Papai, Papai Noel existe?
Papai, o Papai Noel tem o mesmo nome que o seu. Ele é Papai Noel e você é papai, então você é o Papai Noel! Esta foi a conclusão lógica-filosófica a qual meu filho de 8 anos chegou ano passado depois de várias vezes perguntar se Papai Noel existe. Por mais infantil que tenha sido a sua lógica de pensamento, ela revela algo que é muito particular, a crÃtica dos mitos e de tudo que é fantasia em relação à realidade que pretensamente filósofos e cientistas julgam deter de modo natural e objetivo.
Como filósofo, ao dizer a meu filho que Papai Noel existe, inclusive pedindo para que escreva uma carta para ele ainda este ano, claramente não tenho esta pretensão de deter a realidade em sua natureza objetiva, pois além de filósofo sou poeta e aprendi desde cedo a não ver a realidade apenas em seu aspecto objetivo, tão pouco de modo puramente subjetivo como expressão clara e distinta de uma realidade como Descartes fez valer para toda a modernidade filosófica cientÃfica. Para além da objetividade e subjetividade filosófica e cientÃfica não deixo de considerar como válido tudo aquilo que o mito representa para além da superstição, mÃstica e religiosidade em relação a ele. Neste sentido, comungo particularmente com Vico quando advoga para a humanidade toda uma tradição cultural mÃtica como pedagogia oposta à tradição matemática e geométrica cartesiana e com Schiller uma educação estética da humanidade, mas, sobretudo, com a paideia grega toda fundamentada nos ensinamentos mÃticos que, até hoje, são atualizados nos devaneios da poesia e literatura moderna como bem analisou Bachelard e estão presentes em nosso inconsciente à cada dia.
O modo como se encara o Papai Noel hoje em dia demonstra muito bem como encaramos a realidade a partir da modernidade, não pelos olhos das crianças, mas pelos olhos adultos. Ou seja, vemos um velho branco, de barba branca, com roupas vermelhas, que mora em um determinado lugar, a Lapônia no Polo Norte, que fabrica brinquedos e os deixa ou os dá na noite de Natal para aquelas crianças que forem boazinhas. Referências objetivas de uma realidade que a criança passa a ver de modo fantasioso como de fato é e pouco a pouco é deixado de lado à medida que cresce e que muitos pais forçam que se perca logo para olhar a realidade como ela é de verdade, sem Papai Noel, que não passaria de uma mentira contada por adultos para crianças tal como se contavam os mitos, se diz comumente.
Mas o que ganhamos de verdade ao dizermos para os filhos que os presentes foram comprados numa loja com dinheiro que muitas vezes não se tem, pois foi parcelado em 10 vezes sem juros no cartão, que talvez não se saiba se vai conseguir pagar, pois não se sabe se vai ter dinheiro, porque pode não ter emprego em meio a toda a crise econômica e polÃtica do paÃs, que os presentes foram embrulhados em casa mesmo, com um papel de presente comprado na esquina e que, enfim, Papai Noel não existe e tudo isto é um fetiche criado pelo mercado capitalista para consumirmos em determinada época do ano?
O que se ganha com isto é, obviamente, uma realidade que a modernidade filosófica e cientÃfica nos ensinou a ver em toda sua objetividade e subjetividade, nada mais do que isto, aquilo que um adulto consegue enxergar muito bem, mas uma criança não, pois ela não enxerga a realidade deste modo, ela não vê a realidade de modo objetivo ou subjetivo, mas fantasioso, o que não quer dizer que a realidade não tenha para ela uma objetividade e subjetividade mesma. Uma criança, como todo pai sabe, se vê a realidade como ela é, esta realidade é sempre transformada em outra coisa fazendo de um pedaço de pau uma espada, de uma pedra um carro, de um bloco de montar um personagem qualquer em sua imaginação. Tudo que é objetivo e subjetivo adquire um sentido totalmente diferente do que a natureza em toda sua objetividade permite ver e a subjetividade humana reflete ao seu modo filosófico e cientÃfico costumeiro dizendo o óbvio: isto é um pedaço de pau e não uma espada, uma pedra e não um carro, um bloco de montar e não um personagem. Por fim dizendo, deixe de imaginar e olhe a realidade como ela é de verdade! Não seja criança!
Não é difÃcil perceber, neste sentido, porque os jogos de video game e de computadores se tornaram tão populares entre as crianças, principalmente no Natal, e porque muitos adultos ainda os cultuam buscando neles aquilo que muitos pais negaram a si, o direito de imaginar, de olhar para a realidade de formas diferentes, para além de todo a filosofia e ciência da realidade. Isto porque os jogos virtuais de um modo geral são atualizações dos mitos antigos ou criações de novas mitologias a partir deles com deuses, heróis, monstros, prÃncipes, princesas e toda uma história de desafios a serem superados. Há neles toda uma transformação da realidade tal como ela é em sua história em uma realidade tal como ela poderia ser em diversas histórias e não por acaso os jogos virtuais são o principal problema para pais e educadores da filosofia cientÃfica moderna para os quais os jogos virtuais desestimulam a compreensão da realidade tal como ela é.
Ao negarmos a existência do Papai Noel deste modo, ao contrário do que muitos pensam, não negamos a lógica da sociedade capitalista que estimula o consumo em seu materialismo, tão pouco negamos um mito ou uma mentira que não pode fazer parte da realidade, mas negamos que a realidade seja ela mesma diferente do que é na sociedade capitalista em todo o seu materialismo advindo senão da filosofia e ciência moderna em toda sua objetividade do mundo. Negamos qualquer perspectiva de mudança desta realidade em um por vir totalmente outro a ela por mais que faça parte dela de algum modo, ou se relacione a ela de algum modo como são os mitos. É não acreditar que a realidade possa ser diferente do que ela é, mas que ela deve ser sempre, de modo permanente, tal como é, imutável segundo uma lei natural, uma verdade sem questionamentos. Não se poder questionar a realidade é o que muitos pais ensinam a seus filhos quando negam a eles respostas no seu dia-a-dia, quando negam que algo possa existir de modo diferente.
Contudo, estamos sempre querendo fugir ao materialismo no qual é consumido nossa vida material, estamos sempre em busca de que algo nos separe da vida material para que tenhamos outra existência, estamos sempre querendo acreditar em papais noéis a todo instante, alguns como meros produtos da realidade que nos dão a vã ilusão de que saÃmos deste mundo num momento de embriaguez ou entorpecimento dos sentidos, outras como pessoas da vida real que fantasiamos esperando nelas encontrar algum presente, isto é, a celebração do encontro do passado e do futuro, do que éramos antes e serem depois deste encontro, a celebração da mudança de nossa tristeza em nossa alegria com a presença de uma pessoa em nossas vidas para além do que ela representa em sua materialidade.
Ao negarmos Papai Noel, eis que não ganhamos nada na realidade além da visão torpe de toda sua materialidade, de que tudo é natural aos nossos olhos, de que tudo que existe perece e nada podemos fazer quanto a isto, que toda a vida tem apenas um sentido óbvio que é ele mesmo inquestionável e nos conduz a todo um niilismo. Niilismo que não é uma ausência de algo material na realidade, a presença paradoxal do nada, mas a materialidade mesma da realidade em sua inexorável tendência para a morte inquestionável, pois se a vida é sempre a possibilidade de uma mudança até o fim dela independente de suas condições materiais naturais, a morte é a impossibilidade de mudanças na vida, da vida, a não ser por uma crença de que existe algo para além dela, um Papai Noel que vai dar todos os presentes que não se tem na vida se todos forem bonzinhos e sofrerem bastante por ele. Ao contrário de uma ausência de sentido para a realidade, o niilismo é a compreensão da realidade tal como ela é em sua tendência natural para o fim, para a morte, e a impossibilidade de se pensar uma realidade diferente do que ela é em sua materialidade a não ser numa vida para além da vida mesma que somente a morte torna possÃvel.
Não é uma vida para além da morte que o Papai Noel representa, mas a possibilidade de uma vida diferente da vida em que vivemos, uma vida que é um presente, o momento de um presente no qual nos damos a outro no presente, qualquer que seja o presente, e no qual se produz a lembrança para além do presente mesmo em sua materialidade que lembraremos num futuro. Um futuro que é o de continuarmos acreditando que para além de toda a materialidade em que a vida se destrói, podemos construir algo diferente, podemos pensar que não somos apenas pais e mães, somos papais e mamães noéis, pessoas que trabalham para dar aos filhos presentes que os façam lembrar que não somos apenas pessoas que estão ausentes deles por todas as condições materiais capitalistas que nos impõem trabalhar de 8h, 10h, 12h por dia, mas que somos pessoas que temos afetos por eles, que desejamos estar perto de si, na presença de si, encontrando na presença deles, na presença do outro nossa felicidade. Que não somos as pessoas egoÃstas que passam os dias dedicando sua vida ao enriquecimento de si mesmo, mas pessoas que passam o dia dando a vida pelos outros, que trabalham para os outros sem nada em troca até o fim da vida, até ficarem velhas como papais e mamães noéis.
Dar a vida pelo outro, eis o que representa o Natal, uma época de nascimento para os cristãos, mas que é antes disso uma época de nascimento em si mesmo da presença de outra pessoa em sua vida. Nascimento que é a possibilidade mesma de uma vida diferente, de uma vida que não advém da morte, mas da celebração do encontro de duas pessoas pela união do amor que nos faz superar todo o egoÃsmo em relação ao outro, toda a separação que temos em relação aos outros em nossa vida cotidiana e querermos ele perto de nós, dando uma vida nova a nós. Outro que é a possibilidade de uma nova vida para nós independente de nós mesmos, a quem dedicamos a nossa vida mesma na esperança de que ela seja diferente consigo, por si, e que nos faz presente para além de nossa vida. Outro que é o filho, que é um presente do Papai Noel, a presença de algo diferente em nossa vida, a possibilidade de toda a mudança dela na medida em que ela deixe de ser uma mera materialidade de corpos naturais que se consomem a cada dia desesperados pela sua sobrevivência no trabalho.
Sim, Papai Noel existe. Eis a resposta que dei ao meu filho e sempre darei a ele e na qual ele acredita ainda hoje mesmo tendo chegado a compreensão de que eu sou o Papai Noel. Sim, sou, somos todos papais e mamães noéis, não importa a roupa que vestimos, pois acreditamos na possibilidade de uma vida diferente da que vivemos não depois da morte, mas na vida em que vivemos materialmente e devemos esquecer para não sucumbir no niilismo, na morte da vida mesma. Somos papais e mamães noéis que em busca de uma vida melhor para nós e para os nossos filhos queremos estar presente na vida deles, que a vida deles seja diferente da que vivemos, que no presente no qual estamos juntos no Natal, celebremos o passado em que fomos bons, pois é o único que importa, e um futuro melhor de um por vir de brincadeiras com os presentes que advirão depois de um Feliz Natal!
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