Quem queer arte?


Quem queer arte? Para quem e para que se queer arte? Por que se queer arte? Num país e num mundo cuja arte deixou há muito ser um desejo para ser divertimento, muitos estranham obviamente o ímpeto e a tempestade que a arte sempre produziu desde o seu alvorecer nas paredes rupestres.

Muitos se perguntam e respondem estas perguntas querendo parecerem sábios, doutos na arte, como se ela fosse o produto de alguma mentalidade débil que de uma hora para outra resolveu pensar milagrosamente. São perguntas infantis, e de infantis, que nunca tiveram a preocupação em saber o que é arte porque toda a arte que estão acostumados a ver não é para os fazer pensar, mas simplesmente para divertir seu pensamento. São artes religiosas que confirmam sua fé, arte preconceituosa que confirmam suas ideologias, são artes que banalizam seu desejo em qualquer objeto para sentirem prazer. São artes para encherem os olhos de uma beleza inalcançável para esconder deles a feiura da vida. São artes para adormecer o seu pensamento e fazerem viver a vida da forma mais aprazível possível para si, confortáveis em todas suas crenças de que a arte é simplesmente isto, ou seja, aquilo que pensam e que se coloca ali na sua frente para eles verem o que pensam. 

É neste sentido que se diz constantemente que a arte imita a vida, isto é, como um reflexo do pensamento da vida de alguns, como se fosse o simples ato de fazer alguém ver o seu pensamento na arte. Foi assim que Platão para desacreditar a arte em sua República há tanto tempo cunhou a ideia de cópia, ou ainda, de simulacro, que Aristóteles sintetizaria em sua mímesis, transformando a arte numa imitação. Arte definida como aquilo que copia, imita a realidade através de uma poiesis humana, isto é, uma produção propriamente artística. E vista deste modo, a arte foi e ainda é por muitos considerada uma produção que tem como única finalidade tentar reproduzir a ideia de alguém, de um povo ou de uma nação como uma arte grega, romana, alemã, brasileira, ou mesmo de um deus, como divina.

Foi assim que Platão quis ver a arte e que muitos querem ver ainda também. Mas não é assim que a arte é, nunca foi e nunca será para um artista que diferente de todos os filósofos e senso comum sabe que a arte é muito mais do que um trabalho bem elaborado por uma razão e que são os 5% de inspiração que a definem e não seu árduo trabalho econômico de tempo e pensamento. Os filósofos românticos souberam isto muito bem quando questionaram todo e qualquer pensamento que pretendesse limitar a arte e introduziram este pensamento também na filosofia. Pois a ideia romântica nunca é o resultado de uma razão deliberada, equilibrada na síntese de seus termos dialéticos, mas um absoluto que se racionaliza sem perder toda sua desrazão, todo seu ímpeto e a tempestade que provém de sua natureza.

Quem queer pensar a arte hoje em dia não consegue pensar nisso, pois para si nem tudo é arte, como se a arte fosse o que eles pensam que é, o reflexo de seus próprios pensamentos. É com ímpeto e tempestade que a arte diz que não é isto às pessoas que nunca souberam e nunca saberão talvez o que ela seja, mas sentirão, estão sentindo. Contudo, ingenuamente como são em relação à arte, não sabem o que sentem, não conhecem os próprios afetos da arte no seu corpo, pois nunca pensaram mesmo nos afetos que a arte produz em seu corpo, não sabem o que é a estética da arte para além da beleza dos pensamentos que eles querem expostos à vista.

São preconceituosos que tentam pensar a arte como um reflexo dos seus pensamentos no principal sentido da palavra preconceito, porque tem em vista um conceito ou pensamento previamente estabelecido do que é arte para si, um conceito que já está cristalizado em seu pensamento com as imagens de TV que estão acostumados a ver passivamente na sua frente ou o frenesi que se acostumaram a sentir no cinema. São preconceituosos porque pensam que querem ter a razão no que diz respeito ao que é a arte quando ela está muito além disso, muito além do vão pensamento do que dizem ser ou não ser arte, inclusive, o pensamento de muitos filósofos. Não porque a arte seja algo superior ao pensamento e algo inalcançável platonicamente como uma ideia que não se realiza, isto é, que não é real, como se fosse uma pura ficção, pura ausência de realidade, um sonho, ou ainda, algo simplesmente "técnico" como um beijo no teatro ou no cinema.

Querer expulsar a arte da realidade foi e ainda é o principal objetivo de muitos que pensam como Platão, mas como não se pode expulsar de fato a arte da realidade, pois ela nunca está fora da realidade como bem compreenderam os românticos, e Hegel ainda que tenha esquecido disto, tenta-se tolher a todo momento ela para que se adeque a uma educação estética na qual ela não faça justamente aquilo que se pretende, isto é, fazer sentir e pensar. Produzir uma abertura ou se introduzir no corpo e no pensamento que se mantém íntegro em si mesmo como algo próprio, como uma propriedade que não pode ser tocada, que é mesmo intocável para muitos, mas que é tocada barbaramente por ela sem que se perceba muitas vezes isto, pois justamente ela é aquilo que não se percebe, simplesmente se sente e se pensa impetuosamente contra toda vontade.

Toda a raiva que as pessoas estão tendo com a exposição Queermuseu e todas as manifestações artísticas que elas não querem ver na realidade só demonstra o quanto a arte está para além da compreensão de pessoas para quem a arte é ainda uma simples imitação, ou ainda, o pensamento racionalizado do belo em suas vidas modernas. Pessoas que não conseguem pensar o quão, já para muitos gregos e para os românticos, a arte está para além deste pensamento tão ingênuo de que ela é simplesmente o que se vê, de que é o que alguém quer vê, de alguém que quer se vê narcisicamente. Quem queer a arte não quer ver o que se vê, quem queer a arte não quer ver a realidade tal qual ela é sempre do mesmo modo como se vê numa imagem que representa a vida de uma determinada forma, quem queer a arte não quer pensar a realidade tal qual é pensada até então, quem queer a arte não quer ter razão nem toda a autoridade e autoritarismo que a razão imponha. Quem queer a arte queer a produção de um sentir e de um pensar um sentido diferente para a sua existência, queer uma mudança de posição, de posicionamento diante da existência na realidade, queer ser humano como qualquer outro, contudo, fazendo arte, como artista, com arte.

Aqueles que se perguntam o que é arte não querem arte, querem simplesmente manifestar seu pensamento da forma mais conservadora possível, isto é, conservando seu próprio pensamento, porque com certeza é muito difícil para eles pensarem e o mínimo de pensamento que têm deve ser mantido senão não sabem o que fazer. Não sabem o que fazer com o próprio pensamento quando este se manifesta de modo diferente e se atêm para não perderem a razão, pois são incapazes de sentir e de pensar senão o mínimo possível pra não terem dores de cabeça. Não querem ser obrigados a pensar, e, para eles, obviamente, a arte não pode fazer isto, ninguém pode fazer isto, e, deste modo, afirmam o que pensam ser o liberalismo no auge de seu conservadorismo, tentando conservar o pouco que lhe resta de pensamento.

Nem tudo é arte, dizem os realistas hoje em dia e não apenas dizem, mas lutam para dizer isto e matam se preciso for ou mandam matar covardemente. A pensar como eles absolutamente nenhuma arte grega seria possível, nenhuma encenação de Édipo poderia existir, nada que não fosse a simples expressão do pensamento mais equilibrado poderia existir, nem as novelas que veem poderiam existir, pois nada, absolutamente nada, poderia fazer eles não terem razão. Édipo, obviamente, seria uma peça banida pelos crentes de hoje em dia que veriam nela um estímulo ao parricídio e ao incesto e não uma tentativa miticamente e depois teatralmente de se limitar justamente tal desejo. Nenhuma tragédia e comédias gregas, ademais, seriam possível haja vista todas serem a expressão da desmedida humana em seus desejos. Tão pouco poderia existir a arte religiosa com todo os seus demônios e formas grotescas que adornam todas as catedrais do mundo, toda a religiosidade que se faz presente em todos lugares e em todos os tempos, pois isto seria incentivar a maldade no mundo e o desejo sexual como entre os hindus. Nenhum ímpeto e tempestade na arte, por fim, como desejaram os românticos poderia existir diante da razão que muitos se arrogam ter hoje em dia em relação à arte, mas nunca terão.

Em outras palavras, simplesmente não existiria vida, uma vida que não é a imitada pela arte, mas sentida com ela. Uma vida que não se queer sentir por medo, simplesmente por medo de que isto seja bom, de que sentir e pensar algo bom possa ser possível para além do que se pensa. Uma vida que destrói valores a todo instante que não sejam mais condizentes com ela, pois a vida não é o valor que se dá para ela, mas é um valor em si mesma. Nenhuma arte é algo que destrói a vida, mas que a expande cada vez mais em sua existência. Quem pensa que a arte destrói a vida não sabe o que é viver, pois, como diria Clarice Lispector, viver ultrapassa todo entendimento...

Eis a questão que a arte então coloca a todos: quem queer viver? E que ela mesma responde dizendo que todos querem viver. Todos já vivem e ela demonstra isto, mesmo que alguns não percebam que sua raiva é porque ela mostra para si que estão vivos e que podem até negar o pensamento dela, mas não podem negar que a sentiram, que a sentem em suas vidas, pois a arte não imita a vida, ela é a vida em sua mais livre expressão de ímpeto e tempestade em nós mesmos e sempre será a cada raiar do dia que se queer a arte.

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