O despertar das forças


Há dois anos foi lançado o filme Star Wars: O Despertar da Força (Star Wars: The Force Awakens, 2015) reiniciando a celebrada trilogia de filmes das décadas de 70 e 80 que teve uma continuação em 2000. Passado tanto tempo desde estes filmes e dois anos para eu assistir ao primeiro filme desta nova trilogia, uma pergunta óbvia já respondida por muitos vem logo à mente, por que esta série de filmes faz tanto sucesso? A qual se acrescentaria outra em particular ao Despertar da Força: por que mesmo repetindo praticamente o mesmo roteiro da primeira trilogia de modo resumido, ainda assim nos emocionamos com ele?

Muitas são as respostas para esta pergunta e talvez para começar a respondê-la é preciso entender o que faria de Star Wars um sucesso, mesmo tanto tempo depois, o que muitos diriam ser devido obviamente à mistura pop que ele tão bem conseguiu condensar misturando ciência, tecnologia, história, política, psicanálise, mitologia e, não por menos, filosofia. De fato, isto é a característica principal da série, mas é a coerência com a época em que a primeira trilogia foi lançada que chama a atenção, pois esta época é considerada por muitos como uma época pós-moderna em que as grandes narrativas deixaram de existir, como pressupôs Jean-François Lyotard, devido a todo um questionamento das estruturas discursivas a partir de Foucault, mas também de toda a desconstrução dos discursos, acrescentar-se-ia a partir de Jacques Derrida. O que isto coincide com todo a realidade da guerra fria e confusão entre fronteiras do bem e do mal em todas as partes do mundo em meio às forças opostas do capitalismo e comunismo e suas formas ditatoriais de poder a manipular uns e outros fazendo de ambas as partes uma resistência ao mal que cada um dos dois lados representava tendo no muro de Berlim numa Alemanha espoliada pela guerra o símbolo da divisão do mundo a partir da Europa em crise de identidade em relação a seu passado ocidental.

É muito comum pensar diante de tudo isto que filmes como Star Wars, cuja última classificação é de fantasia e ficção científica, leve a um escapismo de toda a realidade sombria que o mundo vivia à época e imaginar que ele dá vazão a todo um delírio de fugir do mundo para uma galáxia muito, muito distante. Contudo, desde o primeiro filme, não é isto que acontece, pelo contrário, é ao passado da guerra recente que ele remete elevando-a a um espaço e tempo distantes, mas muito próximos também na realidade. Isto porque a guerra ainda não tinha acabado e o fascismo alemão, italiano e japonês eram apenas a ponta do iceberg do mal estar na sociedade cuja boa parte ainda permanecia escondida à vista e as forças que lutaram contra ele escondiam senão sua própria maldade que, depois da guerra, fizeram-nas travar suas próprias batalhas por territórios no mundo todo aos quais o fascismo nunca imaginaria chegar.

Seria ingênuo pensar depois de tanto tempo e conhecendo a história bem melhor agora do que antes que o capitalismo e o comunismo eram forças do bem lutando contra as forças do mal fascista e eles próprios não tivessem em si a propensão para o mal, como demonstraram logo depois da guerra quase levando o mundo a uma hecatombe nuclear para demonstrar o seu poder. Se o fascismo era um inimigo comum tanto aos Estados Unidos quanto à União Soviética não era por aquele ser uma representação do mal na terra, mas por representar uma ameaça aos projetos tanto capitalista como comunista de dominar o mundo e por justamente ser uma mistura de ambos com o ideal político de partido do comunismo aliado ao ideal econômico estatal do capitalismo. E o fato da Alemanha fascista ter se tornado tão potente em pouco tempo, praticamente 20 anos, até a ascensão definitiva de Hitler ao poder e a deflagração da Segunda Guerra Mundial, aliada à Itália e Japão, demonstrava que o modelo político econômico fascista não era algo se pudesse subestimar e o mundo estava realmente em risco com sua expansão de poder.

Se tem algo, neste sentido, que a Segunda Guerra Mundial demonstrou a todos, principalmente após ter terminado é que a força dependendo de sua orientação pode tender tanto para o mal como para o bem e não importa quem seja aquele que a domine, capitalista ou comunista, muito menos os fascistas. É neste ponto que Star Wars adquire seu sucesso ao retomar uma dialética de forças na qual bem e mal não são dois lados em disputa simplesmente, mas duas forças presentes em cada um dos lados, mais ainda, em cada pessoa que está em cada um dos lados defendendo suas ideias e ideais. Pois se de fato há o lado do bem e do mal muito bem definidos em Star Wars, o lado da resistência que defende a República e aqueles que são contra ela, os defensores do Império, os jedi representam aqueles que estão tando do lado bem como do mal e são eles mesmos o bem e o mal encarnados, cada um equilibrando e desequilibrando a força conforme se posicionam para um ou outro lado dela.

Como cada força do bem e do mal atua de um lado e do outro da fronteira e como ela atua em cada um daqueles que estão de um lado ou outra fronteira é o grande problema ético que se coloca em Star Wars, a partir do qual cada um de nós deve assumir um lado, o da resistência da República ou das forças do Império. Mas não importa qual lado se escolhe na realidade, pois em ambos os casos, no capitalismo e comunismo, há sempre um mal a se manifestar em meio a todo o bem, assim como o lado mal da força pode se manifestar naqueles que estão aparentemente do lado do bem e a recíproca também sendo verdadeira. É toda esta tomada de posição quanto às forças do bem e do mal que vemos emergir na primeira trilogia de Star Wars, com cada personagem se revelando bem e mal a cada momento e a resistência da República em relação ao Império como uma resistência da própria força do bem em relação ao mal, nem sempre possível, mas no fim o bem vencendo como não poderia deixar de ser de modo ético.

Com o passado recente da guerra e a guerra fria em curso estender a guerra às estrelas foi uma forma de fugir da realidade, mas um prolongamento da realidade mesma de modo crítico com um questionamento dela na medida em que visto de qualquer lado ideológico na realidade, cada lado poderia se considerar resistindo ao império do outro, e não por acaso este período histórico foi caracterizado pelo imperialismo, pois se tratava justamente de adquirir cada vez mais territórios como no famoso jogo War. É uma crítica a todo este imperialismo que se pode, por sua vez, perceber na primeira trilogia quando há uma ênfase da questão imperial , principalmente no segundo filme nomeado O Império Contra-Ataca. Ao contrário do que se pensa, portanto, não é uma fuga da realidade que se propõe na primeira trilogia de filmes Star Wars, mas uma crítica ao imperialismo tanto capitalista quanto comunista, ainda que mitigada pelos efeitos especiais e por ser uma produção norte-americana, e se tender pensar o filme como uma propaganda anti-comunista. Seria preciso ser lançado o último filme da primeira trilogia para entender o alcance crítico dela, principalmente se pensarmos que O Retorno do Jedi foi lançado em 1983, um ano depois de Deleuze e Guattari terem lançado Mil Platôs (1982), o segundo tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, o qual permite entender como a resistência em defesa da República se coloca como uma máquina de guerra em relação ao aparelho de captura do Estado imperial, capitalista ou comunista.

O relançamento da franquia no final da década de 90 contando o início da história de Star Wars é paradoxalmente um abandono da história mesma que serve de fundo para a primeira trilogia e condiz com a época em que foi lançado no qual as forças do bem e do mal não disputam como antes, pois capitalismo e comunismo já não se opõem historicamente desde a derrocada do leste europeu e a desconstrução da União Soviética no início da década de 90. Talvez por isso, por mais que reatualizado os dois lados da força com toda a tecnologia da época, os filmes da trilogia não chegaram nem perto do que eram na primeira trilogia sem qualquer perspectiva histórica que as sustentasse. Contudo, ela não foi apenas uma forma de contar a história do início de Star Wars, em particular de Darth Vader, mas também indiretamente conseguiu retomar as forças do bem e do mal que a trilogia atual fez ressurgir com novas batalhas. E se o Jar Jar Binks levou à primeira Guerra nas Estrelas com sua decisão atrapalhada, ele não por menos fez ressurgir a Segunda Guerra nas Estrelas, que é a que assistimos em O Despertar da Força e podemos ver a continuação mais recentemente em Os últimos Jedi (Star Wars: The Last Jedi, 2017).

Se a segunda trilogia de Star Wars não demonstrou nenhuma força foi por não ter uma perspectiva histórica que a tornasse tão interessante quanto a primeira, o que é totalmente diferente do que se vê com O Despertar da Força que repete praticamente a primeira trilogia, mas num contexto totalmente diferente, inclusive histórico que dá a ele e a Os últimos Jedi uma perspectiva que retoma o clima dos primeiros filmes. Isto porque não por menos as forças antes adormecidas do bem e do mal readquiriram formas manifestas contra as quais uma nova resistência ressurge em defesa da República com o surgimento d'A Primeira Ordem ao mesmo tempo que na realidade minorias resistem ao avanço do poder fascista introjetado no capitalismo conservador atual contra todos os direitos das minorias, assim como foi o fascismo há décadas atrás. Neste sentido, se torna novamente importante relembrar a história do fascismo de uma outra perspectiva política e econômica que ele já demonstrou em sua época, mas somente agora podemos perceber com mais clareza, que não é a política do Estado em busca de territórios de outros Estados, mas a política de dizimação das minorias dentro do próprio Estado e que são as mesmas minorias combatidas nos Estados capitalistas conservadores atual, no caso, as minorias negras, sexuais e de gênero, além das minorias étnicas em relação à cada Estado capitalista.

Assistir ao filme O Despertar da Força depois de tanto tempo depois de lançado faz perceber como as forças realmente ressurgiram em toda sua oposição no último ano e ver a resistência contra A Primeira Ordem é retomar o ânimo para continuar enfrentando a batalha contra todos os Estados capitalistas conservadores presentes hoje em todas as partes do mundo que dizimam pessoas e direitos com um raio muito mais potente do que o da Estrela da Morte. Mais ainda, é retomar a necessidade de discernimento para descobrir quem está nos levando para o lado mal da força e não o lado do bem e quem anseia mais pela morte do que pela vida querendo destruir todas as nossas resistências. Se a história do filme e na realidade se repetem na recente trilogia de Star Wars é, porém, de um modo diferente, e, por mais que conheçamos o enredo, ele é muito mais complicado do que parece, mas algo podemos dizer com certeza, que o lado mal da força está no poder e nossa resistência cada vez mais se enfraquece.

Mas talvez Os últimos Jedi nos deem alguma esperança e no fim da trilogia tenhamos novamente perspectivas de uma nova República. Que a força esteja conosco para conseguirmos resistir até lá, pois há muitas guerras nas estrelas ainda a serem travadas.

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