A pedagogia da violência
Há muito o que dizer sobre o filme O experimento de Milgram (Experimenter, 2015) sobre a experiência científica de psicologia social de Stanley Milgram na década de 60 e do efeito devastador que as constatações de sua pesquisa produziram ao demonstrar que se os americanos venceram a guerra contra o fascismo alemão, o germe deste fascismo ainda se mantinha presente em cada pessoa independente de ser alemão ou não, bastando ser estimulado por alguém que tivesse o poder de fazer o que Hitler fez, seja numa dimensão de poder nacional, seja numa dimensão de poder particular numa hierarquia burocrática da qual ninguém escaparia, nem mesmos os cientistas em toda sua busca de neutralidade científica.
O fato comprovado por Milgram de que qualquer pessoa pode ser violenta com outra em determinadas escalas ao obedecer uma ordem ou autoridade não surpreende e a questão problemática que sua pesquisa coloca não seria tanto esta, podemos dizer, pois é parte da natureza hurmana a propensão à violência, mesmo que alguns queiram negar, bastando um estimulo para isto. Não há nenhuma novidade científica no fato de que o ser humano pode ser violento, independente da raça, sexualidade, gênero, religião ou conhecimento técnico, científico e filosófico ou cultura de modo geral em um determinado momento por um determinado estímulo. A história tem demonstrações suficientes para se perceber isto e não seria necessário o experimento de Milgram para comprovar.
Psicologicamente, o fato de se poder estimular alguém à violência tão pouco demonstra algo de novo. Em geral, o ser humano é estimulado a ser violento de um determinado modo pelo ambiente em que vive naturalmente ou o ambiente familiar, escolar, de amigos ou de trabalho, em cada um deles podendo acontecer de alguém ser estimulado a violentar outras pessoas de algum modo. Pois em cada grupo há uma necessidade de coesão que produz em cada um a necessidade de ser aceito e, para isto, violentar outros ou a si mesmo, dependendo do quanto cada grupo queira se afirmar ou alguém queira se afirmar no grupo. E não necessariamente a ação violenta é física em relação a outras pessoas, podendo ser psíquica com a simples exclusão daqueles que não se quer no grupo ou que o grupo hostilize, bastando apenas uma palavra para denotar toda a violência, principalmente quando são dirigidas palavras ofensivas em relação às minorias raciais, étnicas, femininas, sexuais e de gênero, ou ainda, de deficientes físicos ou psíquicos.
O experimento de Milgram não diz respeito simplesmente a isto e tão pouco seria necessário para demonstrar isto, por mais que se refira também a isto, pois há algo além disso que o seu experimento demonstra e que diz respeito propriamente ao método de sua pesquisa questionado do ponto de vista ético por outros cientistas. Isto porque, em seu método, ele engana as pessoas que dele participam simulando que elas produzem alguma violência em relação a outra, quando, de fato, não estão produzindo nenhuma violência. Ou, se estão produzindo alguma violência é apenas a si mesmas ao se verem diante do problema de continuarem ou não a obedecer a ordem para prosseguirem no teste em que a cada erro da pessoa, elas devam dar um choque nela que de fato não acontece, mas são levadas a acreditar que acontece e que ao pensarem que estão dando-o, algumas se sentem mal por fazer isto a outra pessoa, mas mesmo assim continuando a executar a ordem que lhes foi dada.
Ao documentar a propensão das pessoas a continuarem a produzir violência em outra pessoa por terem recebido esta ordem mesmo que não queiram fazer isto, Milgram demonstra de fato que qualquer pessoa pode ser tão violenta quanto foram os fascistas alemães, mesmo que não haja nenhuma ideologia estimulando eles a fazerem isto. Ou ainda, demonstra o quanto as pessoas abdicam de sua capacidade de pensarem e decidirem por si próprias o que devem fazer ao obedecerem cegamente a ordem de outrem, como Hannah Arendt observou no caso de Eichmann, contudo, com a diferença que no caso de Eichmann ele corria risco de morte se não obedece ao Reich, o que não era o caso das pessoas voluntárias na pesquisa de Milgram. E tão pouco, neste caso, os voluntários podiam se imiscuir da culpa como o fez Eichman simplesmente porque estava obedecendo uma ordem, pois eram livres para decidirem não a executarem a qualquer momento sem qualquer punição já que estavam apenas participando de uma pesquisa, de modo que não é uma obediência cega que se coloca em questão simplesmente no experimento de Milgram, por mais que se possa observar e demonstrar esta cegueira.
Ora, talvez nos perguntemos, mas qual seria, enfim, a questão colocada com o experimento Milgram? Ao observarmos mais atentamente o método utilizado por ele, podemos chegar a uma resposta para isto, mesmo que não seja a resposta dele mesmo para seu experimento. Isto porque, ao submeter as pessoas voluntárias ao experimento, Milgram não simplesmente dá a elas uma ordem, tão pouco apenas um estimulo à violência ao dar a elas uma ordem, ou ainda, apenas as coage em seu poder para que façam o que ele manda para fazer parte do grupo de pesquisa dele. Milgram dá a elas a liberdade de poder violentar o outro sem qualquer consequência para si, sem qualquer punição, e o modo que ele dá esta liberdade é o mais problemático de todos, pois é o pedagógico na medida em que cada pessoa voluntária faz o papel de um professor diante de um estudante que deve memorizar algo, do contrário, levará um choque.
Eis o maior problema do choque que o experimento de Milgram produz não apenas naqueles que são seus voluntários e não são voluntários, mas também em quem assiste ao filme sobre sua pesquisa. Um choque que não é ver as pessoas violentando outras ao obedecerem uma ordem, algo que o nazismo demonstrou claramente e que Milgram apenas reproduziu em laboratório, e, sim, de ver as pessoas fazendo da violência do choque uma pedagogia. Em outras palavras, em transformarem a violência numa pedagogia e, deste modo, produzirem uma pedagogia da violência.
Todo o experimento de Milgram é determinado pelo fato de que cada pessoa não vê na sua ação violenta um mal a ser feito a outro e, sim, um bem por se ver como um professor diante de um "aprendiz" e tem como princípio a violência deste no caso dele esquecer aquilo que deve aprender. Neste caso, não é uma ordem que cega necessariamente a pessoa, mas o fato de que ao se ver como professor ela não vê em sua ação violenta um mal e, quando o vê e o evita, mesmo assim segue fazendo o que tem que fazer, porque é o bem para si no momento enquanto professor. Não é o que alguns desejam fazer e mesmo recusam em algum momento a fazer questionando se é um bem, mas que acabam por fazer por ser o bem a ser feito no momento como parte daquela pesquisa e serem senão pagos para isto, como um professor particular contratado para dar uma aula ou lição a alguém.
Neste sentido, o choque que cada voluntário não apenas dá em alguém, mas também sente ao dá-lo, ou ao pensar estar dando-o, representa toda uma pedagogia da violência que é implementada frequentemente na sociedade para ensinar o que é a realidade, um choque de realidade como se diz frequentemente. Um choque necessário, diriam muitos, para se aprender o que é a realidade ou o que é a vida na realidade na qual se não se fizer o que deve ser feito vai sofrer em algum momento e que, para não sofrer, é preciso fazer os outros sofrerem, isto é, ser violento com eles. Deste modo, cada pessoa ensinando a outras que devem ser violentas por terem sido violentos com elas numa pedagogia da violência não por menos exercida pela violência, que teria a violência como seu princípio, meio e fim.
A experiência de Milgram não demonstra, deste modo, simplesmente como a violência se produz pela obediência a uma ordem ou autoridade. Ela vai além disso ao demonstrar indiretamente como cada pessoa ao se ver com o poder sobre outrem e com a liberdade de poder lhe violentar, no caso, como professor, cada pessoa considera que a violência que está produzindo no outro é um bem, pois está ensinando algo a alguém, mesmo que não seja um bem para o outro ou para si de fato. Deste modo não é uma ação propriamente por obediência a uma ordem independente de questionamento como pressupunha Arendt no caso de Eichmann, mas uma ordem que mesmo questionada por ter como princípio a violência e dever ser executada como violência, é uma ordem cuja violência é avaliada como um bem a ser feito em determinada circunstância para ensinar alguém por medo de se colocar no lugar do aprendiz e ser violentado como ele por não fazer o que deve ser feito ou aprender o que deve aprender. É uma ação violenta pragmática que funciona na medida em que é a pedagogia que se coloca em questão, o fato de que se deve ensinar o outro a aprender não apenas um conteúdo, mas que a violência é um bem para si.
Somente do ponto de vista desta pedagogia da violência a partir da qual a violência é um bem a ser ensinado e é pressuposta num método de ensino que se pode aceitar a experiência científica de Milgram moralmente, pois do ponto de vista moral também a ciência para ensinar o que é a realidade por meio de suas demonstrações julga necessário recorrer à violência, em geral de animais, mas também de seres humanos. Como neste caso por meio de uma violência psicológica e no caso de doentes psíquicos recorrendo-se a tratamentos os mais cruéis possíveis para que ele "compreenda" o que é a realidade. Apenas de um ponto de vista ético é possível julgar toda a pedagogia da violência em relação à experiência de Milgram, incluindo a dele próprio como cientista ao violentar psiquicamente seus voluntários, pois de um ponto de vista ético, não é possível pensar num bem que tenha em vista apenas um mal menor como pensam os utilitaristas éticos, reduzindo a ética a um moral tal como fez Maquiavel e Kant em certa medida, pois ele escapa a esta moral quando a máxima que rege sua metafísica do costume invalida qualquer ação que seja tão somente moral, isto é, tenha em vista um interesse particular ou de grupo ao ser considerada boa individualmente em uma determinada circunstância, seja para um cientista ou professor ou grupo destes.
É um erro pensar, neste caso, que a disciplina pedagógica de Kant tenha em vista a violência tal como vai se impôr numa sociedade disciplinar na qual a disciplina é propriamente a violência e o professor vai exercer um papel violento em sua autoridade e utilizar de violência para mantê-la no governo de sua sala como um governante de Estado. Posto que a disciplina em Kant tem em vista limitar a violência natural do ser humano e não é defendida em termos pedagógicos como se pode perceber a partir de seu texto sobre o esclarecimento, no qual ele busca retirar do professor ou tutor qualquer poder sobre o aprendiz ao se fazer com que este obtenha uma maioridade de sua razão, o que deve ser o papel do professor ou tutor ao fazer com que cada um limite a sua violência natural por meio de uma autonomia em vez dele se submeter a uma heteronomia de sua violência natural ou de alguém. Em outras palavras, a disciplina em Kant não sendo uma defesa da heteronomia como acontece na sociedade disciplinar na qual toda e qualquer razão individual é subjugada a ordem de outro de modo violento por um interesse particular deste ou de quem se submete a ele como vai acontecer no caso extremo do nazismo, mas pode acontecer em muitas circunstâncias sociais. É justamente o contrário disso o que Kant pressupõe ao defender uma autonomia da razão fazendo com que cada um aumente sua capacidade de pensar por meio de uma disciplina e agir bem em vez de a diminuir por meio de diminuir sua capacidade de pensamento por meio da disciplina.
Contra uma pedagogia da violência na qual se ensina cada vez mais as pessoas a serem violentas contra si e contra os outros considerando a violência algo bom ou um bem a ser feito, sem limitar a violência natural que há em si mesmo e a violência dos outros, Kant pressupõe que se deve buscar o esclarecimento para ser capaz de limitar a violência na medida em que cada um busque uma autonomia de sua razão dando a si mesmo uma ordem na qual o bom ou o bem de sua ação é o bom ou o bem para si mesmo e para o outro, do contrário sua ação é necessariamente má e não deve ser realizada, e nenhum utilitarismo ético, neste caso, é admitido por si tendo em vista o interesse particular de um ou mais indivíduos, de modo que somente assim podemos pensar numa realidade que não tenha como princípio a violência senão a limitação dela mesma na realidade.
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