O dilema de Eleanor no Bom Lugar


O que fazer depois da morte? A pergunta é insólita e já produziu muitas divagações nas pessoas, algumas boas, outras ruins, depende, obviamente, da vida que cada pessoa leva e vê na morte a possibilidade de outra vida. Porém, de todas as divagações míticas, religiosas, literárias e mesmo filosóficas como a de Platão no Fédon, a da série O Bom Lugar (The Good Place, 2016), de Michael Schur, na Netflix, é talvez a mais ironicamente intrigante, pois consegue colocar em questão todas estas divagações com uma leveza e peso indiscutíveis, podendo-se rir e chorar ao mesmo tempo, dependendo da sensibilidade de cada um, riso e choro que é, para mim, o sinônimo de felicidade.

O primeiro episódio é já uma boa dose de ironia com um enredo que faz dela de longe a série mais filosófica e ética de todas até o momento depois da série catalã Merlí, com a mesma sutileza de problemas e abordagens filosóficas éticas em cada episódio. Contudo, melhor do que Merlí no aspecto de colocações de problemas filosóficos éticos de modo cotidiano em situações nas quais pensar faz literalmente toda a diferença e é a grande questão que esta série nos coloca. Pensar em todas as ações que fizemos em vida, mas também em todas as ações que faremos depois de mortos, pois a vida continua depois da morte num bom lugar que faz senão pensar em todas as ações de nossas vidas antes de morrer.

Com um enredo que flui de um episódio a outro por meio de crises existenciais constantes resolvidas de modo comediante, Um bom lugar Ã© a série que melhor define como nos colocamos diante de nossos problemas, como enfrentamos eles e, principalmente, como enfrentamos eles filosoficamente, pois a filosofia está presente em cada momento desta série de modo teórico e prático. Teórico porque a personagem Eleanor Shellstrop (Kristen Bell) literalmente não é alguém que deveria estar no Bom lugar, a representação para o Céu, e ela sabe disso, pois sabe que foi uma pessoa má durante sua vida toda, muito má como podemos ver ao longo da primeira temporada de 13 episódios, todos com 25 minutos em média e dá para assistir num dia para quem gosta de maratonar. Foi uma pessoa má, ademais, que não deixa de ser má depois que vai para o bom lugar ao qual sabe que não pertence, mas faz tudo para esconder isso e desfrutar nele a vida eterna. E é neste ponto que a teoria filosófica aparece literalmente porque, para poder desfrutar esta vida eterna, ela deve se tornar boa e para que isto aconteça, ela tem que compreender teoricamente o que é isto para agir de modo bom como as pessoas que estão no bom lugar e que são todas, obviamente boas senão não estariam ali logicamente. É quando entra em cena sua "alma gêmea", o professor universitário senegalês de Ética e Filosofia Moral, Chidi Anagonye (William Jackson Harper) que ao saber de sua situação inusitada coloca-se diante do primeiro de muitos dilemas éticos que vai ter que decidir ao longo da série como resultados do primeiro que é ajudar ou não ajudar Eleanor a ficar no bom lugar mesmo sabendo que ela é má e que não pertence a ele?

Obviamente que ele decide que sim, mesmo não querendo, afinal, é uma pessoa boa por estar ali. Mas aquilo que seria sua boa ação no paraíso é apenas o princípio como sempre de um fio da meada de problemas que se desfaz de episódio a episódio que são gerados a cada vez e têm sempre que serem resolvidos de modo filosófico ético, com uma boa ação que, depois de realizada não faz tudo ficar bem, como acontece na vida afinal, mas leva a consequências que não se pode imaginar que aconteceriam e novos problemas na realidade. Isto porque tudo se mantém com base numa mentira que para se manter como verdade precisa lógica e paradoxalmente de outra mentira e, de mentira em mentira, a verdade vai se mantendo o quanto pode em relação a Eleanor até que tudo se torne uma grande confusão de dilemas éticos que precisam de um pensamento filosófico cada vez mais apurado e preciso para solucionar os problemas de uma vez por todas.

É impressionante como esta série de modo simples, coloca questões extremamente humanas levantando problemas que desenterram as principais questões filosóficas éticas para resolvê-los, por exemplo, primeiro problema ético: como julgar quem deve ir para o bom lugar e quem deve ir para mau lugar? A partir de qual filosofia ética poderíamos decidir isto? De todas as filosofias éticas, uma então sobressai como solução para este problema já nos primeiros momentos do primeiro episódio que é a filosofia ética aplicada do utilitarismo de Bentham e Stuart Mil, ou seja, a teoria do cálculo hedonista ou da máxima felicidade a partir das dores e prazeres produzidos durante a vida que, no caso da série, é calculado por um sistema de controle onisciente para cada ação realizada pelos seres humanos com um pontuação positiva para cada ação que gera prazer em si e nos outros, isto é, um bem Ãºtil, e negativa quando isto não acontece, gerando um mal útil. O resultado é senão uma competição para quem faz mais pontos eticamente e assim consegue um bom lugar na vida eterna e é toda a tradição mítica, religiosa e filosófica que se vê então utilizada quanto às ações virtuosas que se deve fazer para obter a felicidade ou o sumo bem do bom lugar, para definir quem deve ir para ele a partir do cálculo hedonista de Bentham e dos utilitaristas éticos para alcançar a máxima felicidade, no caso, o bom lugar.

A racionalidade, porém, de toda esta pontuação definida pelos arquitetos do bom lugar é questionada desde o primeiro momento pela presença de Eleanor e pelas ações de Chidi em querer ajudá-la demonstrando que o cálculo hedonista foi senão falho e esta falha se amplia a cada episódio como um grande sumidouro, a metáfora desta série em todas as questões éticas que ela levanta numa vida após a morte. Dentre estas questões, depois do problema encontrado na ética utilitarista, o problema ético é o de que se deve fazer no paraíso quando não se pertence a ele e todos podem facilmente descobrir isto por suas ações? Em outras palavras, como solucionar o problema de Eleanor ou problema que é a própria Eleanor? Como transformá-la numa pessoa boa? Como educá-la para ser literalmente uma pessoa boa? Mais ainda por que ela deve ser uma pessoa boa se ela já está no bom lugar e não precisa ser boa, pois pela escolha que foi feita dela para estar ali, ela já é pressupostamente uma pessoa boa? E qual o problema, então, de Eleanor neste sentido em estar no bom lugar se é onde devia estar segundo todo o cálculo hedonista para atingir a máxima felicidade?  O problema é ela ter consciência de que não é boa para estar ali e não devia, portanto, estar ali, não merece o prazer de estar ali e a máxima felicidade do bom lugar.

Eleanor é, assim, ironicamente o Neo em termos de comédia se descobrindo como uma falha no sistema da Matrix que mesmo tendo sido pensada por um arquiteto extremamente competente permite introduzir em seu sistema uma falha propositadamente para ficar mais divertido tudo que vai acontecer. E fica, pois a cada momento esta falha que é Eleonor, a pessoa mais falha como ser humano na terra consideravelmente, a pessoa que encarna tudo que é ruim enquanto ser humano deliberadamente, esta pessoa se revela boa a partir de sua consciência, mais especificamente a partir do momento que tem consciência de que é falha, uma falha em todo o sistema e, também, a que pode solucionar todos os problemas do sistema como Neo em relação a Matrix, solucionando todos os conflitos. É deste modo que a partir do primeiro momento em que Eleanor vai para o bom lugar e tem consciência de que não devia estar ali, que é uma falha no sistema, que sua vida se transforma literalmente para sempre após a morte e que rimos a cada episódio vendo como ela se comportava durante sua vida antes da morte e como ela se comporta em sua vida após a morte e como o instante de sua ida para o bom lugar, que separa uma e outra vida, é decisivo para que ela realmente mude de atitudes e queira se tornar uma pessoa que merece um bom lugar como todos os outros.

Acompanhar os episódios de O bom lugar da primeira temporada é, de certo, uma experiência após a morte incrível, pois os dilemas éticos de Eleanor são os dilemas que nos fazem julgar a todo instante quem é bom e quem é mau e, obviamente, não se ter uma resposta para isto. Em cada episódio se torna cada vez mais perceptível que a questão do bom lugar não é simplesmente quem deve ou não ir para lá por ter mais pontos, mas de quem não tem o direito de ir por ter menos pontos. É a questão de como incluir as pessoas más, de como dar a elas um bom lugar, mesmo que não tenham feito nada para merecer, mesmo que tenham tido uma vida horrível. É o questionamento mais profundo de como sabemos realmente quem é bom e mau quanto a todo um sistema de méritos ou de uma meritocracia que define quem deve ou não ascender a um bom lugar e também porque aqueles que não ascenderam não têm este mérito, principalmente, o que os impediu de conseguir isto.

Logo percebemos que a questão do mérito em relação ao bom lugar não é tão simples assim e são muitas as variáveis não pensáveis pelo sistema ético utilitarista que define por mérito de pontos em relação às ações quem deve ou não devir ir para um bom lugar. Uma simples inversão de perspectiva, neste sentido, coloca em questão toda a meritocracia colocada na série, no caso, a questão cristã de que os que mais sofrem vão para o céu, ou têm o direito a isto por seu sofrimento, pois são os mais oprimidos pelas circunstâncias e impedidos por elas mesmas de serem bons, de terem ações virtuosas, a questão dos miseráveis de Vitor Hugo e a questão de Eleanor na medida em que conhecemos mais sua vida antes da morte e comparamos com sua vida após ela. Pois não seria o caso destas pessoas terem senão o mérito de desfrutar uma vida após a morte num bom lugar já que suas vidas antes da morte já foi tão sofrida e, por este sofrimento, tiveram que tomar as decisões mais difíceis para sobreviver e que se lhes fossem dadas a oportunidade de um bom lugar como Eleanor elas não seriam capazes de mudar de vida fazendo boas ações?

Eis como esta série de comédia extremamente irônica nos leva a pensar em questões filosóficas éticas e sociais de extrema relevância na prática e pensar em cada episódio nela é revisar dilemas éticos aplicados na vida real de modo a se pensar problematicamente nas relações sociais mais atuais. Obviamente discutir todos episódios seria dar spoiler e antecipar o divertimento de todos em relação a ela que já está em sua segunda temporada que não por menos é um revival de toda a Matrix depois que Neo se sacrifica por todos e quando tudo se torna novamente uma intricada rede de problemas filosóficos éticos que nos leva a uma análise ainda mais complexa sobre esta série que é realmente fantástica filosófica e eticamente e merece ser assistida, pois, além do riso garantido, há boas doses de filosofia prática, isto é, ética, que nos fazem pensar bastante.

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