A verdade
A verdade é o mal do filósofo. É aquilo que arruÃna sua vida, mas que sem ela não pode viver. Por três vezes atravessei o Aqueronte e sofri o mal por contar a verdade, por não conseguir ocultá-la, pois a verdade não se oculta como um fato, uma coisa ou uma palavra quando se é criança.
Quando criança, não sabemos o que é a verdade. Podemos facilmente mentir, pois a verdade não está nas palavras ou nas coisas, tão pouco está nos fatos. A verdade está no que sentimos e já não podemos evitar, já não podemos nos desviar, já não podemos esquecer, como pensavam os gregos denominando-a por alétheia, o não-esquecimento. Por isso ela não se relaciona aos fatos, às coisas ou às palavras que podem ser esquecidos, ela não. A verdade é independente dos fatos, das coisas e palavras, não se limita a eles, não se esconde neles, nunca pode ser escondida. Não se pode ter ciência dela na aparência dos fatos, das coisas e das palavras, isto é, nos fenômenos, nem tão pouco em algo além deles, no noumenon, pois a verdade não é uma coisa em si que simplesmente podemos encontrar neles. Nada nela é objetivo ou é descoberto por nossa subjetividade a priori.
Se a verdade não está nas aparências não é tão pouco uma essência que pode ou não ser conhecida ou descoberta, é porque ela é transparente, isto é, não tem uma aparência ou essência mesma, ainda que possa ser vista mesmo sendo invisÃvel, como algo evidente, do qual já não podemos desviar os olhos, pois está em nossa visão, no sentido do ver. A verdade é o que se põe à vista sem se poder ver, sem ser possÃvel negar, não porque é vista em sua aparência ou essência em si mesma, mas porque não é vista nem na aparência nem na essência, mas na cegueira de ambas que ela produz por já não se poder enxergar nada além dela, pois não há nenhuma aparência nem essência além da verdade quando a verdade se põe à vista.
Nenhum fato, coisa ou palavra pode ser concebido em sua aparência e essência além da verdade pois todos dependem dela. Não há uma pós-verdade, somente a ausência de verdade depois da verdade, pois ela é um limite que limita a tudo e todos em sua existência e que já não pode ser ultrapassado. Não se pode ir além da verdade, apenas ficar aquém dela, e somente quando somos criança, não mais quando somos adultos.
A verdade é o que nos separa de uma infância tornando-nos adultos, quando adquirimos uma maioridade da razão, isto é, quando se torna maior por sentir a verdade diante dos fatos, das coisas, das palavras e já não poder negá-la, não porque se está diante deles, não porque não podemos dizê-los ou porque não podemos relacioná-los, mas porque não podemos mais a verdade neles por qualquer razão. A razão quando adquire sua maioridade ao sentir a verdade já não nos permite dizer não, apenas sim, independente de qualquer culpa por estarmos diante de alguém ou de alguma entidade divina. A verdade não tem relação com o medo ou a liberdade em relação a uma autoridade, pois não está sob o poder de alguém, é aquilo que ninguém pode deter, ter pra si, dar-lhe o nome ou falar em seu nome, assiná-la como um conceito, uma explicação a que se chega de algo, sobre algo ou alguém, ou a partir de algo ou alguém estabelecendo uma fronteira entre fatos, coisas e palavras com um nome. A verdade não tem nome ou é um nome, ela é inominável.
Quem fala em nome da verdade não sabe o que é a verdade, apenas professa algo sobre ela, algo lógico, algo que tem um sentido, uma razão, mas já não é a verdade. Não se pode dizer, mostrar, demonstrar, fazer sentir a verdade, somente senti-la como algo inesquecÃvel, e não importa o que outros vejam, digam, mostrem ou demonstrem o contrário. Não se pode contradizer a verdade. Eis porque ela é lógica, mas não que a lógica seja a verdade e, sim, aquilo sem o qual a verdade é apenas um sentimento vão, por acaso, de alguém que sente algo e que manifesta algo a outrem querendo que ele acredite em si. A verdade não é uma crença vã de qualquer que acredita no que sente e quer que todos acreditem nisto e sintam a mesma verdade. Ninguém precisa acreditar na verdade, pois a verdade não é algo em que se acredite, algo que se possa fazer ou se deva fazer alguém acreditar, nem tão pouco se precisa fazer alguém acreditar na verdade. Quando é verdade, todos sentem, todos sabem. E mesmo que se diga a verdade, muitos podem não acreditar, pois ela não é uma crença ou algo crÃvel em que se deva acreditar, mas em que se acredita, não por ser dita por alguém, não por se estar diante dos olhos, não por fazer sentido, ter uma lógica, ter uma razão no que se diz, mas porque é a verdade e já não pode se deixar de acreditar nela, na sua lógica, sentido ou razão, naquilo que torna tudo isso maior, tudo maior do que se é, que amplia o que se é para além de sua existência, que torna o ser superior, qualquer que seja o ser.
Não importa aquilo que exista, tudo se torna maior na medida em que é verdade. A pedra no meio do caminho não é apenas uma pedra, é uma pedra verdadeira, uma pedra que adquiriu uma superioridade, não por ter feito algo excepcional, por ter um dom que a eleve em relação à s outras, pois a verdade da pedra não é um misticismo em relação à pedra, uma fetichização dela numa realidade para além de si mesma, isto é, enquanto pedra, e que conferiu à pedra sua verdade mesma, tornou a pedra verdadeira. Todas as pedras são verdadeiras e não apenas a pedra no meio do caminho que se tornou poesia, que adquiriu uma forma poética ou mesmo mÃtica como a pedra engolida por Cronos como se fosse seu filho e vomitada por ele tempos depois. Novamente, a verdade não está na pedra, no que dizemos sobre a pedra, no fato de estarmos diante da pedra no meio do caminho ou no Olimpo divino. A verdade não é uma hierarquização que torna um ser superior a outro, não é uma medida entre os seres, pois não se pode tomar distância da verdade para medi-la quando se é verdade, não se pode afastar dela para saber o que fazer com ela, por que meio, segundo que métodos e deste modo dizer o que é superior a que de verdade. Não há um meio entre o ser e a verdade, pois a verdade é sempre imediata ao ser, como aquilo que o espaço e o tempo já não separam sem unir, isto é, sem já se constituir em si mesmos, por todo espaço e tempo de modo infinito. A verdade não é algo que o espaço e o tempo podem tornar distante sem já tornar próxima ao mesmo tempo, pois é aquilo que está sempre próxima por mais distante que for, que qualquer distância aproxima. Nada a limita, ela limita tudo, inclusive o espaço e o tempo que, portanto, não são a si, tão pouco a posteriori, mas em si e a si imediatamente de modo verdadeiro.
Não há algo superior à verdade. A verdade torna tudo superior e tudo pode se tornar superior com ela, mas nunca em relação a outrem no espaço e no tempo. A verdade não é algo divino, dado, bendito, vendido, trocado em nome de algum deus e qualquer deus em sua onisciência sabe muito bem disso, mas não muitos seres humanos que falam em nome de uma verdade divina, como se existisse uma distinção de verdades ou uma verdade única, a de ou de vários deuses, e não simplesmente a verdade que a tudo distingue e a tudo torna único, que é a distinção de tudo, e não por menos de deus como algo verdadeiro em relação aos seres humanos, mas não menos estes em relação a ele no que diz respeito à verdade, pois a verdade não pertence somente a deus senão não poderia ser conhecida. Tão pouco pertence a alguém que fala em nome de deus senão este seria superior aos outros seres e a verdade não torna nenhum ser superior a outrem, pois qualquer um pode conhecer a verdade, ser a verdade, basta que seja verdadeiro.
Tudo pode se tornar verdade, eis o problema da verdade à queles que acreditam que ela é um fato, uma coisa ou uma palavra sobre o qual se pode convencer que seja a verdade, logo se pode também não convencer e saber que se está mentindo, que é uma mentira a qual se pensa e acredita opor à verdade, como se algo se pudesse se opor a ela. A mentira não é o oposto da verdade, é o que busca ocultar a verdade, pois aquele que mente sempre sabe o que é a verdade, mas não quer mostrá-la, nem para si nem para os outros, isto é, ainda é ignorante a ela. Ignora a verdade não querendo saber dela, não ser responsável por ela. Podemos sempre mentir e, deste modo, ocultar a verdade do ponto de vista do conhecimento dela e é disso que se fala de verdade, mas não podemos ocultar a verdade na medida em que se conhece ela, apenas o conhecimento dela, quando se tem dúvida em relação ela, quando se raciocina e se recua diante do conhecimento dela, mas sem conseguir evitá-la em si e para si quando é conhecida. Não é possÃvel mentir para si mesmo, eis a evidência da verdade, aquilo que torna toda mentira vã como apenas um limite estabelecido entre o ser e ela, mas que já não limita nada, que é o limiar entre o ser e a verdade como um véu de maia que se põem sobre ela tentando evitá-la à vista, para se obter um prazo, mas que não consegue ocultá-la em sua transparência a ele e nele mesmo com todo retardo no espaço e tempo em que o véu se interpõe entre o ser e ela.
Se não é possÃvel mentirmos para nós mesmos não é porque não podemos negar nossa subjetividade e objetividade de modo evidente, mas porque não podemos negar a verdade em nossa subjetividade e objetividade como a de qualquer ser em sua evidência, isto é, em sua verdade. Não está em nosso poder isto, tão pouco é a verdade nosso poder, pois somos impotentes a ela e com ela. Saber a verdade não nos dá poder algum, pelo contrário, torna-nos impotentes, pois qualquer um pode nos oprimir, violentar e matar por ela, para obtê-la ou para defendê-la como sua propriedade alegando direito sobre ela. Todos querem deter a verdade, tê-la para si e somente si, tornar-se superior com ela como se ela lhe desse poder. O que demonstra senão o quanto não conhecem a verdade, nem nunca vão conhecer, ao pensarem que ela é algo que possam ter para si e mais ninguém, pois todos são capazes de sentir a verdade quando ela transparece a si e ninguém pode evitar isso em si e para os outros, por mais que queira, por mais que queira adquirir e adquira poder econômico ou polÃtico evitando que todos saibam a verdade convencendo-os de que ela está consigo e apenas consigo e somente através de si pode ser obtida.
Aquele que pensa deter a verdade sem dispô-la a outros a não ser por alguma quantia é como uma criança que pensa estar escondendo dos pais um fato, uma coisa ou algo a ser dito. Ela pensa que a verdade está em si, que tem poder sobre ela, que adquire poder com ela, que pode ocultá-la aos outros e adquirir poder com ela. É deste modo um ser infantil, não por ser uma criança ou alguém menor do que outros necessariamente, mas por não ter adquirido uma maioridade da razão, este momento em que nos tornamos verdadeiros, que nos tornamos verdadeiramente quem somos, admitindo verdadeiramente o que fazemos, dizendo o que verdadeiramente pensamos, pensando o que verdadeiramente sentimos. Um momento que é único e distinto na vida, mas que não acontece obviamente de modo único e sem se repetir nela, que se repete e sempre está por vir a cada instante nela e nunca sabemos de verdade em que momento a verdade vai nos transparecer deixando-nos nus a nós e aos outros, sem culpa ou vergonha alguma, já que é a verdade, é o que é, é o que somos, já não podemos negar mesmo nos fazendo mal.
Por três vezes atravessei o Aqueronte por contar a verdade, mas somente o atravessa quem a conta, e se a verdade não nos livra do mal ou de qualquer coisa que nos faça, pode muito bem nos fazer suportar o mal ao contarmos a verdade, pois ela é o que faz nos sentirmos bem, atingirmos a maioridade da razão, sermos filósofos.
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