O recanto da utopia


O homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle, 2015), série baseada no romance de ficção científica de Philip K. Dick publicado em 1962, é a distopia mais diferente já pensada pela ficção científica, pois não há nela uma realidade futurista na qual seres humanos são submetidos às máquinas ou às tecnologias, tão pouco são submetidos a um regime de governo alienados totalmente da realidade como foi imortalizado por Orwell em 1984 (1949), mas uma realidade cuja existência, sabemos hoje, é muito mais possível do que ele pensava em sua época ao se perguntar: e se os nazistas com os japoneses tivessem vencido a guerra, como seria a vida nos Estados Unidos?

Pensar uma realidade diferente da que se vive é algo que os seres humanos sempre buscam e a literatura de ficção científica atual é apenas parte desta busca que começou com a hierofania do mundo, quando os seres humanos viam na natureza a presença do sagrado em algo, por exemplo numa pedra cuja forma demonstrava a presença de algo que estava além da realidade que conseguiam enxergar. Os rituais mágicos aumentaram a presença deste sagrado na vida dos seres humanos e os mitos deram a ele a forma que posteriormente a religião imortalizaria a partir da qual o mundo todo é pensado a partir de uma única origem divina e história desta origem é narrada em suas formas utópicas e distópicas. Isto pode ser percebido em particular em Hesíodo, poeta da Grécia Antiga, com sua Teogonia utopicamente e seu Os Trabalhos e os dias de modo distópico anunciando pela primeira vez um mundo por vir no qual o mal predomina numa Idade de Ferro e ao ser humano resta senão os trabalhos e os dias de modo ininterrupto desprovidos da Idade de ouro que tiveram um dia ao lado dos deuses e sem alcançarem a Ilha dos bem-aventurados como heróis. O que isto no judaísmo-cristão se narraria a partir do Gênesis de uma vida no paraíso e a expulsão dela depois do pecado original no qual os seres humanos também são condenados a trabalharem e sofrerem tal pena todos os dias sentindo-se culpado por terem pelo mal radical que cometeram, o de se submeterem ao mal mesmo em princípio e se afastado, portanto, do deus cristão.

Talvez pareça absurdo remontar a toda esta religiosidade para falar da distopia de O homem do Castelo Alto, afinal, toda ela se mantém a partir de uma realidade muito humana e que se destoa da realidade atual como deve ser toda ficção científica é apenas na aparência, mas não na essência, para falar como Platão, que foi o primeiro filósofo a questionar a realidade dos poetas religiosos e denunciar em seus mitos as aparências de uma realidade às quais ele opôs as essências filosóficas, e que é o que em todas as ficções científicas se faz, tentando nos aproximar da realidade em sua essência e não nas suas aparências muitas vezes tão belas. Contudo, isto não é tão absurdo na medida em que Hesíodo é o primeiro a criar uma utopia e distopia que não é propriamente mítica ou religiosa, mas literária e é contra ela que Platão se coloca não por menos literariamente na forma de diálogo com A República, primeira utopia filosófica cujo objetivo principal é senão distópico, isto é, mostrar como por trás das aparências do mito religioso há uma verdade que somente o filósofo ou aquele que alcança um conhecimento filosófico pode ver e falar, o grau mais alto do conhecimento, acima da arte, da religião, da ciência, do sofisma dialético, no qual o filósofo não por menos é reio homem no Castelo Alto em sua época, assim como Zeus era o rei para Hesíodo e para os demais poetas. Assim toda a ficção científica distópica atual, não por menos a do homem no Castelo Alto se deve a Hesíodo e não por menos à Ideia que Platão lança em sua república, uma ideia eterna, imortal, perene, imortalizada em sua clássica imagem da caverna da qual o homem se liberta e ascende a uma realidade utópica fora dela, quando vê a natureza tão bela iluminada pelo sol como nunca vira antes em todos os seus detalhes, mas também vê a realidade de modo distópico quando volta para a caverna para libertar seus amigos e nenhum acredita nele, considerando-o louco até o matar por defender sua ideia de um mundo diferente e melhor do que se via e vivia.

Se Platão expulsou os poetas da república pensada por si a partir de uma ideia da realidade, não por menos, em seguida, seria a sua própria ideia a ser expulsa da realidade considerada não por menos utópica, isto é, sem conseguir se realizar em lugar algum na realidade, e o primeiro a fazer isto foi Aristóteles, a imperar no Ocidente depois de si como o verdadeiro rei filósofo que Platão nunca quis ser, mas tentou ao tornar o rei de Siracusa em filósofo sem sucesso. O que faltava à ideia platônica era, para Aristóteles, uma substância, pois a realidade não poderia ser apenas um pensamento na mente do filósofo ao qual ele somente poderia alcançar depois da morte com a separação entre a alma e o corpo pretendida por Platão como ideal ético do ser humano voltado para o bem para se alcançar uma vida eterna ao lado dos deuses. Não era o bem depois da morte que Aristóteles buscava, mas o bem na terra, tal como vão buscar muitos outros na modernidade a partir da ciência e da tecnologia até então.

Vista como fora da realidade, a ideia platônica se tornou, portanto, um ficção, mais propriamente um romance, o idílio de um lugar no qual ela pudesse se realizar, mas que não era nenhum lugar na realidade cuja expressão mais famosa disso é o livro Utopia de Thomas Morus, bem como outros livros de tantas outras viagens de navegação em busca de um novo mundo como Platão fizera à Siracusa em busca de realizar sua ideia de um mundo melhor. Porém, a ideia platônica não foi relegada totalmente à ficção já que o novo mundo de um idílio constante do ser humano como se estivesse no paraíso se tornou real com a descoberta das terras ameríndias e a instituição de contratos sociais no velho mundo ocidental que decaía com as mudanças históricas defendidas por ideias totalmente diferentes da realidade na qual os europeus viviam. Em particular, ideias de um mundo novo a partir de máquinas cada vez mais tecnológicas e de uma ciência que tornava possível cada vez mais máquinas e mudanças na sociedade politicamente. A utopia de um mundo novo se tornava agora totalmente possível ao homem, mas não era o seu retorno ao paraíso que a ensejava, tão pouco a uma Idade de Ouro divina em contato com os deuses, mas um mundo no qual o homem é o próprio deus no Castelo Alto a buscar escapar da morte que se sempre se prenuncia em seu destino mortal.

Se é a partir do desenvolvimento da ciência e da tecnologia que se desenvolvem os principais romances de ficção científica modernos em suas utopias e distopias, não são, porém, a ciência e a tecnologia o grande mal a ser evitado nestes romances, mas o ser humano, bem como é o ser humano a possibilidade de todo o bem na medida em que acredita numa ideia, uma única ideia a partir da qual ele pense que é possível mudar a realidade em que vive. É à história humana a partir de suas ideias que toda ficção científica utópica e distópica remonta numa tentativa constante de mostrar como no futuro o ser humano pode ser e não por menos mostrando a necessidade de se pensar nas ações do presente para que a história real não seja tal como a história que a ficção científica mostra. Em outras palavras, que se o destino enquanto história é determinado de algum modo no futuro, este destino é fluido, pois ele está nas mãos humanas como diz Nobosuke Tagomi, um dos personagens de O homem do Castelo Alto no primeiro episódio da série.

Neste sentido, a ideia de se determinar que a história humana seja determinada por alguém ou algum grupo de pessoas de um modo ou de outro como um destino Ã© o grande problema das utopias e das distopias na realidade moderna ao qual as ficções científicas remontam em todas as suas possibilidades mostrando soluções possíveis e o motivo pelo qual o romance de Dick e a série baseada nele atualmente são tão extraordinários, pois é a história humana que está colocada em questão mais propriamente e não os produtos científicos e tecnológicos desta história que Isaac Asimov explora tão bem seus livros. Pensar em como seria se os nazistas e japoneses tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial é pensar não por menos como seria a história humana se o destino fluísse em outra direção. É pensar em como a cada momento nossa vida está regida por algo incompreensível para nós e do qual tentamos muitas vezes fugir como Édipos, mas que sempre aparece em nossa frente sem que esperemos ou mesmo desejamos ao contrário do que se pensa inconscientemente a partir de Freud, pois a busca da verdade da vida, isto é, de uma realidade diferente da que vivemos se não é algo consciente para nós é não é porque algo se manifesta em nós de modo inconsciente, mas porque como diz novamente Tagomi a seu funcionário a partir dos ensinamentos do oráculo chinês I Ching a resposta para nossas decisões nem sempre está em nossas mãos, pois:
O único modo de ver a verdade da vida, Kotomichi, é ficar à parte dela para ver a consequência de cada pensamento, cada ação. Mas ainda estamos presos no tempo e no espaço, incapazes de dirigir nosso destino.
Eis que se o destino está em nossas mãos de modo fluido, como disse Tagomi no início da série não é, portanto, porque nós somos capazes de mudá-lo constantemente tal como queremos, mas porque simplesmente ele nos escapa das mãos constantemente em sua fluidez sem que possamos modificar nossos pensamentos, nossas ações, presos ao nosso espaço e tempo. Por sermos incapazes de mudar a realidade da nossa vida ao ficar à parte dela, incapazes de imaginar uma realidade diferente quando tudo é uma distopia sem perceber que a distopia é o recanto da utopia, de uma ideia da realidade que não se encastela no alto de um poder humano sobre todos na terra com sua ciência e tecnologia, mas dentro da terra, numa caverna, de onde ressoam em eco todas as utopias de um mundo mais belo, justo e verdadeiro como pensava Platão. Pois é, preso na caverna que o ser humano pensa em sua liberdade, em se ver livre da realidade opressora em que vive seja ela qual for em seu cotidiano na busca de uma vida melhor para si, mas que muitas vezes não consegue por ninguém acreditar em suas ideias que nunca morrem com ele, pois a liberdade é o maior bem que todo ser humano busca em sua vida sem a qual ele nunca é feliz na terra.

Acreditar na liberdade é o que toda utopia nos faz crer e toda distopia nos ajuda a manter mesmo quando tudo parece perdido e o que nos resta é sobreviver à espera de viver livre novamente como antes junto de quem amamos, pois não há liberdade sem amor. É o amor à vida e aos outros que nos liberta de todo o mal e nos faz pensar em todo o bem que a liberdade possibilita, amor que não é por si mesmo em sua liberdade de amar egoistamente algo ou alguém, mas por amar a todos e todos libertando, pois Ã© preciso libertarmos o outro primeiramente de nós mesmos para sermos livres verdadeiramente longe do Castelo Alto em que um ou outro não importa quem seja, reina soberanamente, de modo egoísta.

Até que ponto nos colocamos como o homem no Castelo Alto ou como o homem das cavernas que vive almejando a liberdade a todo momento em suas vidas de modo utópico em toda a distopia, eis a questão histórica que esta série nos coloca e cada um tem que tomar a decisão de acreditar que a realidade pode ser diferente do que se apresenta como um filme a revelar um destino que não queremos para nós, o de estarmos preso totalmente à realidade que ele apresenta, pois queremos sempre estar livre de toda e qualquer realidade que nos oprime ao determinar o que seremos no fim da história.

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