O livro

janeiro 02, 2018
Ano passado, depois da apresentação de um texto lido por mim sobre o filme Batismo de Sangue, uma estudante me elogiou e me disse que eu deveria escrever um livro. Ela não foi a primeira pessoa a me dizer isto e a minha resposta a ela não foi diferente da que dei a todas as outras, um sim, que pensava em fazer isto.

Ao lembrar hoje no que ela e outras pessoas me disseram, como não podia deixar de ser, comecei a filosofar sobre isto, ainda mais porque a questão sobre o livro é um debate constante desde há pelo menos 50 anos, quando Jacques Derrida publicou sua obra Gramatologia, e no seu primeiro capítulo colocou a questão que seria, por excelência, a de sua filosofia, qual seja, sobre "O fim do livro e começo da escritura". Uma questão que permanece aberta ainda hoje e que não deve se encerrar tão cedo e que já foi mote para diversos livros e distopias antes mesmo de Derrida pensá-la, como na célebre distopia Farenheit 451 (1953), de Ray Bradbury, em que desde o título já se coloca em questão a destruição do livro à temperatura de 451 farenheit. Uma questão, ademais, retomada e repensada por Deleuze e Guattari em 1980 também no início de sua obra Mil Platôs, segundo tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, cujo primeiro foi O anti-Édipo (1972), e na qual pensam não propriamente a destruição do livro, mas a sua transformação, de livro-raiz em livro rizoma.

Desde que Derrida formulou a questão do fim do livro, ela foi exaustivamente discutida não apenas por filósofos, mas por historiadores como Roger Chartier que se dedica particularmente sobre a questão do livro, da literatura e da cultura que o enseja. Além dos teóricos uma questão discutida também por todos aqueles que fazem parte da grande cadeia produtiva do livro entre o escritor e o leitor, os dois extremos em relação aos quais o livro é meio-termo, um ponto médio ou um ponto em comum ou de interseção, que separa e ao mesmo tempo une duas pessoas distantes tornando-as tão próximas ao ponto de se comunicarem quase que telepaticamente mesmo depois da morte. Uma questão que se tornou cada vez mais importante atualmente à medida em que outros meios de interpuseram na relação escritor-leitor em que o livro é substituído por um aparelho com tela como previra George Orwell, no livro 1984 em 1948. Uma questão que, mais recentemente, o cantor Caetano Veloso também tomou para si esta questão na música Livros no álbum Livro (1997) e deu uma voz poética musical a ela quando escreveu e musicou nos seguintes versos que os livros:
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
E desse ponto de vista, para ele:
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Mas por que a questão do livro é tão importante para filósofos, historiadores, produtores, músicos e a estudante do ensino médio ao me pedir para escrever um livro? Por que mesmo escrevendo desde os 14 anos e em volta de livros desde tempos imemoriais nunca me propus seriamente a escrever um livro, apesar de ter escrito dois poéticos recentemente? Por que apesar de escrever quase cotidianamente em diversos meios como neste blog e, apenas pensando neste blog, tendo escrito e publicado 194 artigos com, em média, 5 páginas A4 com 1,5 de espaçamento, escritos em Times New Roman, fonte 12, e que, se transposto para o formato de um livro, dariam 10 páginas, totalizando 1940 páginas, por que mesmo assim não escrevo um livro? Sem contar os 65 textos que não foram publicados. Ou ainda, sem contar todos os textos manuscritos em folhas hoje amareladas de diários e versos de cartazes de universidade que arrancava dos flanelógrafos para escrever...

Penso nisso e me pergunto: mas por que não escrevo mesmo um livro em vez escrever estas palavras e textos a esmo num blog? Por que mesmo desejando escrever um livro não faço isso? Mas por que tenho que escrever um livro? Por que tudo que escrevo não é tão importante como o que é escrito num livro? O que dá tanta importância ao livro e que os textos aqui escritos não têm?

Penso nisso e me lembro: não haviam livros na antiguidade. Os maiores filósofos da Grécia antiga nunca escreveram livros e, Sócrates, o mais célebre de todos nem mesmo escrevia como lembra Derrida na epígrafe de O fim do livro e o começo da escritura citando Nietzsche: "Sócrates, aquele que não escreve". Talvez por não saber escrever como muitos gregos de sua época dentre tantas outras coisas que sabia que não sabia. Ou ainda, por ser averso à escrita como Platão o descrevera no diálogo Fedro, Platão que, diferente de Sócrates, é lembrado senão como aquele que escreve e que se notabilizou como discípulo de Sócrates e filósofo por escrever os diálogos de Sócrates, mas que, apesar disto, também nunca escreveu um livro, mesmo que se vendam hoje vários livros dele.

Uma rápida pesquisa na Wikipedia sobre quando surgiu o livro mostra que foi no início da era Cristã quando se começou a se costurar códices (codex), de pergaminhos dando início ao formato do livro tal como ainda é hoje em suas costuras ou grampos, não importa a variação de costuras ou formatos que ele adquira a partir delas. Desse ponto de vista foi para facilitar a organização dos textos em diversos pergaminhos que surgiu o livro tal como conhecemos hoje, mas que somente na Idade Moderna com a invenção da impressão móvel por Gutemberg que ele adquiriu a importância que tem hoje como objeto táctil como diz Caetano. Mas uma importância que é principalmente transcendental como diz também ele, de modo que o livro é algo tanto imanente em sua materialidade como transcendente em sua possibilidade de lançar mundos no mundo.

Derrida já lembrava esta potencialidade e possibilidade transcendente que os livros têm em relação ao mundo, quando nos lembra Descartes "... lendo o grande livro do mundo...", deste modo a partir dele, o mundo podendo ser livro como um livro que seria escrito particularmente em linguagem matemática, diria Galileu. Deleuze e Guattari também lembram isto ao dizerem que no livro-raiz, o livro em sua interioridade orgânica, "O livro imita o mundo...", é uma reflexão do mundo em uma imagem de pensamento. E Derrida nos mostra ademais a transcendentalidade que se coloca em questão nesta imagem de pensamento clássica do livro-raiz que se torna tão importante na modernidade em relação à escritura, não apenas a escritura antiga, mas qualquer escritura, quando diz que:
A ideia do livro é a ideia de uma totalidade, finita ou infinita, do significante; (...) A ideia do livro, que remete sempre a uma totalidade natural, é profundamente estranha ao sentido da escritura. É a proteção enciclopédica da teologia e do logocentrismo contra a disrupção da escritura, contra sua energia aforística e, como precisaremos mais adiante, contra a diferença em geral. Se distinguimos o texto do livro, diremos que a destruição do livro, tal como se anuncia hoje em todos os domínios, desnuda a superfície do texto. Esta violência necessária responde a uma violência que não foi menos necessária. (DERRIDA, 2004, p. 21-22)
Passados 50 anos desde a publicação da Gramatologia e a desconstrução da ideia do livro que Derrida colocou em questão ao pensar o fim do livro, é difícil não perceber como ela antecipa toda a problemática de se escrever textos avulsos hoje em dia na Internet em relação ao livro. Como mesmo virtual a ideia de livro, se é ainda a de um objeto táctil por excelência, ela vai além do pegar um texto em uma folha, mas de organizá-lo no formato de um livro. Não importa se este livro, como dizem Deleuze e Guattari, é um livro-raiz como imitação e imagem do mundo ou um livro rizoma defendido por eles como livro que "faz rizoma com o mundo", que "há evolução a-paralela do livro e do mundo", e que, deste modo:

o livro assegura a desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). (Deleuze e Guattari, 1995, p. 20)
A questão em ambos casos do livro-raiz e do livro rizoma é ainda de que o livro é sempre mais importante do que um texto avulso na Internet e folhear as páginas nele mais importante do que tê-las a mãos dispersas, de que escrever um livro é mais importante do que escrever um texto simplesmente e publicá-lo em qualquer outro meio. Que o livro é mais importante do que a escritura e que se a escritura adquire importância é senão por causa dele, da organização dela que ele possibilita como se a costura dos códices ou folhas atualmente, ao penetrar cada uma delas com uma agulha ou grampo violentamente, submetesse a escritura a um poder que não tinha antes e não tem sem estas costuras mesmas, sem se tornar um livro. Costuras que seriam o primeiro passo na estruturação da violência necessária do livro de modo material a qual se seguiriam muitas outras outras como capa, contracapa, orelhas, lombada, prefácio, sumário, índice, formatos de letras, margens, paginação e tudo mais que possa limitar a escritura ao livro como os direitos autorais a impedirem qualquer reprodução dele de modo total em outro formato, por exemplo, fotocópias, ou de modo parcial, retirando dele excertos não autorizados ou não referenciados segundo regras bastante rígidas. Em outras palavras, a partir do livro criando-se todo um contexto para os textos que não dizem respeito à sua escritura, mas, hoje em dia, a toda uma produção do livro num mercado editorial emergido a partir deles na sociedade capitalista.

Ninguém melhor do que Derrida previu, deste modo, a possibilidade de destruição do livro pela produção virtual dos textos tão temida pelos editores hoje em dia em sua violência não menos necessária na medida em que o livro se tornou a expressão de um pensamento logocêntrico que não tolera a diferença não apenas entre o livro e o texto, mas a diferença em geral da qual esta diferença é apenas um exemplo. Isto porque o que Derrida nos adverte em sua Gramatologia é como o livro encerra um pensamento e deste modo o limita em um determinado contexto impedindo-se que se pense para além dele, que se pense aquilo que não está presente no livro, pressuposto por ele ou a partir dele segundo o que foi escrito pelo autor-escritor. Deste modo, como encerrado nas páginas organizadas do livro e por ele o pensamento adquire o poder de um sistema no qual se pode entrar por qualquer parte, mas já não se pode sair tornando-se parte de sua totalidade e não se pode extrair qualquer parte dele sob o risco de fazer ruir o sistema orgânico que o livro compõe em si mesmo. Sobretudo, como o livro inserido numa cultura ocidental europeia é se torna o símbolo de toda uma colonização do pensamento não escrito na forma de livros, pensamento que não se encerra num livro, cuja escritura não é a escritura do livro, submetida ao livro, como acontece em diversas culturas não europeias e ocidentais. E como, se poderia dizer a partir dele, o livro se torna o meio de produção mais difundido de destruição de culturas e de pensamentos com a distribuição em massa partir da apropriação da imprensa por grandes indústrias e distribuidoras de livros que produzem e distribuem apenas alguns livros eleitos dignos de produção, logo apenas alguns pensamentos merecedores de publicação. Ou, se poderia dizer a partir de Deleuze e Guattari, como o livro criado como uma máquina de guerra renascentista foi pouco a pouco apropriado do ponto de vista econômico político pelo aparelho de Estado capitalista e como ele se tornou algo transcendente em relação a toda a imanência da escritura em si que amamos de modo viciado como o amor que votamos aos maços de cigarro, transcendência ainda de toda a utilidade que um livro pode ter para além da sua leitura mesma como nos lembra Caetano, entre elas, não citada por si, a de servir de calço para perna de uma mesa.

Contudo, e apesar disto, não é preciso deplorar a produção de livros como objeto táctil e transcendente como se deplora o vício do cigarro, e não era isto de fato que Derrida pensava em sua desconstrução do logocentrismo do qual o livro faz parte. O que se é preciso pensar é como independente do livro um pensamento pode se manifestar ou se expressar em diferentes meios ou em diferentes mídias além do livro. Ou mesmo além da fala a qual o livro se submete hierarquicamente em importância, pois segundo um fonologocentrismo, a voz é mais importante do que a escrita como meio de expressão do pensamento e a articulação dela numa fala mais importante do que a escritura enquanto organização da escrita em texto ou dela no contexto de um livro.

E, assim, parodiando Aristóteles em sua Metafísica, se o ser se expressa de diferentes modos ou meios não por menos o pensamento do ser também se expressar em diferentes modos, meios ou mídias ou escrituras segundo uma gramatologia, e não apenas num livro, ou antes, numa fala. Eis, por que talvez eu ainda não tenha escrito um livro, o que não quer dizer que não escreva um dia. Quem sabe este texto não se torne um livro sobre por que não escrevo um livro ou por que não é tão importante para mim e para muitos escrever um livro hoje em dia. Por hora, a resposta mais óbvia, além desta, seria a mesma que deu origem ao livro, isto é, que se foi mais fácil organizar os códices em livros, hoje é não por menos mais fácil organizar os textos em um blog ou em páginas de Internet ou de uma rede social, que se não é a mesma experiência de escrever ou ler um livro, não deixa de ter a mesma finalidade que os livros tiveram desde o início.

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