A prisão moderna
Os gregos não tinham prisões. Se Sócrates, o preso mais famoso entre os gregos, ficou numa prisão durante 40 dias à espera de ser executada sua pena de morte foi porque no período de festejo religioso em Atenas não se podia matar ninguém e não porque a prisão fosse sua pena. Isto diz muito sobre a sociedade grega, mas também sobre a nossa sociedade cuja prisão não é simplesmente um local no qual estão aqueles que são contra a lei, mas também o lugar em que estão aqueles que não cometeram nenhum crime, e que na sociedade disciplinar analisada por Foucault são tão presos como qualquer criminoso.
O fato dos gregos não terem prisões não quer dizer que todos os gregos eram bons e que não havia crimes entre eles e que não havia punições para os crimes. Sócrates foi punido severamente à morte por fazer algo contra a lei grega no caso em relação à criação de uma nova divindade e é em seu diálogo com Críton, enquanto está na prisão que podemos perceber como a sociedade grega criou uma prisão hoje inconcebível para os tempos modernos tanto para o corpo como para a mente, a consciência coletiva expressa na célebre frase de Aristóteles tempos depois de que o homem é um animal político. Uma frase cujo significado se perdeu na modernidade com a defesa do individualismo e ainda mais atualmente na medida em que o individualismo se tornou uma questão existencial cujo apelo à vida fora da Terra de seres diferentes dos humanos é senão o sintoma da crise humana quanto à sua solidão enquanto indivíduo único no universo.
A questão central do diálogo de Sócrates com Críton é a prisão de Sócrates e a possibilidade de sua fuga a todo tempo sendo instigada por Críton como sinônimo de liberdade. Afinal, do ponto de vista lógico, se alguém está preso, o oposto da prisão é a liberdade e somente se pode pensar mesmo na liberdade na medida em que se pensa que está preso de alguma forma. O homem na natureza é livre, mas não sabe disso até se ver limitado pela natureza de algum modo, acuado por um animal ou dentro de uma caverna na qual se protege dos animais e, deste modo, preso a ela, vê nela sua própria possibilidade de ser livre. A alegoria da caverna de Platão demonstra bem esta dualidade entre prisão e liberdade que não é tão simples como a alegoria sugere, apenas libertando-se da corrente que faz da caverna-prisão um lar seguro, livre dos perigos. Ninguém quer viver sob o risco de morrer e se a caverna é uma prisão, ela é também o lugar em que o ser humano pode se libertar da natureza e qualquer conhecimento que se pretenda libertar o ser humano da caverna em que vive deve pensar em como ser livre fora da caverna evitando todos os riscos que se colocam ao sair dela.
Ao contrário do que sugere Críton e seus discípulos, Sócrates não deseja fugir da prisão, nem da morte, não quer ser livre e isto diz muito sobre o quão complexo é a caverna de Platão para simplesmente achar que as correntes que nos aprisionam nela são fáceis de serem deixadas de lado e mesmo se devem ser deixadas de lado e porque mesmo serem deixadas de lado. A recusa de Sócrates de sair da caverna-prisão em que está não é apenas a recusa em fugir da cela e se ver livre, é a recusa também de sair de Atenas, a cidade da qual ele saiu apenas por motivos religiosos algumas vezes e militares. É, ainda mais sério, a recusa de ser aquilo que é o mais importante para um grego, isto é, não ser mais um cidadão, não fazer mais parte da pólis (cidade-Estado) grego e não sendo cidadão se ver na pior pena para um grego excluída a pena de morte, a pena do ostracismo que é a pena de não ser acolhido ou ajudado por nenhum grego até o fim de sua vida. Em outras palavras, a pena de são ser mais um grego, ser visto como um grego pelos gregos e de viver o resto de sua vida isolado de todos os gregos mesmo vivendo entre eles ou ainda impossibilitado de conviver com eles por nenhum poder legalmente lhe acolher, dar-lhe hospitalidade, cuidar de seu corpo e de sua mente.
A pena do ostracismo é a pena imposta pelos gregos de uma pessoa não ser mais um cidadão, mas um indivíduo, de ser alguém sem qualquer convívio social mesmo que viva em sociedade, algo temido por Sócrates ao pensar em como seria vida como um criminoso fugitivo em cidades não gregas, mesmo que sua vida fosse cheia de prazer e riqueza por sua fama individual. Sócrates como na alegoria da caverna de Platão se recusa a ter esta vida isolada, livre de todos, mas solitária, absolutamente solitária, sem convívio social, como um indivíduo qualquer. A consciência coletiva de Sócrates em se ver como um cidadão em convívio com outros cidadãos o impede de querer viver uma vida solitária como um indivíduo.
A prisão, mais do que a morte, é um motivo para um profundo pensamento de Sócrates sobre a vida na pólis, sobre o que significa ser cidadão e a recusa a qualquer ação individualista mesmo que esta lhe traga benefícios. Não seria difícil para Sócrates fugir, como se pode perceber no diálogo, pois há recursos para isto, diz Críton, e há quem o acolha fora da Grécia, mas Sócrates escolhe ficar preso para o desespero de Críton e seus discípulos aceitando a morte iminente, mesmo que não ele não aceite a morte tão passivamente como nos faz crer Platão. O diálogo interior de Sócrates com a República em Críton demonstra o quanto Sócrates não aceita passivamente sua pena de morte, mas não vê nenhuma possibilidade de ser livre senão em sua cidade, Atenas, entre os seus semelhantes, convivendo com eles e debatendo com eles em praça pública. Sócrates é um ser político, sempre o foi, mesmo que não fizesse discursos em praça pública para obter benefícios individuais como os sofistas, aos quais a acusação de individualismo por eles e por quem se beneficiava dos seus discursos é muito mais importante do que a denúncia de que eles vendiam seus saberes, pois ia contra tudo que Sócrates pensava sobre ser um cidadão da pólis, ser um político.
Sócrates tinha a consciência de que qualquer discurso que visasse o benefício individual e não o benefício coletivo era prejudicial para a pólis e aquele que não tivesse conhecimento disso, isto é, que fosse ignorante, faria mal não apenas a si, mas a todos. Trata-se de uma profunda consciência coletiva que ele adquirira com os mitos, apesar de Platão nos fazer crer que ele negligencia, pois ninguém conhece melhor os mitos do que Sócrates, e Platão. E não há um grego que não conheça a história mais emblemática a este respeito, no caso, a história de Édipo cujos benefícios individuais são punidos por terem sido obtidos pelo desconhecimento de que matara seu pai e tivera uma relação incestuosa com sua mãe e que, mesmo que não fosse culpado por não saber, se tornou culpado por agir na ignorância, e Édipo não seria capaz de continuar como rei de Tebas sabendo disso e teve o ostracismo como punição dada por Creonte em vez da pena de morte.
Diferente de Édipo, Sócrates escolheu a pena de morte e isto demonstra que, ao contrário de Édipo, ele não aceitava ter cometido crime algum por não ignorar o que fazia, pelo contrário, tinha consciência de suas ações como demonstrou em sua defesa. Uma consciência que aqueles que o julgavam não tinham, pois estavam preocupados em se favorecer individualmente em vez de defender as leis da cidade como ele as defendia, leis que não estavam escritas, mas que faziam para te de um nomos bem antigo. Leis que advém do costume de estar junto com os outros a qualquer custo de sua vida que ele aprendera ao defender a cidade de Atenas de modo militar como cidadão sobretudo, por não querer ver ela submetida à Esparta.
Sócrates foi o maior defensor da liberdade entre os gregos, mas a liberdade que ele defendia não era a de fazer o que se quer como indivíduo isolado de todos os outros, a liberdade de um livre-arbítrio, algo inimaginável para um grego. Para ele, a liberdade era viver com os seus cidadãos sem qualquer coisa que o impedisse disto e pode-se entender como a prisão dele, não entre as grades, mas em si mesmo como um indivíduo e não mais como um cidadão, foi tão atroz ao ponto de a morte ser seu único desejo. Pois impossibilitado de conviver entre os seus, para ele, era preferível morrer e estar entre os seus em outra terra chamada por Platão em Fédon de uma terra verdadeira, uma terra em que ele pudesse estar entre os seus amigos gregos, ainda como um cidadão grego, e não isolado deles como estaria em outra cidade ou em sua cidade mesma vista como um criminoso tendo pago uma multa para ser "livre".
Não há liberdade quando se vive como indivíduo, solitário, isolado do convívio social, podemos dizer a partir de Sócrates. Não há liberdade na solidão e na ausência de convívio político. O que existe é uma agonia e angústia do ser como indivíduo em sua existência tal como Heidegger vai observar de modo positivo, pois desperta para a sua existenz enquanto ser-no-mundo, mas que não há nada de positivo nisso, pois ainda é uma existência no mundo como um indivíduo solitário entre outros, preso em si mesmo, em seu corpo e mente, diante de uma prisão do corpo e da mente maior do que qualquer cela como Sócrates fez Críton e nós percebermos. Algo que nem ele e nenhum grego desejava, por não ser o indivíduo o princípio da sociedade grega, mas a sociedade em si mesma como o convívio dos seres humanos entre si através de relações de semelhança em direitos como cidadão, isto é, em isonomia, mesmo que esta isonomia não incluísse naquela época os direitos femininos, o que não quer dizer que as mulheres fossem totalmente submissa aos homens, além de outros direitos.
O individualismo é uma prisão do corpo e da mente mais temido do que uma cela, eis o que os gregos souberam ensinar através de mitos e Sócrates através da sua filosofia. Estar na caverna não é estar na prisão quando a caverna é o lugar em que você está entre outros, convivendo com eles em comum acordo, com uma corrente a lhes prender que não é imposta por outros, mas estabelecida entre si por uma philia, um amor e respeito ao outro como seu semelhante. E quem não conhece a lei desta philia não conhece as Leis da República que, como observa Sócrates, possibilita o nascimento, a alimentação, a educação e a vida de todos que vivem na pólis e da qual, por isso, ninguém pode lhe abandonar.
Se existe, enfim, um motivo para que atualmente tenhamos tantas prisões para o corpo e a mente na sociedade disciplinar em que vivemos diferente da prisão da consciência para os gregos é tanto por um individualismo que faz de tantas pessoas criminosas em vez de cidadãos estimulado pelo princípio capitalista de obtenção de lucro pela exploração de trabalho dos outros quanto pela República, que deveria possibilitar o nascimento, a alimentação, a educação e a vida de todos os cidadãos, ser tão individualista e criminosa quanto aqueles que ela prende alhures, e que diante de tamanho individualismo não é possível nenhuma convivência política na cidade e Estado a não ser a selvageria e a barbárie em que vivemos atualmente no Brasil e no mundo, bem como a agonia e angústia de cada indivíduo preso senão em sua existência, isolado de todos os outros, porque com medo deles que já não são mais seus semelhantes, mesmo que viva com eles em sua própria casa ou só, e que já não é mais uma caverna que lhe dê segurança, apenas angústia por não estar com os outros, e sair dela não é muitas vezes uma alternativa possível de liberdade, de modo que o individualismo se tornou nossa própria prisão mesmo que pensemos ser livres com ele.
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