A filosofia dos surdos


Pode o filósofo não ouvir? Pode o filósofo simplesmente silenciar diante das palavras simplesmente não as ouvindo em seu pensamento? Compreendendo-as no que dizem ou querem dizer? O tema da redação do Enem 2017 é mais do que um desafio aos estudantes, é o maior desafio para toda a filosofia ocidental fundamentada no logos, isto é, na palavra, e, principalmente oral, no ouvir a si mesmo através delas e não ouvir o outro, excluindo-o de qualquer compreensão e de qualquer educação.

Há muito o que dizer da redação do Enem neste sentido do ponto de vista filosófico e seria preciso ler Derrida sobremaneira para entender como a filosofia ocidental, toda ela em seu logocentrismo, exclui os surdos da educação, aqueles que são incapazes de ouvir a si mesmos e, logo, são incapazes, do ponto de vista deste logos, de pensarem, de raciocinarem, de falarem o que pensam num diálogo em praça pública ou em um debate filosófico. Seria preciso questionar surdamente a tradição filosófica falologocêntrica como Derrida fez para entendermos então o quão a redação do Enem é a redação mais urgente de todas do ponto de vista humano e político atual e como nós, filósofos devemos também responder a ela nos responsabilizando por toda a exclusão dos surdos na educação e na educação filosófica. Como nós, filósofos, nos orgulhamos de nos ouvir falando em nosso solilóquio e solipsismo, principalmente depois de Descartes em seu ego cogito, excluindo tudo que existe para além de nós mesmos e pensamos tudo apenas a partir de nós mesmos em nosso “bom senso” e como nós somos capazes de incluir os outros que, por natureza, mas também por vontade, não são como nós. Como revertemos, por sua vez, a redução fenomenológica de todo mundo ao nosso ego ou subjetividade transcendental apontada por Husserl em Descartes na direção de uma intersubjetividade transcendental incluindo os outros, principalmente os surdos, sem reduzi-los ao nosso pensamento, à nossa lógica exclusiva e excludente deles necessariamente a partir de nossa oralidade.

Com certeza não é gritando aos surdos ou ouvindo-os pacientemente, em contrapartida, que faremos isto. É preciso toda uma desconstrução do sentido da linguagem e comunicação fundamentada no ouvir-falar para podermos entendê-los e, mais do que incluí-los no nosso vocabulário e gramática, é preciso aprender com eles sua “linguagem” de gestos e sentidos inaudíveis que não deixam de ter sentido, serem sentidos, de fazerem nos sentir mais próximos a eles como toda e qualquer “linguagem”. É preciso aprender com eles a ouvir o outro em seu silêncio mais abissal do ser, compreendendo-o o máximo possível em suas ações mesmo quando elas parecem incompreensíveis para nós, por não sabermos o que querem dizer, tão genérica e específica que é a "língua" dos sinais, as libras. Sinais que são traços ou traçados no etéreo instante como os sons das falas, mas diferentes delas, tocando olhos em vez de ouvidos e que é preciso saber ler mãos, braços, olhos, bocas e toda a multiplicidade expressiva do desconhecido corpo para entendê-los.

Ser filósofo é, neste sentido, ser totalmente outro aos surdos e sua filosofia, mas não por menos entendê-los perfeitamente em sua exclusão, pois somos nós, filósofos, em todo nosso valor dado à fala como expressão da verdade do logos em sua linguagem e sentido do mundo que os excluímos desde muito tempo da educação como incapazes de ouvir a voz da razão e deve partir de nós, principalmente, sua inclusão sob pena de não expandirmos a filosofia a partir dos surdos e o que eles têm a mostrar para nós sobre nós, o mundo, sobre tudo em seu silêncio forçado por nós ao excluirmos eles da educação também filosófica.

Ouçamos os surdos em seu silêncio estridente, pois temos muito que aprender com sua filosofia por vir que advenha!

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