Merlí e a provocação filosófica
Sobre ensinar se diz muitas vezes que é uma questão de vocação, uma palavra que adquiriu a partir dos sacerdotes uma norma extremamente ortodoxa em relação a qual não pode se discutir, não se pode falar, que se tornou paradoxalmente o contrário da vocação mesma, isto é, ação vocal ou do vocalizar ou o simplesmente falar e, pela fala, comunicar o que pensa para além de toda norma, toda ortodoxia, deste modo, adquirindo uma identidade, tornando-se aquele que fala naquilo que é ou que quer ser.
A linguagem, segundo, Aristóteles é o que diferencia os seres humanos dos animais e no que diz respeito a ela, ele se refere à fala ou ao logos enquanto palavra ou discurso falado, mesmo que seja escrito, segundo todo o logocentrismo que Derrida observou bem em relação ao privilégio da fala em relação ao pensamento, no caso, um pensamento articulado pela fala e na fala, isto é, um pensamento lógico. É pela fala, deste modo, que não simplesmente afirmamos o que são as coisas na realidade, mas nos afirmamos em relação a elas, afirmamos os seres humanos que somos em pensamentos e em desejos. É pela fala deste modo que há uma afirmação de nós mesmos em uma identidade que não é firme, não se firma, mas que se afirma na fala.
Há mais de um ano escrevi o artigo Merlí e a inoportuna filosofia sobre a série Merlí produzida pela televisão catalã TV3 cujo personagem principal é um professor de filosofia provocador por excelência cuja referência principal é Sócrates pela mutuca que figura ao lado do título, mesmo que ele se travista em diversos filósofos a cada episódio e no sétimo 2ª temporada, sobre Judith Butler, isto aconteça literalmente. Talvez isto o faça parecer mais um sofista do que Sócrates, mas quem disse que Sócrates também não era sofista como o descreveu Aristófanes? O que, para além de toda ortodoxia platônica, só demonstra o quanto Sócrates é um personagem filosófico criado por Platão tanto quanto Merlí foi criado por Eduard Cortés, apesar de Sócrates ser obviamente um personagem filosófico histórico na realidade enquanto Merlí um personagem filosófico na ficção.
Se retorno a escrever sobre a série Merlí é porque em sua segunda temporada a provocação que era propriamente dele passa a ser uma característica de todos os personagens dela. É como se víssemos as merlinadas, como ele chama sua provocação, ser aprendida de fato por seus estudantes chamados de peripatéticos, mas também pelos professores. É como se agora todos começassem a adquirir voz, todos se encaminhassem para uma vocação, se tornassem então provocadores e aquilo que Ânito mais temia em relação aos ensinamentos de Sócrates e da filosofia acontecesse, porém, não na realidade, mas na ficção. Pois, argumentando em sua defesa ou mesmo argumentando o quanto era indefeso diante do tribunal que o julgava, diz Sócrates segundo Platão:
Portanto, mesmo que me concedesse a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo, declarava não ser necessário que eu viesse até o tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era impossível, não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariam inapelavelmente perdidos e corrompidos... (PLATÃO, 1999, p. 81. Coleção Os Pensadores. Grifo meu.)
Os filhos a que Sócrates se refere não são os seus filhos propriamente, mas seus discípulos e todos aqueles que resolvessem seguir não os seus ensinamentos, pois, como sabemos, Sócrates nada sabia, mas seguir suas atitudes provocativas que Aristófanes pusera em cena décadas antes e com a qual ele tão pouco se satisfazia, por fazer-lhe parecer um sofista, ser quem ele não era ou não queria ser, ou Platão queria que ele fosse a nós, a todos que o quiséssemos conhecer. Sócrates não era um professor como Merlí, como nós somos hoje em dia, apesar dele ser ainda hoje com sua maiêutica o exemplo de todo professor de filosofia, o que todo professor de filosofia quer ser assim como talvez muitos queiram ser como Merlí hoje em dia, no caso, um provocador tal qual Sócrates. E deste modo assumir uma personalidade filosófica que atravessa a história como sendo a de um pessoa que questiona e critica as normas tradicionais a partir de uma ciência (episteme) da natureza, no caso, um conhecimento lógico da natureza não necessariamente empírico baseado na experiência, bem como a partir de uma ciência da linguagem, no caso, do discurso lógico analisando o que é dito sobre a realidade tal como Sócrates fazia em relação a todos os atenienses e em particular aos sofistas e faz admiravelmente em sua Apologia durante o julgamento.
A Apologia de Sócrates não é o momento em que Sócrates se defende das acusações de não reconhecer os deuses, de inventar novos deuses e perverter os jovens ensinando-os a terem esta atitude. A Apologia é o momento em que Sócrates toma a fala para si e em vez de defender outra pessoa acusada como sugere a própria palavra "apologia", ele defende a si mesmo como acusado, mas se é a si mesmo que defende é em nome de todos os outros que como ele vão a julgamento sem defesa alguma, pois sabe, ou Platão nos faz saber, que não escapará à pena de morte. Isto parece claro a si no fim de seu diálogo com Eutífron em Eutífron quando diz, por fim:
Vais partir, meu caro amigo? Então, destruirá a grande esperança que alimentava de aprender de ti o que é piedoso e o que não é. Eu pretendia livrar-me da acusação de Meleto mostrando-lhe que, tendo sido instruído por Eutífron a respeito dos assuntos divinos, não me arriscava a, por desconhecimento, introduzir inovações nesses assuntos e pretendia, de agora em diante, levar uma vida melhor. (PLATÃO, 1999, p. 56. Coleção Os Pensadores. Grifo meu.)
Ao tomar a fala para si e falar o que pensa em sua defesa no julgamento, Sócrates eleva ao máximo seu nível de provocação quando el volta sua maiêutica a si mesmo, interrogando-se e expondo ele mesmo o que pensa, fazendo com que parteje sua própria ideia trazendo à luz sua própria vida, aproximando a filosofia dela, bem como de todos os presentes. Foi senão a única vez em que ele foi professor de fato dando talvez a maior aula de filosofia de todos os tempos diante de 501 cidadãos que estavam ali para lhe julgar e, não por menos, condenar. Se hoje, nós, professores, tememos ficar diante de uma sala de aula com pouco mais de 30 estudantes expondo nossos pensamentos com medo do julgamento que eles vão ter sobre nós ou outros a partir deles, pensar em Sócrates diante de centenas de atenienses expondo seu pensamento seria um motivo de catatonia para muitos, ainda mais sabendo que ali estaria implicado sua vida.
É a partir do momento em que Sócrates fala em defesa de si mesmo na apologia de Sócrates que percebemos quem ele é, como se tornou provocador, quando começou a provocar os atenienses, como se tornou a mutuca a partir da qual ele se descreve como animal. É o momento em que percebemos como ele se tornou filósofo e, não por menos, o filósofo e professor de filosofia adquiriu a personalidade provocativa, questionadora e crítica que todos admiram na realidade que tem como modelo a ironia socrática. É o momento em que a filosofia deixa de ser um questionamento da realidade para ser um questionamento da vida humana, em primeiro lugar, de quem filosofa, como fez Sócrates ao questionar a si mesmo em sua sabedoria e a atitude de todos em relação a ela e resumiu a sua ironia no dizer só sei que nada sei.
A provocação socrática expressa em sua ironia diante dos cidadãos atenienses e através de seu método maiêutico não é, malgrado seja assim visto, um questionamento crítico daquele que fala buscando, deste modo, silenciar o oponente numa discussão em público opondo-lhe dialeticamente seus argumentos a partir de uma ideia que seria a verdade (aletheia), algo inesquecível para além da transmigração das almas de corpo em corpo como nos fez crer Platão como sendo a essência da realidade. Pelo contrário, este seria o tipo de pessoa que mais fazia temer Sócrates como os mais perigosos e que fizeram crer que era ele mesmo como um "homem de muita sabedoria, que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que transforma as razões mais fracas nas mais consistentes" (PLATÃO, 1999, p. 67. Coleção os Pensadores) Ou seja, os cientistas da natureza e os cientistas da linguagem de sua época, no caso, os sofistas do quais Sócrates buscava se diferenciar apesar de ter assim como os sofistas o mesmo objetivo provocar, isto é, fazer com que os cidadãos adquirissem uma voz, falassem, articulassem seus pensamentos numa fala e, sobretudo, falassem o que quisessem sem com isso ofender os outros, sobretudo os deuses, pois, aqueles que falam o que querem ofendendo os outros, isto é, acusando-os de modo calunioso como faziam com ele, diz Sócrates em sua apologia: "Estes, ó atenienses, que propalaram essas coisas acerca de mim, são os acusadores que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedica a tais investigações não admite a existência dos deuses." (PLATÃO, 1999, p. 67. Coleção Os Pensadores)
Por mais que Sócrates que possamos idealizar a partir da ironia socrática todo uma personalidade filosófica encarnada muito bem por muitos filósofos outros filósofos como os cínicos a quem Merlí também deve sua personalidade filosófica como questionador e crítico da realidade, incluindo a divina, o que se coloca a partir do argumento de Sócrates em relação aos deuses demonstra o contrário disto, mas também o contrário do que defende a tradição que Meleto como poeta defende e Ânito também do ponto de vista da lei democrática de Atenas. Eis o limite da provocação socrática, fazer com que o que pensa e fale não seja nem aquilo que defendem os cientistas e sofistas de sua época, nem a tradição, mas uma fala plena em si mesma a partir de uma sabedoria que não é sua, mas do outro, de alguém que é totalmente estranho a todos aqueles que falam segundo o costume (ethos) e que tão pouco é um estrangeiro, por mais que se sinta um, pois, diz Sócrates elevando sua fala a uma tolerância em relação à alteridade para além de uma oposição dela pelo ego e pela cultura que o representa:
Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o linguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é a justiça a meu ver, para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o que digo é justo ou não. Nisto reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade. (PLATÃO, 1999, p. 66)Ao pedir tolerância para sua linguagem, para o que ia falar, para expressar seu pensamento assim como se dava a um estrangeiro, Sócrates define a partir da democracia grega que estimula a que todos os cidadãos tenham voz que haja uma tolerância em relação àquele que fala e que a fala mesma seja tolerante, pois, para si, a tolerância é a justiça e todos aqueles que são intolerantes com a fala dos outros, com a expressão na fala do pensamento dos outros, podendo ser ela talvez pior, talvez melhor, são necessariamente injustos. Se do ponto de vista de sua atitude com os cidadãos, Sócrates é irônico e parece um sofista que translada os limites da tolerância, no caso, da justiça, em outras palavras da lei humana, mas também divina, do ponto de vista de sua maiêutica, isto é, da filosofia que ele adquire a partir sua vida, do caminho que ele resolveu seguir como sua mãe que era parteira, Sócrates força a todos serem tolerantes com o que ele diz, com sua linguagem diferente, bem como que todos adquiram uma linguagem diferente, que falem diferente do que é dito, que falem o que pensam de modo verdadeiro, que provoquem a verdade ou a vomitem como fez Cronos provocado pela bebida dada por Zeus para que vomitasse seus irmãos de seu estômago para se aliarem a ele contra o poder tirânico do pai instaurando senão os pressupostos da democracia grega de modo divino. É uma profunda compreensão do outro em sua fala que Sócrates pressupõe em sua maiêutica e que ele requer para si no seu julgamento e que ele quer para todos na medida em que não ofendam aos deuses como representantes da alteridade absoluta, de outros que não estão presentes, mas que mesmo assim não podem ser esquecidos em sua fala, em seu discurso, em sua presença na fala de modo tolerante.
Provocar o outro na sua fala é, deste modo, tolerar o outro em sua fala e não desrespeitá-lo na medida em que o outro é pressuposto em sua fala, forçado a falar o que pensa e, ao falar o que pensar, se possa haver um diálogo não dialético, isto é, sem oposição de falas e, sim, provocação delas num e noutro expondo o que pensam sem se ofender, sem querer diminuir o outro em sua fala, sem querer silenciar o outro em sua fala, sem ver no outro um oponente à sua fala que deve ser silenciado, condenado à morte como Sócrates fora condenado ao não ser tolerado seu pensamento, a expressão do seu pensamento em sua linguagem, a sua provocação do diálogo.
Provocar o diálogo, a fala do outro na sua fala, é o que faz a filósofo desde que Sócrates foi a julgamento, desde que ele próprio foi provocado a falar, que fizeram com ele o que ele tanto fazia aos outros, a partejar suas próprias ideias, expressar o que ele pensava desde que o oráculo de Delfos pressupostamente disse que ele era o mais sábio dos atenienses. É isto que faz Merlí também na sua série e todos nós, filósofos, que, para além da ironia e da oposição dialética que ela produz, alcançamos aquela fala média a que nos remete Derrida que é a da tolerância do outro em nossa fala sendo justo em relação a ele.
Para além da vocação do filósofo como aquele que fala e em sua fala questiona e critica o outro, por fim, há sua provocação, o questionamento e a crítica dele como outro em sua própria fala e, deste modo, sua tolerância em relação a ele, a justiça em seu julgamento e a verdade em sua oração.
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