A terra do nunca é para sempre
A vida é para viver, parece óbvio, mas nem sempre o óbvio é fácil de ser percebido. Em geral, não percebemos o óbvio e quando o percebemos o deixamos de lado. Por quê? Porque é óbvio. O óbvio não merece muita atenção, esta é a razão de ser dele, não ter muita importância para nós.
Ao assistir ao filme A vida é para viver (Foreverland, 2012), de Max McGuire, nos damos conta, porém, do óbvio e como ele não é importante apenas no fugaz momento em que o percebemos, mas que se confunde com a própria vida como um momento de fugacidade na eternidade, uma respiração entre tantas outras respirações em seus movimentos de inspiração e expiração que se repetem sem percebermos e que estão lá a nos manter vivos. Entre os diversos filmes em exibição na tela à escolha para assistir, este filme estava lá sem descrição alguma como se dissesse o óbvio e não precisasse de nenhuma explicação a mais. Afinal, o título em português era claro e distinto como uma ideia cartesiana na qual não repousa mais nenhuma dúvida, diferente do título em inglês sob o qual as dúvidas proliferam, pois o que é foreverland?, eu me perguntei em princípio sem conseguir chegar à tradução de a terra do nunca... Mas ao saber a tradução me perguntei: mas não poderia também ser a terra do para sempre?
Nunca e sempre são categorias universais contrárias que se encontram além da terra ou além da vida, isto é, na morte. Não se pode ir além da vida sem viver, tão pouco estar morto sem ter estado vivo, nem se falar da morte sem se falar da vida. Novamente, isto é óbvio. O que não é óbvio é falarmos da vida, de estarmos vivos, de viver a vida em meio a todos os problemas que encontramos nela ao ponto dela ser percebida como um grande problema e preferirmos a morte, lenta ou abruptamente, sem encontrarmos sentido para vivermos, mesmo estando vivos, obviamente. Ainda mais quando estamos doentes como é o caso do personagem do filme, Will (Max Thieriot), um jovem de 21 anos diagnosticado com a doença de fibrose cística, sem cura, podendo chegar ao máximo aos 30 anos de idade.
Apesar do contexto literalmente fúnebre do filme e de Will que espera pela morte cotidianamente como se vivesse apenas para esperar sua chegada, deitando todos os dias no caixão que espera comprar para o seu enterro, chamado carinhosamente de Angélica, obviamente o filme não é sobre a morte e, sim, sobre a vida de Will enquanto a morte chega. Como chega a morte, eis algo que nunca esperamos ou sempre esperamos que chegue de modo tranquilo mesmo que de modo repentino, pois ela é sempre repentina diante da vida, ainda que morramos lentamente numa cama de hospital. Pois nunca vamos admitir que seja a nossa hora, que já acabou o nosso tempo na terra, sempre considerado curto não importa quanto tempo passemos nela, 30 ou 300 anos, como diz a pergonagem Hannah Crane (Laurence Leboeuf) a Will. Sempre morremos jovens em relação ao universo mesmo estando velhos em relação à terra.
A morte nunca é bem-vinda ou é sempre bem-vinda dependendo de como é a nossa vida, eis o seu eterno paradoxo, e o que aprendemos neste filme mostra de modo simples como a vida e a morte estão em cada respiração como a de Will que sentimos como a nossa própria respiração, ora sôfrega, ora prazerosa, como a vida mesma em seu sofrimento e prazer. Olhando Will respirar ora com dificuldade ora como facilidade é impossível não lembrar de Anaxímenes de Mileto para o qual a arkhé de tudo que existe é o ar, pois sem ele não existiríamos, não existiria vida na terra. Não deixamos também de lembrar que a vida é um sopro quando Will sopra com dificuldade a vela de aniversário de 21 anos e é literalmente um sopro de vida que está em questão, menos um que ele tem em seu aniversário ou mais um dependendo de como a vida é percebida por si.
À espera da morte, Will leva o que Heidegger chama de uma vida inautêntica, pois é uma vida que segue uma determinada rotina que o permite viver a cada dia e que não pode ser mudada, como ele deixa claro no início do filme, do contrário, ele obviamente morre. Apesar de estar vivo, sua vida é como toda e qualquer vida natural, sem acontecimento algum que a difira da vida dos outros seres na natureza. É uma vida mecânica que segue a mecânica do universo sem qualquer sobressalto, sem qualquer perspectiva de que aconteça algo diferente, sem projeto algum de vida, pois, como diz, não há como pensar no futuro se tem pouco tempo de vida. Sua atitude é, portanto, passiva diante da vida por conta da sua doença, mas não simplesmente por ela, pois se trata de uma atitude como a de muitas pessoas mesmo quando não estão doentes. Vivem a vida de modo óbvio, sem perceber obviamente a vida e quando percebem é muitas vezes tarde demais, não no caso de Will que é forçado a percebê-la pelo amigo Bobby que tem o mesmo problema que ele e, quando morre, obriga-o a levar suas cinzas para ser jogada no "Santuário do Sol", um tanque de cura milagrosa na Igreja del Sol, no México. Algo absurdo para Will que, além de doente, mora no Canadá, mas não consegue evitar o último desejo do amigo e da irmã dele, ainda mais que este lhe foi confiado em testamento como herança e dívida.
O que se segue é, obviamente, mais um filme em que vida e morte se confundem com uma jornada, e princípio, de carro em princípio, depois de carona, depois de ônibus, depois a pé, do modo que é possível a cada problema que Will e Hanna devem superar, inclusive, o do relacionamento entre eles, o da memória do amigo-irmão morto, o da possibilidade constante de Will morrer a qualquer momento nesta viagem que parece sem volta, pois ele já perdera a esperança na vida mesma. Não é fácil ter esperanças na vida quando estamos em volta de problemas, quando tudo nos tira o fôlego e vivemos a ansiedade não pelo infinito romântico e, sim, pelo fim em breve. Ter esperança, esta é a única coisa que Will diz que não vai fazer pelo amigo ao levar suas cinzas ao santuário, pois a vida já se tornou óbvia demais para ele em seu caminho para a morte e "Todo ser vivo tem, certa, a última caminhada, com perda total de tudo." (Dias da Silva)
Will não acredita em milagres como o amigo e não reza como ele. O milagre é, porém, o que faz a vida ser autêntica como diria Heidegger, pois é um acontecimento, uma última encarada na vida com esperança, projetando-se nela, dando um sentido a ela ou buscando um último sentido em si. Uma vida autêntica é a que encara a morte de frente e se projeta para além dela, que busca viver sua existenz e não sua factidade como de costume. Uma vida que não segue uma rotina animal natural e na qual se vive cada dia não como se fosse o último, mas como se fosse o primeiro, pois viver como se fosse o último dia de vida é viver como se a vida tivesse sido jogada fora e somente agora, neste último instante, se resolvesse vivê-la como no filme Antes de partir (The bucked list, 2007). Não é a culpa ou o ressentimento por não termos vivido como desejávamos que deve nos motivar a viver cada instante, é a própria vida em seu viver, pois ela é senão diferente a cada instante e cada instante deve ser vivido intensamente em sua singularidade no tempo.
A vida autêntica é senão a vida vivida em toda sua intensidade fugaz como uma breve respiração, como um milagre a cada momento, como o acontecimento que é ela mesma quando nascemos, o milagre da vida que Will não esperava ter ao cumprir o último desejo do amigo, mas acabou tendo, antes de perceber o óbvio: "A questão não é como morremos, mas como vivemos." Mas percebeu algo mais que não é tão óbvio assim quando disse: "Para mim, isso era mais fácil dizer do que fazer." Pois nem sempre é fácil fazer o óbvio que é viver a vida, apenas dizer para se viver sem vivê-la realmente diferente a cada dia em sua autenticidade.
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