O ano da desconstrução
Comemorar aniversário é um momento de felicidade, ao mesmo tempo alegre e triste. Alegre por comemorarmos mais um ano de vida, por estarmos junto de pessoas que amamos, por lembrarmos de todas as alegrias vividas no ano e em muitos outros, alegrarmo-nos por nossa vida na terra. Mas é também um momento triste por mais um ano de vida significar menos um de vida nesta terra, principalmente quando ficamos bem mais velho e somam-se muito mais lembranças tristes do que alegres, que não conseguimos esquecer facilmente, mas também por termos mais tantos amigos pra comemorar junto, e nem mesmo comemoramos aniversários, pois a vida já se aproxima do fim. O que, neste sentido, comemorar mais uma aniversário é comemorar a vida e a morte ao mesmo tempo num breve instante do tempo em sua eterna instância.
Desde o ano passado, o ano de 2017 foi considerado por mim o ano da desconstrução por um motivo filosófico particular. Em 1968, o filósofo franco-argelino Jacques Derrida, o filósofo que mais admiro e leio com mais prazer, cuja vida transborda em cada texto seu, e que fez da sua filosofia uma autobiografia filosófica como animal que logo é, como faço a minha não por menos, há 50 anos, ele publicou suas três obras máximas: A escritura e a diferença, A voz e o fenômeno e Gramatologia. Com exceção de A voz e o fenômeno, boa parte dos textos das outras obras já tinham sido publicados em revistas e talvez por isso ele tenha justamente no livro A voz e o fenômeno seu maior apreço em relação a estas três obras. E é preciso ler bastante tudo que escreveu para entender como de fato esta obra resume toda a intencionalidade de sua filosofia a partir de Husserl, filósofo a partir do qual escreve este texto, e perceber como aquilo que é chamado por fenômeno em relação à voz é a vida da qual sempre estamos falando, a nossa e a dos outros, outros que Husserl chamava de mundo ou mundos, pois cada pessoa é um mundo próprio, é um mundo que conhecemos a cada encontro, em cada encontro com uma pessoa encontrando nós um mundo novo.
Foi ao publicar estas três obras que, em sua última, A gramatologia, Derrida definiu clara e obscuramente o que ele denominou de desconstrução, um quase conceito e ao mesmo tempo um quase método que define sua filosofia teórica e praticamente a partir, respectivamente da leitura e da escritura. Uma filosofia que é ao mesmo tempo racional e emotiva em cada texto seu podendo-se perceber todo o cuidado com o sentido do que diz e o sentimento em como diz tudo que pensa em relação a todos os filósofos que estuda. Um cuidado que advém da sua relação permanente com o outro a partir da escritura que é para si aquilo que senão descreve o fenômeno da vida na fala propriamente dita. Pois a escritura fala teoricamente e como a escritura fala na prática sempre foi o questionamento da sua filosofia querendo saber a partir dos textos filosóficos como se fala de tudo e, em particular, da própria escritura denegrida pela fala à qual é dada mais importância do que à escritura desde os gregos com seu logos.
Ao pensar neste ano como sendo o ano da desconstrução tinha em mente então toda sua vida filosófica com a qual busco aprender cada vez mais sobre a vida que ele soube tão bem falar e escrever em suas escrituras, em sua desconstrução. Um termo cujo alcance não se pode entender absolutamente senão a partir de diversas metonímias, tomando partes dele como um todo, e que, já fazendo isto, podemos dizer que a desconstrução quer dizer senão a própria vida em desconstrução. Uma vida construída em cada momento em que se desconstrói num fogo heraclitiano a partir do qual nós, humanos, vivemos e padecemos ao mesmo tempo, pois não é mais o fogo divino, puro, eterno, roubado por Prometeu do monte Olimpo para dar a vida aos humanos.
A filosofia da desconstrução de Derrida é, deste modo, a filosofia da desconstrução da própria vida, do modo como lemos nossa vida e como a descrevemos, bem como que lemos e descrevemos a vida do outro, como falamos de nós e falamos dele, portanto, a partir do que lemos e descrevemos. Outro que é também nós mesmos a cada momento da vida em nosso devir novamente heraclitiano que quer dizer a mudança de tudo na natureza, da vida em morte, do ser em não-ser, do um em outro. Uma mudança nem sempre fácil, pois muitas vezes nos recusamos a mudar, não gostamos de mudanças, logo, não gostamos de comemorar aniversários porque manifestam a mudança e não queremos a mudança porque ela nos deixa tristes, por não sermos mais quem somos, por não sabermos mais quem somos em meio a todas as mudanças. Parmênides, opositor ferrêneo de Heráclito, vai ser não por menos o representante de todos aqueles que não querem mudar, não querem a mudança, ao dizer que o ser simplesmente é e, deste modo, nunca muda, nunca devem não-ser como pensava Heráclito e que, por isto, não existe devir que é apenas uma ilusão sensível, um engano da nossa mente que deve ser voltada sempre para o presente do ser e nunca para o passado ou futuro dele nos quais já não somos, nem sabemos se seremos, pois o ser é, aqui e agora no presente e é isso o que importa.
Bem, não faz muito sentido neste caso comemorar aniversário se pensarmos em Parmênides já que comemorar quer dizer estabelecer uma relação com o ser que fomos com a memória de momentos passados da nossa vida e pensar não por menos no nosso futuro, o sentido da nossa vida no tempo em sua instância a partir do passado que a memória nos faz enxergar. Em outras palavras, se comemoramos aniversários é por causa de Heráclito e toda uma cultura humana que aprendeu a perceber a mudança na natureza (physis) e ao perceber esta mudança não por menos começou a comemorá-la, pois após cada primavera advinha o verão, o outono, o inverno e outra primavera, que é como se chama comumente o aniversário como uma nova vida na natureza. Em cada aniversário comemoramos, neste caso, uma vida natural que se renova, mas também uma vida cultural adquirida há anos com outras pessoas que já não podemos esquecer como quis Parmênides e muitos outros querem esquecer numa vida louca para o qual ele talvez fosse um grande exemplo, mesmo que não quisesse pensar assim, pois ser não é simplesmente viver o presente como pensamos hoje a partir de toda uma frivolidade. Ser é simplesmente ser em sua vida e nunca perecer a ela entregando-se à morte e a tudo que nos leve a ela, o contrário, portanto, de uma vida louca que talvez muitos imaginam.
Ao comemorar um aniversário é todo o devir da vida natural e cultural que comemoramos, toda sua mudança que é entendida por Heráclito como luta dos contrários, pois, lembremos, não gostamos muitas vezes de mudar, de sermos outros, e por isso há esta luta entre o ser que somos e o não-ser que não seremos mais. Temos medo da mudança e ao temer a mudança, temos medo do outro em relação a nós, outro que seremos e outros que não somos e que mudam a nossa vida. Queremos sempre ser quem somos e nunca deixar que ninguém mude quem somos e recusamos a mudança por sabermos que ela quer dizer uma mudança do nosso ser a qual recusamos parmedianamente. Somos no nosso ser, portanto, contrário ao não-ser, contrário ao que seremos no futuro e contrário a sermos algo agora no passado, algo morto e enterrado, por assim dizer, pois é como uma morte senão que encaramos a mudança na medida em que a morte é na natureza o que torna possível a mudança mesma, o que há de vir, que é o advém de tudo que há de vir.
Tememos a nossa morte, tememos a morte dos outros, tememos a morte ela mesma. Não queremos morrer, não queremos que os outros morram, não queremos a morte ela mesma, queremos a vida eterna do ser como quis Parmênides e como muitos querem nas diversas religiões. Mas não somos seres divinos, não temos o fogo divino do monte Olimpo que queima incessantemente sem nunca fazer padecer o que queima, não somos Prometeu que, preso por ter roubado o fogo sagrado, tinha seu fígado comido por uma água todos os dias e ainda assim permanecia vivo divino que era em seu ser. Pensar no passado e no futuro como mudança do presente é pensar, portanto, no oposto à vida presente, pensar na morte como ausência dela e vivemos esse conflito na nossa existência a todo instante na instância do tempo, esta luta entre os contrários da vida e da morte que Heráclito chamou de devir.
Pensando melhor, talvez se pense que não dá para comemorar também aniversários com Heráclito, pois quem é que quer pensar na morte no dia em que se comemora a vida? Não combina muito com as festas grandiosas que muitos pensam e fazem quando comemoram aniversário, principalmente em se tratando das mulheres quando a data em particular de 15 anos define claramente a passagem delas de menina para mulheres, para uma vida adulta, mesmo que na prática não seja deste modo, e há muita oscilação entre ser menina e ser mulher neste caso. E que isto seja uma tradição na qual a elas é dado o direito de casarem, porém, contanto que seja com aquela pessoa que a família tradicionalmente quer e não ela mesma, impedindo qualquer mudança, portanto, sua na tradição.
Se a partir de Heráclito podemos pensar em toda a mudança e pensarmos em comemorar aniversários, talvez seja melhor para o dia da festa, neste caso, pensar em Parmênides e toda a vida louca pressuposta a partir do ser no presente, no que o ser é. Assim, podemos encontrar uma harmonia entre estes grandes filósofos gregos em toda sua oposição filosófica quanto a comemorar o aniversário, ou não, já que ao fazermos isto, novamente pensamos em Heráclito em sua harmonia dos contrários, a qual ele percebe na natureza no que diz respeito ao devir que já não existe tanto entre os humanos, como entre ele e Parmênides, e que leva quase sempre a uma morte prematura, não natural. Motivo pelo qual é preciso pensarmos bem antes no que os filósofos dizem e como eles dizem como faz Derrida em sua desconstrução, nas palavras que utilizam para explicar o que querem dizer, nos seus conceitos, pois pensar o devir na natureza e o devir no ser humano não é tão simples assim. Admitimos a mudança na natureza como um devir inevitável que faz com que esperemos que ela mude determinadas vezes, mas não admitimos entre nós, seres humanos, em nossa cultura que haja geralmente mudança, que haja devir, pois queremos sempre tudo do mesmo modo sempre, permanente, queremos uma arkhé, um princípio fundamental para tudo e que não mude como tudo muda natureza. Queremos até mesmo por meio de uma arkhé pensar que a natureza não muda, que está numa perfeita ordem, a que preestabelecemos em nosso pensamento não querendo que ela mude, apesar dela mudar constantemente para além do que pensamos como princípio e nós mudamos com ela a todo instante na instância do tempo.
É preciso, neste sentido, pensarmos culturalmente nesta mudança, ter uma harmonia com ela, com o que há de vir, com ser outro, com o outro que produz mudanças em nós, em nosso corpo e em nosso pensamento. É preciso um olhar harmônico para o outro que seremos com a mudança e para os outros que produzem mudanças na nossa vida, que mudam nossa vida para sempre com a sua presença e nunca mais esquecemos e queremos ter sempre junto por toda a vida, a cada aniversário. É esta harmonia entre a vida e a morte na mudança que comemoramos em nosso aniversário, é o devir de Heráclito pensado não comumente como uma luta, um conflito que leva a inúmeras crises em nossa existência, mas o devir como um deixar vir o ser em sua outra idade do tempo, deixar vir o ser na outridade do tempo em sua instância, deixar vir a mudança, sem medo, sem temor, sem temer a morte, sem temer não ser mais o que era e o que será. Deixar partir o ser uno que queremos ser sempre para ser outro, ser dois, ser muitos, uma multiplicidade de seres durante a vida, partilhando o ser com todos os que estão presentes e que estão ausentes na nossa comemoração, na memória desde o nosso nascimento.
Desde o nascimento estamos partindo, o nascimento é nossa partida, é o nosso a-partamento com a realidade, nossa separação e ligação ao mesmo tempo com ela, nosso partilhamento da vida separados e ligados a ela ao mesmo tempo, vivendo a partir do nascimento e morrendo a partir dele ao mesmo tempo na realidade. Quando nascemos, nosso destino de vida e morte já está traçado pela natureza em seu destino e são os acasos deste destino que comemoramos a cada aniversário como um encontro com a vida e a morte que o aniversário representa ao lembrarmos nosso nascimento, nossa partida para realidade de vida e morte em que vivemos. Ao lembrar de nosso nascimento lembramos senão de onde partimos num lugar e tempo, das pessoas das quais partimos, os nossos pais, e do prazer do gozo amoroso deles que definiu a nossa existência. O prazer do gozo amoroso que é quando todas as diferenças e oposições entre pessoas são deixadas de lado e o prazer de um encontro natural e extremamente íntimo de um-ser-com-outro quando se amam faz a vida existir e toda a realidade existir para o filho que nasce a partir deste encontro.
É, enfim, este prazer do gozo que advém de um momento de amor que nos faz existir, é ele o sentido de todo o a-partamento da nossa vida, é ele o que nos faz viver e comemorar a cada ano nosso aniversário, o prazer de viver independente da morte que há de vir, independente da mudança, posto que as mudanças também elas são sentidas com prazer, com um deixar ser outro, deixar há de vir o outro em nossa existência, pois o outro é o que nos dá o prazer de existir desde o nosso nascimento e quando o encontramos e o amamos e mudamos com ele e toda mudança que ele produz em nossa vida nos faz senão feliz. Feliz por termos o outro, por sermos outros em nossa vida a partir dele e por sentirmos nele a mesma felicidade que temos por ele ao ouvirmos ele dizer Feliz Aniversário!
A vida dada em amor é o melhor presente que alguém pode nos dar. A vida que as pessoas nos dão quando nos dizem Feliz Aniversário! quando nos damos em amor no prazer do gozo de estarmos juntos. É assim que comemoramos nosso aniversário, gozando juntos o prazer de amar a vida do outro, partilhando com ele seu nascimento e morrimento na breve instância do tempo em que faz aniversário.
Nenhum comentário: