O bonde da vida


O dilema do bonde Ã© um exercício de ética aplicada muito conhecido no qual um bonde está indo numa linha férrea em direção à cinco pessoas e quem comanda o bonde deve decidir entre matá-las ou se desviar delas, mas com um agravante: ao mudar de percurso, ele matará uma pessoa. A resposta mais racional, obviamente, é matar a pessoa e salvar as cincos, todavia, chegar à resposta não é o grande problema deste dilema e, sim, como se lida com os afectos seja na tomada de decisão, seja na aplicação prática dela. Para muitos, este é apenas um exercício teórico, contudo, na prática estamos constantemente resolvendo este dilema no nosso cotidiano ao lidarmos com nossos problemas reais a cada momento que somos afetado por algo ou alguém.

Talvez se pense que, diferente do dilema do bonde, não estamos na iminência de matar ou salvar alguém em nosso cotidiano, por isso ele não se aplica à vida real. É apenas uma teoria, não a realidade na prática. Este é o problema para quem não é teórico, pois não sabe como as teorias tem a sua própria prática sem conseguir perceber que ao pensar nelas já está envolvido praticamente e não há como escapar. O senso comum é que teoria e prática são duas coisas totalmente diferentes e que a passagem de uma para outra nem sempre é possível. Na verdade, é impossível para muitos que defendem suas teorias de modo idealista não enxergando a realidade, em contrapartida o mesmo acontecendo em relação a outros que defendem sua prática de modo materialista ou ativista sem querer fazer a mínima ideia dela. Teoria e prática são diferentes, de fato, mas não se opõem e se excluem como muitos pensam defendendo seus idealismos e ativismos materialistas. Nenhuma teoria é destituída de uma praticidade e nenhuma praticidade é destituída de uma teorização. É neste ponto que enxergamos a realidade, pois esta não aparece diante dos nossos olhos sem que pensemos e ajamos nela, mesmo que seja apenas em nosso pensamento.

Pensando no dilema do bonde, pensa-se, deste modo, que dificilmente estaremos na circunstância teórica dele e, portanto, não precisamos nos preocupar em ter que salvar uma pessoa ou cinco. Responde-se facilmente a ele sem qualquer perturbação pensando apenas na quantidade numérica de um lado e de outro. Se há alguma perturbação, pensa-se que se deve à morte, em tem que decidir matar ou salvar alguém e na angústia pelo sacrifício de uma por outras, mas como não há nenhum envolvimento afetivo em questão, escolhe-se ir pela maioria. Não se pensa que, no caso específico, não está em questão uma teoria ou uma prática, mas como uma devém a outra e como, mesmo depois do devir absoluto da teoria na prática, isto é, quando há o acontecimento pensado de antemão e realizado posteriormente, não se consegue deixar de pensar nele, no que foi feito, na decisão que foi tomada e na que poderia ter tomado e que, absolutamente, não se poderá voltar atrás nela, pois toda decisão posta em prática é uma pequena morte, um ato irreversível, algo absoluto.

Ora, pensado desta maneira, é fácil perceber que o bonde o qual comandamos com punho firme até avistar as pessoas na linha férrea é a nossa própria vida, a qual devemos direcionar a cada instante em direção àquilo que é melhor ou pior para nós, e apenas para nós, mas que, ao direcionar para qualquer direção, sempre haverá perdas, mais num caso ou em outro, pois são as perdas que definem as escolhas. É a nossa vida que conduzimos como o bonde e na qual nos deparamos sempre com a necessidade de uma escolha e não simplesmente a possibilidade de escolher, pois, lembremos, a vida como o bonde não pode parar e tão pouco voltar a trás, indo sempre irremediavelmente para frente no tempo, não importa as circunstâncias que retardem sua velocidade. E, lembremos mais ainda, por mais que pensemos racionalmente, não é absolutamente deste modo que fazemos nossas escolhas, pois os afectos estão sempre presentes em nossas vidas, isto é, estamos sempre sendo afetados por tudo em nossa volta, pequenas coisas, sutis acontecimentos que nos fazem mudar de pensamento constantemente na hora de decidir algo. Sobretudo, enfim lembremos, por mais racionalmente que sejam as decisões, elas afetam outras pessoas e nos afetam de tal modo que nunca escolhemos apenas por nós mesmos, mas, principalmente, pelos outros, pois é neste sentido também que o dilema do bonde nos leva a pensar, no caso, em direção não ao que faremos por nós, mas pelos outros.

O que fazemos da nossa vida é problema nosso, geralmente dizemos, insistindo que a vida nos pertence como nos pertence qualquer propriedade individualmente. Pensamos que a vida é algo privado cujo valor é determinado por cada indivíduo sem qualquer relação com os outros. Pensar deste modo é fácil hoje em dia tão acostumados estamos com a modernidade que nos levou a pensar por nós próprios, como fez questão de dizer Voltaire, numa redundância absoluta, pois não é possível senão pensar por si próprio e isto nunca será um problema para qualquer ser humano. Somos sempre nós que estamos no comando de nossa vida, qualquer criança que começa a se virar saindo da posição de costas para a de bruços sabe disso, depois começando a engatinhar e andar, até o momento em que na mais tenra idade aprende a dizer "Não!" com todas as forças de seus ainda frágeis, mas já potentes, pulmões. Neste sentido, não é preciso nenhum filósofo para ensinar alguém que ela pense por si própria e toda a filosofia moderna é resumida na tautologia de Descartes descobrindo sua luz natural, isto é, que ele pensa e, porque pensa, existe, o que não poderia deixar de ser claro e distinto sem qualquer sombra de dúvida.

Estamos sempre no comando de nossa vida, este é o problema colocado no dilema do bonde, algo muito mais antigo do que supõe a modernidade em que se insere este dilema, cuja questão principal é saber o que acontece quando perdemos o comando dela, quando temos que decidir mudar a direção do bonde da vida, quando é irremediavelmente necessário que mudemos a direção dela de um modo radical diante de um mal que está prestes a acontecer, vai acontecer de um modo ou de outro e não é possível qualquer omissão, pois ela resultará num mal maior como no caso do bonde. No que diz respeito a esta mudança de direção, podemos sempre escolher qual o mal menor que podemos suportar como se pressupõe racionalmente em relação ao dilema do bonde, mas este é o maior engano que muitos têm em relação a este dilema, de que existe um mal menor e um maior, que podemos medir a maldade a partir de uma aritmética, que a morte não passe de uma quantidade de pessoas que vão morrer e não de uma qualidade, do fato inconteste de que alguém vai morrer e que será por nossa causa. Pensando de um modo racional, sempre fazemos o que o dilema dos bonde nos pede implicitamente que façamos, isto é, escolher o mal menor, pois sempre deixamos de lado pequenas coisas que consideramos menos importante em relação à vida em comparação a outras, consideradas maiores. Neste sentido, escolhemos sempre o caminho da responsabilidade para com uma maioria e deixamos de lado os nossos desejos mais particulares, evitando assim um mal maior e, pouco a pouco, deixamos de desejar o que é pequeno e pouco importante comparado ao que é grandioso e mais importante não para nós, mas para os outros.

Eis, neste caso, a face mais sombria deste dilema que é a recusa total de nossos desejos em detrimentos de outros, pois e se for aquela única pessoa que está no outro caminho a mais importante de todas em nossa vida? E se ao salvarmos aquela única pessoa não simplesmente estivéssemos salvando ela, mas também a nós mesmos em nossa vida? E se a razão de viver seguindo o bonde da vida fosse uma única pessoa e nenhuma outra mais em nossa vida? Alguém pela qual sacrificaríamos tudo que é pensado como maioria: família, escola, povo, nação, Estado? Em outras palavras, se não fosse uma vida em números em questão, mas uma vida em intensidade que estivesse em jogo no dilema do bonde, como de fato está, qual seria nossa decisão?

Para muitos, tomar a decisão de matar cinco pessoas por uma não seria racional, pois, novamente, para muitos, a razão é pensada mais de modo quantitativo e não qualitativo, como uma razão de Estado e não como uma razão de vida. Prefere-se, por sua vez, anular a própria vida num caminho sem sentido, mas que beneficia a todos do que viver uma vida que beneficia a si em detrimento de todos. Pois, no pensai por vós próprios há senão toda a culpa pelo que vai fazer de sua vida se quiser pensar diferente do que os outros pensam, se quiser seguir seu próprio caminho, matando a todos os outros por aquela pessoa e ele é melhor do que o vivei por vós próprios, por exemplo, vivendo pelo que e por quem ama em detrimento daquelas pessoas que, por mais que ame, não são quem deseja para si, não são a razão de sua vida.

Escolher matar cinco pessoas em detrimento de uma é a escolha mais difícil deste dilema, mas a única escolha possível, já que o bonde segue inevitavelmente em direção às cinco pessoas e desviar é a única solução que se deve tomar, somente não tomada se na outra direção tivesse mais pessoas e não apenas uma, o que não mudaria a forma do problema em termos de qualidade apenas de quantidade, como Descartes o faz ao pensar numa figura geométrica com cada vez mais lados até o impensável. Todo o dilema orienta o pensamento a matar alguém para salvar várias outras pessoas e, assim, manter a sociedade representada por elas em vez de abdicar da sociedade em detrimento de uma única pessoa apenas, de antemão não considerada importante, que está lá senão para ser sacrificada pelos outros, como um homo saccer. Desde o início deve-se matá-la para se manter como parte desta sociedade, sacrificando não apenas ela, mas a si mesmo em seus desejos pelos outros, de modo que não é dado uma escolha para quem realiza este teste, mas um dever de matar uma pessoa para defender a maioria, para fazer parte de um grupo social ou de um bando de gente, para ser aceito por todos como uma pessoa normal, um bom cidadão, sem afecto nenhum por um indivíduo em particular, apenas por uma maioria pela qual não se tem afecto algum, a qual se deve salvar porque é a maioria numérica no caso.

Se matar uma pessoa em detrimento de muitas é a tendência comum e esperada pelo dilema do bonde, a única escolha que podemos fazer é matar muitas em detrimento de uma só. Por mais irracional que isto possa parecer numericamente, matar uma ou cinco pessoas não importa, a morte é sempre algo irremediável em nossa vida, uma decisão que devemos tomar diante de algum problema, o menor que seja, que a muda completamente. São os pequenos acontecimentos, muito mais do que os grandes acontecimentos que mudam a nossa vida, pois são neles que os afectos preponderam sobre a razão sem que ela se dê conta. Neste sentido, cada decisão em nossa vida conta e as decisões mais importantes são aquelas nas quais abandonamos uma razão de Estado, isto é, quando abandonamos a razão da maioria, a que nos faz pensar por nós próprios pensando nos outros, e buscamos uma razão de vida, da nossa vida pelo que e por quem amamos querendo que vivam, aqueles que nos afectam diretamente deixando-nos alegres com sua presença única, a única que importa para nossa existência.

Por mais egoísta que pareça esta decisão é somente pensando deste modo que podemos ser feliz em nossa vida, deixando de lado os outros para vivê-la intensamente em vez de vivê-la apenas pelos outros, sem qualquer intensidade, sem qualquer desejo por ela mesma. Assim, em vez de, hipocritamente, pensarmos por nós próprios pensando nos outros em quantidade, seria melhor vivermos por vós próprios pensando no outro que realmente nos importa, qualquer que seja o caminho que sigamos a vida, pois somente assim somos livres para pensar teoricamente e realizar na prática nossos pensamentos. Não pensando em quantos vamos matar, como nos faz pensar o teste por dever e culpa, mas por quem vamos viver com culpa ou sem culpa alguma, pois todos vamos morrer um dia, mas poucos vão viver a vida como querem seguindo o bonde da razão de viver o que deseja, o que lhe traz afectos de alegria, sacrificando tudo em suas vidas pelo qual ou em quem acreditam, amam, enfim, vivem.

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