Virando a página e reescrevendo a história


Virando a página nunca sabemos como continua a à história. Tudo que foi bom ou mal até virarmos a página já não importa, é indiferente. Não importa o quão bom tenha sido tentando acertar sempre, ao virar a página tudo pode mudar. Você pode acordar depois de uma noite maravilhosa com alguém e simplesmente perdê-la para sempre logo em seguida virando a página...

Talvez por isso se diga comumente que a vida é um livro aberto, a cada página sendo escrita, e que nunca chegaremos ao fim em sua leitura, pois quando chegar ao fim já não poderemos ler, estaremos mortos. É possível haver uma nova chance, mas não é possível fazer mais nada para mudar o que aconteceu. A última virada de página nos fecha a nós mesmos para sempre, é o fim da história sem que saibamos como ela chegou ao fim.

Livros abertos, escrevemos a todo instante nossa história e a lemos de trás pra frente olhando sempre para o passado tentando descobrir como vai ser no futuro, como a história vai continuar, o que acontecerá com seus personagens quando a página for virada mais uma vez. O passado nos dá uma certeza, mas é uma vã certeza de que a história vai continuar como pensamos, pois nada garante de fato que a história vai ser como pensamos. Erros podem não ser perdoados como queremos que seja, pois nem sempre as histórias de nossas vidas são como filmes, por mais que possam virar um. Por isso os livros são mais próximos da realidade do que os filmes sem seus finais felizes ou se podendo assistir repetidas e várias vezes. Podemos abrir um livro novamente como um filme, lendo-o de novo, mas as mesmas palavras podem nos reservar surpresas que as cenas dos filmes nunca nos trarão e a última virada de página de um livro nunca é o fim dele plenamente. Por isso também ele se mantém aberto como a vida que mesmo depois da morte ainda pode continuar em sua repetição de um modo diferente.

Por isso também é tão difícil conciliar filme e livro, transpor para uma cena aquilo que foi pensado escrito pelo autor, fazer de toda uma grande história um breve roteiro. Nossa vida não se resume a um filme, por mais que se diga que no fim dela passa um filme na cabeça com as lembranças de um tempo vivido. A vida é um livro que não se resume a única interpretação, pois tem muitas interpretações possíveis, muitas páginas em branco em meio às escritas e nunca sabemos o quanto da história é lida e o quanto é apenas imaginada por nós nas margens em branco e a cada virada de página. Podemos assistir a um filme e decorar suas falas como um bom ator de comédia, drama ou tragédia, mas nunca podemos decorar um livro inteiro, a não ser o personagem em um dos contos fantásticos de Borges, que nunca esquece nada que vê e vive na escuridão por causa disso, e que não lembro o nome. Talvez inclua o nome dele quando revisar o texto, ou não para dar mais estilo ao que estou dizendo e fazer disso o mote para o que vou dizer a seguir, que também por isso o livro como a vida se mantém aberto, mesmo quando se termina, pois cada parte dela e dele escrita pode melhorar, mesmo que o fim da história seja o mesmo para todos e não possamos escapar dele.

Por ser um livro aberto não se pode ensinar a viver, dizendo como se deve viver a vida, assim como não se pode ensinar a escrever como diz Keith Michaels (Hugh Grant), um roteirista de Hollywood que se torna professor depois de não conseguir trabalho, já que seus filmes se tornaram um fracasso, e ele por seguinte, depois do único filme que fez sucesso, pelo qual foi premiado e nunca mais esquecido. Fracassar, ademais, é o único motivo pelo qual ele pensa que alguém se torna professor de algo, por ser incapaz de fazer aquilo sobre o que fala, e ele mesmo se torna a prova disso para sua tristeza, pelo menos até começar a ensinar no filme Virando a página (The Rewrite, 2014, dirigido por Marc Lawrence (II)), cujo título em português em relação ao título em inglês é como um roteiro em relação a um livro. Isto porque traduzindo o título em inglês literalmente, ele seria A reescrita, um título não muito bom talvez, pois não resume bem a história, mesmo que ele seja mesmo um resumo da história reescrita de um modo diferente e isso ser o que o título em inglês quer dizer, assim como a história do filme também, e não uma virada de página apenas. E talvez eu devesse reescrever toda esta história que estou escrevendo a partir deste filme já que não conhecida o título em inglês… Mas não é preciso, pois quando viramos a página a história se reescreve assim como quando continuamos a viver e tudo que aconteceu antes se torna apenas uma lembrança, um sonho sonhado como diz Manuel Bandeira no poema Sonho, do qual despertamos e chorando de repente por ter acabado e ver que a realidade é bem diferente da ficção dia filmes, mas não dos livros, mesmo que os filmes se aproximem absurdamente da nossa realidade em alguns momentos nos fazendo chorar por sermos despertado de nossos sonhos.

Não se pode ensinar a escrever, diz o roteirista Keith Michaels, pois não se pode ensinar a ter talento, não se pode dizer o que demonstrará um talento. Quando escolheu seus estudantes para a aula de roteiro na Universidade foi senão pensando nisso, pois escolheu em sua maioria mulheres pela bela aparência que tinham pra si e alguns homens para não parecer machista, como de fato era, obviamente. Talvez por isso ele também se tornou um roteirista fracassado e fracassa também como professor acusado de se relacionar com uma de suas estudante, além de ter assediado uma das professoras logo no primeiro dia, não por menos uma representante do Conselho de Ética da Universidade e ter criticado o empoderamento feminino e Jane Austen como representante dele.

Nem talentoso, nem desejando ser professor, nem moralmente bom para ser um professor, sobretudo, pensando que não se pode ensinar a escrever, o que Keith Michaels teria então para ensinar para estudantes em sua maioria mulheres que querem aprender como escrever um bom roteiro? Está aí um bom roteiro para um filme, um roteirista machista fracassado que se torna professor de roteiros sem querer, sem nunca ter desejado ser professor e que não por menos aprende a gostar de ensinar e a ensinar a escrever mesmo que pense que não se pode ensinar isso. Um bom roteiro para nos mostrar como filmes simples podem ser bastante complexos como a vida dependendo do ponto de vista e podem se tornar um livro ou como aquilo que é bastante complexo em nossa vida como um livro pode se tornar simples num filme.

Mais ainda, como virando a página da história a vida continua seu rumo, mesmo que já não saibamos qual seu rumo, em que sentido ela vai com todas as mudanças de personagens, de enredos e de roteiros possíveis ainda para serem escritos nela, nos livros e nos filmes. Mas uma coisa é certa, como aprendeu o irmão do maestro Rodrigo de Souza (Gael García Bernal) em Mozart in the jungle (2014): “Todos os mistérios da vida podem ser encontrados nas ruas, nos livros e nos filmes.” E eu concordo absolutamente com isso, mas acrescentando a filosofia que ajuda a compreender a vida em sua virada de página e reescrita da história quando tudo que foi escrito deixa de fazer sentido e o que advém já se sabe o que é, e se chore como no poema de Manuel Bandeira, por tudo ter sido apenas um sonho.

Sonho

Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado.
Em sonho lembrei-me
De um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o que?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.

(Manuel Bandeira)

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