuns quando se está a contemplar a vida.
À Dona Netinha, in memoriam.
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