1º de abril!!! Dia da mentira!

março 31, 2018

Hoje é 1º de abril, o dia da mentira. O dia da mentira foi criado quando alguém disse pela primeira vez que era o dia da mentira e todo mundo acreditou. Para se comprovar isto, basta pesquisar no Google. Bem, não está lá ainda, mas vai estar depois que eu escrever este texto e se isso for mentira, não importa, se acreditou nisso ao ler você já foi pego na mentira, pois hoje é 1º de abril!!! Ou não, se eu estiver mentindo...  Mas eu estaria mentindo se hoje não fosse o 1º de abril? Como saber se eu não estou mentindo? Quem diria se eu estou mentindo? Como alguém saberia que alguém mente? Quem saberá até o fim deste texto o que é mentira?

Sábado, 1 de abril de 2017 às 01:21 UTC-03, uma estudante escreveu esta mensagem para mim:

Isadora PioSábado, 1 de abril de 2017 às 01:21 UTC-03
O professor o senhor é o melhor professor que eu já tive em toda minha vida.💛

Eu estava dormindo, afinal era de madrugada, mas quando acordei, respondi sua mensagem:

Jean Pierre Gomes FerreiraSábado, 1 de abril de 2017 às 06:38 UTC-03
Olá Isadora, acordar e ver que sou este professor pra você em tão pouco tempo é algo maravilhoso, ainda mais porque você é alguém que expressa tão pouco seus sentimentos em sala e se tornou um termômetro de minhas aulas, que são aqueles estudantes a quem eu quero sempre chegar, pois vejo que eles têm algo de bom, mas eu ainda não consegui fazê-los demonstrar isto, e é o que mais quero que consigam, que é o meu objetivo como professor também, demonstrar o máximo do que eu tenho de bom, que é minha filosofia de vida. Bom dia, pra você! 😀

Não conversamos mais neste dia, mas meses depois ela disse o seguinte:

Isadora PioQuarta-feira, 17 de maio de 2017 às 21:14 UTC-03
Um dia eu lhe disse que você era o melhor professor que eu já tive em toda minha vida. Na real você viu que era 1° de abril (dia da mentira), eu só não sei porque não percebeu e porque falou algo que eu não esperava. Fiquei tipo -uau. Mas bem hoje eu posso dizer isso verdadeiramente, você é um dos meus melhores professores💛, e mesmo com o pouco tempo já aprendi muito com o senhor.

E eu lhe disse:

Jean Pierre Gomes FerreiraQuarta-feira, 17 de maio de 2017 às 21:37 UTC-03
Isadora, de fato não percebi que era 1º de abril, pois suas palavras foram mais importantes do que a data e sei desde o dia que me desejou feliz aniversário ano passado que não é do tipo de pessoa que brincaria comigo desta forma e que suas palavras eram sinceras naquele momento, como sempre são. O que você diz muito me orgulha, mas meu orgulho maior é ter estudantes como você que conseguem perceber a importância do que ensino, no caso, a importância da filosofia. Mas mais do que isso, o que mais importa pra mim é fazer a filosofia ser algo prazeroso para os estudantes e você sempre foi um desafio pra mim desde o ano passado, pois você nunca ria do que fazia. Mas na última aula, fiz você rir quando disse pra você "Nem um Pio" e foi um momento muito feliz pra mim. Seu sorriso em sala é o que mais preso, pois como você muitos estudantes sofrem com problemas que não conseguem entender ou resolver e um momento de felicidade que eu puder proporcionar me deixa muito feliz. E é assim sorridente que eu quero que você encare os maiores problemas da sua vida, sabendo que vai poder solucioná-los uma hora ou outra e se não conseguir solucionar, lembrar do dito: "O que não se pode remediar, remediado está."

Como ela percebeu e eu reafirmei depois, não percebi que era 1º de abril, isto é, não percebi que era o dia da mentira e que ela, calculadamente, esperou a madrugada deste dia para me dizer que era eu era o melhor professor que já teve em sua vida. Tão pouco não acreditei nela quando, de certo modo, disse que mentiu tempos depois, pois, como disse, ela não era "o tipo de pessoa que brincaria comigo desta forma e que suas palavras eram sinceras naquele momento, como sempre são." Em outras palavras, num primeiro momento, não percebi que era mentira e, no segundo, momento, não acreditei que estava mentindo no primeiro momento, mesmo ela me dizendo que estava mentindo. E continuo não acreditando...

Porém, como não pude perceber? Talvez eu me perguntasse. Eu sou filósofo e quem melhor do que os filósofos para perceberem uma mentira? Afinal, foram os filósofos que inventaram a mentira, os primeiros a contar sua história, ou melhor, a denunciar a mentira historicamente e, deste modo, iniciar não por menos a história da mentira quando pela primeira vez disseram: Mentira! E a ela opuseram sua verdade. Naturalmente, obviamente, outras já tinham feito isto, denunciado a mentira de alguém dizendo Mentira!, fazendo este ato performativo em que o ato de dizer produz aquilo que diz, mas foram os filósofos que iniciaram a história da mentira quando fizeram da história dos mitos a história da mentira e, assim, com acréscimo de uma letra, mudaram a história, pois o mito passou a querer dizer minto.

Os filósofos denunciaram os mitos como mentiras, mas a ciência demonstraria depois que também os filósofos mentem em relação à natureza e nada mais verdadeiro hoje em dia do que as palavras e imagens da ciência para denunciar uma mentira. Ninguém duvida dos milhões de bactérias numa boca numa propaganda de pasta de dentes, mesmo que nunca veja uma bactéria em sua vida, pois mesmo um cético dizendo que bactérias não existem, o cientista diria que é mentira. É só olhar a televisão para saber que é verdade como a ciência diz, ou sentir o mal hálito, quem duvida?

Mas como pode um filósofo mentir? Perguntaríamos. Não buscaria ele sempre dizer a verdade? Asseveraria o irônico. A busca da verdade ou por dizer a verdade passa pela mentira, pois a mentira é uma verdade dita de outra forma. Diria eu, um filósofo, e a história da filosofia, ou a história da verdade, não existiria se não existisse a história da mentira, e se os cientistas denunciaram muitas das mentiras dos filósofos é porque aprenderam com eles e, ainda aprendem, a não mentir, mas também mentem em alguns casos, mesmo sem saber, pois não se tem como saber, em princípio que o que se diz é uma mentira quando não se é mentiroso. E mesmo um mentiroso não reconhece o outro quando a mentira é bem contada e este é o problema: em princípio, toda mentira é verdadeira. Até para quem mente. Não por acaso, mente melhor quem acredita na própria mentira e é preciso acreditar na mentira senão para que ela seja... mentira.

Os aedos gregos não mentem. Os filósofos também não. Tão pouco os cientistas. Nem eu, minto. Mas todos acreditaram numa mentira e muitos acreditarão ainda. Pais, principalmente, quando os filhos dizem depois de uma briga na escola: eu não fiz nada. Ele que começou! O amor dos pais não permitiria dúvida: meu filho não mente para mim! E nada melhor do que o amor para nos fazer acreditar em mentiras. Quem nunca acreditou naquelas palavras mágicas ditas por alguém em um determinado momento da vida com a carinha do Gato de botas do Shrek: Eu te amo!... Você é o amor da minha vida. Eu não posso viver sem você. Por mais que se diga que nunca acreditou, eis que a dúvida ainda estaria lá para demonstrar o contrário, fazendo do breve sorriso ao ouvir isto que, por um breve momento acreditou e mente quem diz que nunca acreditou que alguém o amou, mesmo que depois viesse a descobrir que foi uma mentira, que fosse mentira... Ou não? E se for mentira eu acreditar que era uma mentira e, na verdade, fosse verdade que ele me ama?

Foi Descartes o maior filósofo da história moderna e também aquele que elevou ao mais alto grau a história da mentira ao se perguntar, em seu Discurso do método, se Deus mentia para ele e o enganava de que o que ele via e pensava era verdade, se Ele não o fazia pensar que o mundo e ele mesmo em seus pensamentos era verdadeiro quando, na verdade, não eram. Ainda hoje, sua dúvida metódica não nos permite saber que o que diz é verdade, mesmo ele tendo chegado a uma ideia clara e distinta a partir dela, qual seja, a de que pensa, logo existe. Todavia, pela sua dúvida mesma como poderíamos saber se seu pensamento era verdadeiro depois dele mesmo colocar em seu pensamento a partir do pensamento divino? Era ele que pensava de fato ou Deus por direito que o fazia pensar que pensava, logo existia? No caso, que fazia pensar, em primeiro lugar, que existia o seu pensamento, em segundo lugar, ele, isto é, de corpo e alma, por fim, segundo a lógica dedutiva da mathesis universalis, o mundo, no caso, a partir da geometria, pois o mundo mesmo, o que se sente através dos sentidos por assim dizer, não. Este, ele continuaria que não existe mesmo. Neste, você não está lendo este texto cartesianamente falando, apenas pensa que sim devido, não por menos, as coordenadas cartesianos que dispõem tudo no mundo numa extensão, a ideia clara e distinta de que o mundo existe, na verdade, isto é, por direito, não de fato.

Talvez Descartes não tenha sido, na verdade, o maior filósofo da história moderna se ele mentiu descaradamente que pensava quando, na verdade, Deus pensava por ele, mas foi ele quem retomou a história da mentira com sua dúvida metódica fazendo o que Sócrates fazia com os poetas, políticos e artistas considerados em sua época como sofistas, isto é, mentirosos, segundo Platão, pelo menos até escrever seu diálogo Hípias menor. Contudo, as dúvidas de Descartes não eram apenas em relação a algumas pessoas, mas a todo e qualquer ser humano, a começar por ele próprio para saber se não se enganava quando olhava ou sentia algo no seu corpo. Posteriormente, suas dúvidas atingindo o grau de saber que Sócrates esperava que atingissem os sofistas sabendo que não sabiam de fato, isto é, admitindo por direito que mentiam, mesmo sem o saber, pois não sabemos quando estamos mentindo, mesmo quando mentimos, afinal acreditamos que a mentira é uma verdade e a defendemos como verdade até que alguém diga, enfim, que estamos mentindo. Ou mesmo depois que alguém nos diga a quem pedimos os fatos, ou talvez ainda, mesmo depois que nos mostre os fatos, pois quem garante que os fatos não são mentirosos, isto é, manipulados pelas pessoas em sua observação, que as aparências do fenômeno enganam, como diria Husserl a partir de um ponto de vista subjetivo do qual nem mesmo a ciência estaria imune, principalmente ela que acredita hoje em dia deter a verdade dos fatos por direito?

Mas se não podemos acreditar nos mitos, nos filósofos, na ciência, em Deus!, pois todos mentem como pressupunha de certo modo o Dr. House, tudo não passaria de uma mentira? Perguntaria o cético com um sorriso nos lábios, gozando da verdade ao denunciar a mentira de todos, mas ao gozar da verdade deste modo, mentindo, pois não podemos gozar da verdade sem mentir. Isto é, sem denunciar a mentira de outrem ou de si mesmo, ao dizer em riso a outrem: 1º de abril!!! Mentira!

Para acreditar na verdade, é preciso acreditar na mentira, e ninguém melhor do que o cético consegue chegar na verdade, ou na verdade de verdade. Descartes percebeu isso, mas antes dele, Sócrates... Ou teria sido Platão com Sócrates nos fazendo acreditar que foi Sócrates que percebeu isto primeiro? Questão socrática e filosófica posta deste o alvorecer da filosofia antes mesmo de Sócrates: saber quem mente e quem diz a verdade. Os poetas, artistas e políticos com seus mitos!, dizem os filósofos Sócrates e Platão aludindo à verdade dos fatos sem direito. Os filósofos, ateus, artífices e pervertidos questionadores dos mitos!, dizem os poetas, políticos e artistas aludindo à verdade do direito sem fatos.

Se sabemos como sempre acaba a história entre os filósofos e aqueles que defendem religiosamente os mitos, com os filósofos mortos e os religiosos vivos, pois todos que falam em nome de deus estão sempre com a verdade, pressupostamente, e os filósofos são sempre mentirosos para os religiosos, os filósofos não nunca deixam de demonstrar, mesmo depois de morto, que a mentira tanto pode dizer respeito aos fatos como ao direito. Neste sentido, mesmo nos fiando as fatos, podemos mentir assim com fiando-se ao direito, pois é a mentira é uma questão fiducial, de confiança, de uma certeza indubitável, como pressupôs Descartes, pois é preciso acreditar numa mentira para acreditar numa verdade, mesmo que, na verdade, a verdade nunca seja dita, seja apenas uma possibilidade ainda não adivinhada por ninguém. Não é preciso, porém, dizer muitas vezes uma mentira para que alguém acredite que ela é uma verdade como se pressupôs em relação à propaganda nazista de Hitler, é preciso apenas que uma pessoa acredite uma única vez que o que é dito é verdade, mesmo sendo uma mentira, como Hitler no caso da Alemanha nazista.

E não se trata de um engano, de outrem ou de si mesmo, isto é, de uma alienação da realidade produzida por uma ideologia produzida por outrem ou por si. A mentira não é um engano. Ela não tem por intenção enganar. Ela tem por intenção ser verdadeira e é verdadeira quando dita intencionalmente pela primeira vez até o momento em que se diga ao contrário ao que ela diz, não necessariamente a verdade, simplesmente dizendo-se que é mentira. Ou seja, denunciando a mentira nela mesma em sua intenção de ser verdadeira e aquele que a diz ser também verdadeiro, no caso, veraz de fato e de direito.

Eu não minto, diz o mentiroso e todos acreditam nele, pois se dissesse que mente, quem acreditaria nele? A fé move montanhas, diz o dito de modo mentiroso, pois nenhuma montanha se move de fato por meio simplesmente da fé, mas todos acreditam nisso, pois a fé é algo que nos faz acreditar em tudo. A mentira é uma questão de fé, mas a fé não é uma mentira. Muitos, porém, dizem que a mentira é uma questão de má fé, como diria Sarte, e não de fé realmente asseverando que não se pode relacionar a fé com a mentira verdadeiramente e que há, deste modo, uma boa fé e uma má fé, em consequência que há pessoas que mentem, logo são de má-fé, e pessoas que não mentem, que são de boa-fé. Em outras palavras, o velho manequísmo tão denunciado por Agostinho, do qual não escapou totalmente, mas antes dele, pelo próprio Sócrates e Platão em Hípias menor, que demonstraria melhor ainda como é difícil escapar do maniqueísmo a partir de uma conversão do saber, mesmo o divino, isto é, do saber mesmo, melhor não sabendo ou nada sabendo, pelo menos sabe-se que não sabe.

Foi Sócrates e Platão, e senão Hípias, neste texto que anteciparam a questão agostiniana da mentira como intenção, nas palavras deles como algo voluntário ou involuntário, e senão a maior controvérsia filosófica da história acerca da mentira, no caso, entre Kant e Benjamin Constant, um diálogo que retomaria a questão da veracidade da mentira em sua voluntariedade ou intencionalidade distinguido a partir destas se podemos ou não mentir com ou não saber. Em outras palavras, para falar como Kant, a possibilidade de conhecimento da mentira ao se questionar a partir do questionamento de Constant sobre ele, por um lado, se podemos mentir sabendo que se trata de uma mentira. E, neste caso, recolocando de modo crítico, isto é, em síntese, o que Sócrates e Platão colocaram em análise tão bem, a questão do poder e do saber mentir.

Em síntese, eis a questão: quem pode mentir? Ninguém em nenhuma circunstância, diria Kant, sinteticamente. Ninguém? Nem mesmo como brincadeira no dia da mentira? Perguntaríamos só para fazer troça dele ao que ele responderia não por menos severamente em seu costume filosófico: Não! Logo depois nos fazendo imaginar e acreditar como nos mitos contando uma "história" - mentirosa, quem sabe? - no quão problemático seria se todos mentissem, que a sociedade e o contrato social estabelecido por todos para constituí-la sucumbiria ao caos, não o originário de Hesíodo que tudo cria em princípio, mas o escatológico que tudo destrói. Em contrapartida, no fim da história, levando-nos a concluir que não podemos mentir, mesmo que um assassino nos pergunte se quem ele quer matar está na nossa casa, como de fato está, e por meio desta mentira salvemos uma pessoa. Moral da história kantiana, literalmente: não podemos salvar ninguém contando uma mentira.
A partir da moral kantiana não temos o direito de mentir, nunca. Devemos sempre dizer a verdade não importa a circunstância, pois, de fato, não sabemos o que vai acontecer se mentirmos, mas vamos saber, por direito, o que vai acontecer se não mentirmos, isto é, seremos verdadeiros no que afirmamos e todos acreditarão que somos pessoas boas, que não mentimos, que não enganamos ninguém nem a nós mesmos com mentiras, que não somos pessoas más. Imperativo categórico da lei moral: não podemos ser maus, devemos ser bons, portanto, categoricamente com uma certeza indubitável, agora, a kantiana, não podemos mentir.

A conclusão a que Kant chega de modo imperativo e categórico é a mesma a que Descartes em seu bom senso. Podemos nos enganarmos no que diz respeito aos sentidos do mundo e nós mesmos, ao que os outros nos dizem sobre o mundo e nós mesmos, ao que pensamos sobre o mundo e nós mesmos, a deus no que quer que pensemos, mas precisamos ter consciência de que tudo isto não passa de um engano, isto é, de uma mentira, e que, por fim, na verdade, precisamos admitir com uma certeza indubitável que deus não nos engana e os nossos pensamentos não nos enganam, logo, nada no mundo é um engano, pode ser um engano, uma mentira. Não pode haver mentira no mundo do ponto de vista do pensamento verdadeiro, nem do ponto de vista pensamento moral, asseveraria Kant em sua consciência.
Nananinanon, diria Constant a Kant, mas também a Descartes, de certo modo, colocando em questão da mentira e da verdade a partir dos princípios em seu texto Das Reações Políticas (1797). Quanto a Descartes, diria, nem tudo que pensamos é de fato, pois os fatos podem mudar e, em contrapartida, nossos pensamentos ou nossos princípios, pois:
Um princípio é o resultado geral de um certo número de fatos particulares. Todas as vezes que o conjunto desses fatos sofre algumas mudanças, o princípio que disso resultaria se modifica: mas, então, essa modificação mesma torna-se princípio. (CONSTANT, 2002, p. 61)
E não adianta aludirmos a princípios universais se eles não estiverem relacionados a fatos particulares, pois isto gera particularmente a desordem em relação aos princípios e à sociedade ao considerá-los como "teorias vãs":
pois o princípio arrancado de todas as suas imediações, privado de todos seus apoios, rodeado de coisas que lhe são contrárias, destrói e abala; mas não é a culpa do primeiro princípio que é adotado; é a dos princípios intermediários que são desconhecidos: não é a admissão daquele, mas é a ignorância a respeito destes que afunda tudo no caos. (CONSTANT, 2002, p. 62-63)
É preciso entre os princípios universais, como o moral de Kant de que ninguém pode mentir sabendo que mente, encontrar princípios intermediários entre aqueles e os fatos particulares que sirvam não apenas de meio-termo silogístico, mas de aplicação com certeza indubitável dos princípios universais na realidade dos fatos. Neste sentido, para Constant, se não se pode negar que ninguém pode mentir tão pouco isto é aplicável na sociedade, diria ele em relação a um filósofo alemão, não por menos, Kant:
O princípio moral, por exemplo, que dizer a verdade é um dever, se fosse considerado de uma maneira absoluta e isolada, tornaria impossível toda sociedade. Temos a prova disso nas conseqüências muito diretas que um filósofo alemão tirou desse princípio, chegando até mesmo a pretender que a mentira fosse um crime em relação a assassinos que vos perguntassem se o vosso amigo, perseguido por eles, não está refugiado em vossa casa. (CONSTANT, 2002, p. 67)
Se Kant diz que ninguém pode mentir, todos devemos dizer a verdade. Constant então diz:
Dizer a verdade é um dever. O que é um dever? A idéia (sic) de dever é inseparável da idéia (sic) de direitos: um dever é o que, em um ser, corresponde aos direitos de um outro. Lá onde não há direitos, não há deveres. Dizer a verdade só é, portanto, um dever em relação àqueles que têm direito à verdade. Ora, nenhum homem tem direito à verdade que prejudica a outrem. (CONSTANT, 2002, p. 68)
O assassino, segundo Constant, não teria direito à verdade, logo, não haveria dever em dizer a verdade para ele, pode-se então mentir, conscientemente, voluntariamente, intencionalmente, para salvar a vida da pessoa a ser assassinada, mesmo que não se saiba as circunstâncias pela qual se quer matá-la. Questão de princípios, neste caso, da vida em relação à morte, nem que seja de uma única pessoa, mesmo sem saber se ela deve ou não morrer, pois tem direito à vida e a um julgamento justo, quiçá, pelo crime que cometeu e por isso querem matá-la. Questão de direitos humanos, podemos dizer, ou ainda, de direito à segurança dos humanos em qualquer circunstância como asseveraria Schopenhauer em diversos exemplos de Fundamentos da moral quando estivesse em questão nossa impossibilidade de fazer alguma coisa por coerção física ou psicológica:
Pois como tenho o direito de previamente contrapor, quando há perigo de dano, à vontade malvada de outrem e, pois, à violência física presumida uma resistência física e, portanto, de guarnecer o muro de meu jardim com pontas aguçadas e de soltar cães bravos no meu quintal e, mesmo, sob certas circunstâncias, de pôr armadilhas e armas que disparam sozinhas, cujas más conseqüências o invasor tem de atribuir a si próprio, também tenho o direito de manter de todo modo em segredo aquilo cujo conhecimento me poria a nu diante da agressão do outro e também tenho causa para isto, porque admito aqui como facilmente possível a vontade má do outro e tenho de encontrar antes as providências contrárias. [E, neste sentido] ... como, apesar da paz no país, a lei permite a todos levar armas e usá-las, a saber, no caso da autodefesa, assim a moral consente, para o mesmo caso, e só para este, o uso da mentira." (SCHOPENHAUER apud Miranda, 2004)
Não há direito humano, diria, porém, Kant se houver um direito de mentir, eis o que diz categoricamente Kant em sua resposta irônica e severa ao filósofo francês, Benjamin Constant, no texto Sobre um suposto Direito de Mentir por amor à Humanidade (1797):
A veracidade nas declarações que não se pode evitar é dever formal do homem em relação a cada um, por maior que possa ser o dano daí resultante para ele ou para um outro; e caso eu, quando falsifico uma declaração, realmente não cometa nenhuma injustiça em relação àquele que, injustamente, me força a fazê-la, eu cometo, contudo, uma injustiça na parte mais essencial do dever em geral por meio de uma tal falsificação que, por isso, também pode ser denominada (embora não no sentido dos juristas) mentira, isto é, eu faço,t anto quanto depende de mim, com que as declarações em geral não tenham nenhum crédito e que, também, todos os direitos fundados sobre contratos se extingam e percam sua força, o que é uma injustiça cometida em relação à humanidade em geral. (KANT, 2005, pp. 2-3)
Assim como Constant busca situações em princípio que tornariam em verdade a mentira, isto é, que ela fosse aceita por direito como uma verdade, mesmo que não fosse de fato uma verdade, Kant também busca situações a priori para sustentar que a verdade é um dever formal independente de qualquer conteúdo que circunstancial e disso depende todo o direito. É em relação ao direito e não mais àquele que pode ser ou não assassinado que se coloca a priori em questão a mentira o qual Constant e Schopenhauer tentam evitar de um ponto de vista político e não propriamente ético, considerando a boa intenção da pessoa que mente. Assim, diria Kant ao filósofo francês diretamente:
Se tu impediste assim de agir, por uma mentira, alguém que estava prestes a cometer um assassinato, tu és então responsável, de um ponto de vista jurídico, por todas as conseqüências que daí poderiam ter surgido. Mas se te aténs estritamente à verdade, a justiça pública nada te pode fazer, quaisquer que sejam as conseqüências imprevistas. (KANT, 2005, p. 3)
E impõe, por fim, o imperativo categórico da lei àqueles que mente e seu suposto direito de mentir:
Portanto, aquele que mente, por mais bem intencionado que também esteja ao mentir, tem de responder pelas conseqüências de sua mentira, até mesmo perante o tribunal de justiça civil, e pagar por elas — por mais imprevistas que possam também sempre ser, porque a veracidade é um dever, que tem de ser considerado como a base de todos os deveres a serem fundados em um contrato, deveres cuja lei, caso se lhe conceda até mesmo a menor exceção, torna-se vacilante e inútil.
É, portanto, um mandamento sagrado da razão, que ordena incondicionalmente, não restringido por nenhuma conveniência: [deve-se] ser verídico (honesto) em todas as declarações. (KANT, 2005, p. 3-4, grifos meus.)
É uma questão de justiça, mais do que direito, dizer a verdade e não mentir, consequentemente, segundo Kant aludindo ao princípio do direito universal da humanidade e não simplesmente dos homens e do cidadão que têm direito à verdade em particular e que podem mentir em alguma circunstância como defende Constant de modo político. Deste ponto de vista, segundo a pressuposição de buscar princípios cada vez mais verdadeiros e não fugir à verdade dos princípios, diz Kant sinteticamente resumindo a questão colocada entre o direito e a política levantada por Constant a partir da relação entre dever por direito de dizer a verdade e direito de mentir em alguma circunstância política: "O direito não tem de adequar-se à política, mas é a política que tem sempre de adequar-se ao direito." (KANT, 2005, p. 6)

Sabemos atualmente, porém, que é mais pela violência e pelo poder do que pelo mandamento sagrado da razão moral de Kant que a defesa da lei e do direito natural e positivo modernos se originam e que se sustentam, como nos diz Benjamin, não o Constant, mas o Walter, no caso, Walter Benjamin, não nos enganemos, em seu texto Crítica da violência e do poder (1921). Sobretudo é apenas em relação à lei e direito modernos defendido por Kant e aplicado por Constant a quem tem direito à verdade que a mentira é punível ou aplicada em alguns casos, pois, como diz Walter Benjamin, não há de fato e por direito punição à mentira antes do direito natural e positivo moderno, pois:
Enquanto na sua origem a ordem do direito, confiando em sua violência vitoriosa, se contenta em abater a violência contrária ao direito onde se mostra, e o logro [isto é, o engano para obtenção de vantagem por meio da mentira] como nada tem de violência em si, estava livre de punição no direito romano e no direito germânico antigo (...) o direito de épocas posteriores, carecendo de confiança em sua própria violência, já não se sentia mais, como antes, à altura de qualquer outra violência. (BENJAMIN, 2011, pp 139-140)
Em outras palavras, a mentira que em nada tinha de violência ao direito antigo, passa ser considerada uma violência na medida em que ela pode destruir literalmente o direito como pressupunha Kant por este direito não poder mais impor a todos violentamente a força da lei, nem de modo natural, nem de modo positivo, e assim, uma simples mentira é considerada como um meio violento contra o direito em si mesmo e à justiça pressuposta nele. O objetivo de se considerar a mentira uma violência demonstra segundo Benjamin ao mesmo tempo, por um lado, a incapacidade do poder se manter por meio da violência e ao demonstrar assim seu poder tem "a intenção de" evitar violências mais fortes contra si. Neste sentido, a lei e direito moderno "Volta-se, portanto, contra o logro, não por considerações morais, mas por causa do medo de ações violentas que o logro poderia desencadear na pessoa lograda." (BENJAMIN, 2011, p. 140)

É a violência e o poder assim como antes o engano de fato e direito o problema em relação à mentira, não ela mesma no que diz respeito a moral, ao direito e à política. Como tal, a mentira faz parte da linguagem e como esta, segundo Benjamin, é um meio puro de entendimento entre as pessoas em casos particulares, no caso, um meio não-violento diferente dos meios violentos que originam e mantém o direito e lei modernos defendidos de modo natural ou positivo.  Pois para Benjamin, a linguagem é um "meio puro de entendimento" ou "técnica" que tem no "diálogo, considerado como técnica de civilidade no entendimento" seu "exemplo mais profundo". Mais ainda, "Nele não só é possível um acordo não-violento como a exclusão, por princípio, da violência encontra explicitamente sua expressão em uma relação significativa: a de não haver punição para a mentira." (BENJAMIN, 2011, p. 139)

P.S. Ninguém nunca saberá a verdade deste texto...

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