Nós, Daniel Blake

dezembro 11, 2017

Difícil assistir ao filme Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake, 2016), de Ken Loach, sem pensar em nós como seres humanos e cidadãos em busca de direitos e impotentes em relação à negação deles por parte do Estado capitalista. Por mais que seja um filme cujo título deixa claro que é sobre um personagem, Daniel Blake, ao se antepor ao seu nome o pronome eu não é uma questão de identidade dele enquanto sujeito que se coloca, mas de todos nós enquanto sujeitos, ao dizermos Eu, Daniel Blake.

Assim é que ao ler o título deste filme nós nos transformamos em Daniel Blake imediatamente compartilhando todas as suas angústia como ser humano e cidadão em sua tentativa de obter um auxílio doença e seguro desemprego. Bem como compartilhamos de toda sua indignação com o modo como é tratado a cada vez pelos órgãos responsáveis que negam a si estes direitos, não diretamente, claro, mas através de vários meios burocráticos. E, sobretudo, com ele definhamos pouco a pouco em nossa existência impotentes a cada vez mais em nossa esperança de superarmos as dificuldades nos desfazendo do pouco que nos resta de uma vida digna, submetidos à toda a lógica do sistema capitalista que rege o Estado como sua natureza intrínseca.

É como uma multidão anônima e silenciada que nós nos transformamos em Daniel Blake que deixa de ser um nome próprio e se torna o signo comum de todos nós desprovidos de existência humana e mesmo social pelo sistema capitalista que rege o Estado, signo que é a indicação de mais um ser humano e cidadão desprovido de direitos básicos à sua subsistência como alimentação e moradia. Não por menos todo o filme se resume àquilo que é mais básico à existência material humana referente ao seu corpo, no caso, alimentar-se e proteger-se e é senão isto que é negado a Daniel Blake, mas também a Katie e muitos outros tão desesperados como eles por comida e abrigo numa fila de indigentes.

Talvez se pense que porque temos mais do que eles em termos de subsistência não padecemos como eles da mesma condição e podemos nos tranquilizar em relação à nossa vida e, assim, não nos identificarmos com ele. Contudo, as conquistas que temos na vida não elimina a ausência destes direitos básicos de subsistência negados pelo Estado no sistema capitalista, concedido apenas àqueles que se sujeitam às suas condições, e dos quais podemos precisar a qualquer momento em nossa vida. Trata-se, portanto, de um engano pensar que o fato de não precisar dos benefícios do Estado não se está sujeito ele em suas condições, pois, independente do que se tenha e na ausência do que se tem mesmo, a condição humana e cidadã de Daniel Blake é a nossa diante do Estado independente das circunstâncias. O fato de todos nós precisarmos conseguir dinheiro para nos alimentar e morar define nossa existência no Estado capitalista e o fato de alguns terem mais condições de subsistência do que outros não anula essa condição humana atual, sobretudo para aqueles que moram nas grandes cidades ou não tão grandes cidades em que a subsistência direta da natureza já não é mais possível e somente por meio do dinheiro se consegue subsistir, isto é, se alimentar e morar em algum lugar, inclusive depois de morto, caso se queira ter o direito de celebrar os ritos fúnebres e pós-morte diante de uma cova individualmente.

Não ser Daniel Blake não é, por sua vez, uma opção a todos nós. Mesmo que alguns tomem a decisão de se excluir de alguma forma da sociedade capitalista vivendo de forma grupal em algum lugar do mundo a exceção não anula a regra para todos aqueles que são obrigados a viverem do modo como se exige no Estado capitalista, sujeitos a todas as suas condições, em particular, a de ter que trabalhar e, na ausência de trabalho, a de perder toda sua dignidade humilhando-se para obter algum benefício social dos governos. Devemos ser Daniel Blake se quisermos sobreviver, não há opção. Devemos nos sujeitar a tudo e a todos para continuarmos subsistindo de algum modo mesmo que não seja digno, mesmo que seja vendendo tênis sem autorização, mesmo que seja roubando, mesmo que seja se prostituindo, pois o nosso corpo já não nos pertence mais e todo ele é trocado no capitalismo pela subsistência dele. Ou seja, para alimentar o nosso corpo temos que vendê-lo a quem queira pagar para usá-lo e deste modo manter o uso dele enquanto vive até que não precise mais dele.

É na prostituição que o capitalismo demonstra toda sua essência, quando transforma todo o corpo humano em sua propriedade privada, quando o indivíduo já não tem mais direito ao seu corpo senão por meio do capitalismo, pois sem o dinheiro para alimentá-lo o corpo deixa de existir, definha até a morte de fome. Vender-se é o princípio que rege o capitalismo não apenas no que diz respeito às coisas, mas principalmente em relação aos seres humanos. É preciso que nos vendamos, que nos destaquemos na multidão, diz o orientador de currículos a Daniel Blake e a todos nós e não temos direito a existir se não fizermos isto, se não trocarmos nosso corpo e tudo que diz respeito a ele por dinheiro, algum trocado para nos dar garantia que viveremos mais um pouco.

Não é fácil ser Daniel Blake, mas é inevitável ser ele nas condições de vida atuais, seja sujeitados pelo Estado capitalista, seja como seres humanos e cidadãos que não querem se sujeitar e protestam contra todo este Estado no mínimo que lhe resta de dignidade, vivendo a todo instante esta contradição inerente a existência de cada um de lutar contra o Estado capitalista e depender totalmente dele para continuar subsistindo.

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