O efeito Trump

setembro 27, 2017

Recentemente a rede social Twitter teve que o explicar o motivo pelo qual não exclui os tweets de ódio do então presidente estadunidense Donald Trump. A justificativa foi a relevância informativa e o interesse público. Mas talvez devêssemos nos perguntar qual a relevância informativa de se divulgar o ódio público e qual interesse público temos na divulgação do ódio. A explicação que o Twitter teve que dá só demonstra algo mais importante a ser pensado hoje em dia, o fato de que os discursos de ódio ganham cada vez mais relevância e interesse público e as redes sociais contribuem enormemente para isto.

O que se denomina aqui por efeito Trump Ã© esta relevância mesma que o ódio adquire atualmente na vida das pessoas e que extravasam em sua linguagem cotidiana nas diversas redes sociais, inclusive com a utilização de bots, máquinas programadas para disseminar informações que, neste caso, disseminam ódio. Trump não foi o primeiro a fazer isto, muitos outros já conseguiram e Hitler foi senão quem criou o discurso de ódio que é repetido por muitos hoje em dia canalizados para diversos grupos sociais minoritários. Foi Hitler quem, antes de Trump percebeu que o ódio bem dirigido por meios de comunicação podem produzir efeitos devastadores na vida de muitos, mas diferente de Hitler o discurso de ódio de Trump não é algo isolado que é compartilhado apenas por entusiastas de um regime de poder centralizador como o fascista. O discurso de Trump tem como base a democracia e toda a liberdade de expressão reivindicada por liberais e conservadores capitalistas, isto é, que atende a gregos e troianos, sem distinção, todos reivindicando o ódio contra minorias.

Se a democracia sempre foi um governo temido pelos grandes filósofos gregos, no caso, Sócrates, Platão e Aristóteles, é devido o efeito Trump, isto é, devido à possibilidade de que num governo democrático a maioria não fosse justa, mas exercesse uma violência contra aqueles que elas odiassem. Não por acaso Sócrates, por meio de Platão, foi o primeiro a perceber isto em sua própria vida ao se deparar com o poder de uma "maioria" democrática, que nunca é uma maioria de fato, salvo raras exceções, mas uma pequena diferença de votos de uns contra os outros. Contudo, uma pequena diferença de votos que movidos por um discurso de ódio contra si decretaram sua pena capital em nome da lei e da ordem da cidade, pois, ninguém está acima da lei, se dizia já isto nesta época. Contudo, sabendo Sócrates no diálogo Críton de Platão que a lei não é pressuposto de justiça, pois as palavras da lei podem ser as mais violentas e injustas aos ouvidos.

É na democracia e não na tirania ou no fascismo que o discurso de ódio se torna legítimo, quando discursos de ódios se tornam, como diz o Twitter, uma relevância informativa e um interesse público. Ofensas diárias em comentários assim se tornam extremamente naturais nas redes sociais e, por mais que pretendam diminuir isto, estas não vão conseguir excluir todos os discursos de ódio presentes em comentários de modo velados, sem conseguirem ser interpretados pelos algorítimos e as inteligências artificiais que, longe de combaterem, o ampliam. Neste sentido, o efeito Trump do discurso de ódio legítimo é muito mais comum do que as pessoas pensam e muitos o praticam cotidianamente em seu dia a dia e, mais ainda, muitos são motivados a praticar, pois uma características das redes sociais é promover cada vez mais a interação das pessoas, mesmo que seja através de discursos de ódios. E como ficou claro recentemente os discursos de ódio dão muito dinheiro nas redes sociais para empresas e para as próprias redes sociais com as propagandas direcionadas.

O que caracteriza o efeito Trump é que o discurso de ódio não é produzido por um indivíduo que se torna o Führer para muitos e que muitos o reproduzem, mas que muitos se tornam produtores do discurso de ódio a cada dia nas redes sociais. O efeito Trump é assim uma dissonância que se produz a cada som produzido, mas que não deixa de ser harmônico com todos os outros sons, pois é sempre o mesmo discurso de ódio que se propaga. E, sobretudo, se torna legítimo na medida em que a maioria de um Ã© estabelecida na democracia, no caso, a maioria da metade mais um que é o Trump representa, mas também muitos outros nos seus discurso de ódio, ao serem o mais um que produz toda a diferença.

Trump é mais um que somados se tornam muitos hoje que fazem um discurso de ódio constante em diversos espaços sociais e galgam cada vez mais poder. Não são maiorias constituídas, mas minorias de fato em números, mas que tem como principal aliado a instigação e imposição do medo a muitos. E é por medo muito mais do que por concordância que muitos se subjugam hoje em dia, um medo da violência que os faz, porém, serem violentados em toda sua dignidade humana por pessoas que não tem dignidade nenhuma. Toda a razão que seria o que faria os seres humanos rejeitarem a violência como aquilo mesmo que significa uma perder a razão se torna o motivo pelo qual se aceita a violência, a violência produzidas de uns em detrimento de todos. Uma maioria que deveria rejeitar assim um discurso de ódio porque significa toda uma desrazão, isto é, uma destruição da razão, passa a aceitar o discurso de ódio por medo do que aqueles que o produzem possam fazer.

O discurso de ódio de Trump é o discurso de muitos hoje em dia em casa, na escola, no trabalho, nas ruas, nas redes sociais que se multiplica sempre com mais um que o produz. Ele é como a simples menção de ter uma arma na cintura da calça sem a mostrar. Na expectativa sem saber o que pode acontecer, muitos preferem o medo a ter que arriscar a própria vida, ainda que não seja a própria vida que ponham em risco, tão somente um momento dela. Evita-se assim o conflito para produzir um conflito maior ainda, um conflito na própria existência que passa a ser regida pelo medo constante no dia a dia. Um medo da violência gerado pela própria violência do discurso de ódio que sempre mais um pode produzir e, com isso, fazer com que muitos se calem violentados e violentando-se por ele.

O efeito Trump é muito mais do que um efeito localizado ou universal. É um efeito em sintonia entre aqueles que produzem os discursos de ódio, cada um constituindo um novo produtor ao emitir seu discurso. Não há como controlar tal sintonia na medida em que ela não é um arranjo de algumas pessoas que produzem sons parecidos, mas que destoam a cada vez no som que produzem. Os discursos de ódio não têm uma ideologia que fundamente todos os eles e quando há são ideologias que não se sustentam ao menor argumento racional e não tem validade nenhuma na prática. São como gritos de criança que se manifestam sem nenhum fundamento plausível, mas ensurdecem e produzem raiva em muitos diante delas. Mas diferentes dos choros de criança não são expressão de uma dor ou sofrimento por algo que não se tem em relação ao qual não se sabe agir, são expressão de uma dor que se quer infligir aos outros com a maior violência possível.

Não é fácil se deparar com um discurso de ódio sem que ele consiga seu objetivo, isto é, o ódio com o qual se alimenta e alimenta a todos. O ódio Ã© propriamente o efeito Trump, ou ainda, o efeito do discurso de Trump e de muitos hoje em dia, um ódio que faz todos sentirem ódio contra si e contra todos. Situações simples, neste caso, se tornam motivos frequentes para que os produtores de discurso de ódio propaguem a discórdia entre todos sem a mínima preocupação com o que estão fazendo, afinal, o ódio é esta manifestação de despreocupação com tudo, a exacerbação da raiva sem uma preocupação em violentar. Neste sentido as redes sociais, principalmente o Twitter, se tornam os promotores do ódio com hashtags que se produzem constantemente para violentar determinados grupos sociais que se defendem com a mesma violência dos ataques. E memes ilustram a violência tornando-a divertida com a alegria de compartilhar o momento de ódio sentido por todos onde invariavelmente nos tornamos, todos, produtores de discursos de ódios também no logocentrismo do discurso de ódio que tem na exclusão do outro de modo violento pelo discurso sua principal característica.

A exclusão do outro de modo violento produzida pelo discurso de ódio é o fim último do efeito Trump. Tal exclusão é o silenciamento do outro em seu discurso, por seu discurso e na própria vida na medida em que o discurso é levado às últimas consequências, isto é, a uma solução final, como a pensada por Hitler. Uma solução que é a violência de fato produzida pelo discurso de ódio que estimula a aniquilação do outro quando as palavras não obtêm o efeito desejado e que pode ser produzida por qualquer pessoa que faça do discurso de ódio uma palavra de ordem. Neste sentido, quando Trump diz que jogadores da NFL deveriam ser demitidos dos times por não ouvirem o hino de pé por demonstrarem união na luta contra o racismo, não é apenas uma retórica que ele tem em vista, mas uma ação imediata mesma como a de um general a seus subordinados que pode ser qualquer um que tome suas palavras por uma ordem dada e que deve ser cumprida. Da mesma forma que, como chefe de Estado ele diz: "Acabei de ouvir o ministro das Relações Exteriores da Coreia do Norte falar na ONU. Se ele ecoa os pensamentos do Homem foguete, eles não durarão muito mais tempo!" (aqui)

No mesmo sentido, quando religiosos dizem que pessoas que tem orientação sexual diferente da heterossexual são "doentes" Ã© um discurso de ódio que se manifesta e qualquer pessoa é chamada ao combate da "doença" buscando "curas" para elas. Não importa se não há doença propriamente dita na orientação sexual, pois a questão não biológica e muitos sabem disso. A questão é o discurso de ódio que se manifesta contra aquilo que se considera uma "doença", ou seja, algo a ser extirpado do "corpo", no caso, do corpo biológico, mesmo que não seja biológico, e do "corpo social". E não por acaso o efeito Trump está presente nesta perspectiva pois também ele propaga um discurso de ódio ao ter impedido a entrada de transexuais nas Forças Armadas dos Estados Unidos.

É com violência determinada que o efeito Trump do discuso de ódio se propaga numa tentativa de extirpar do corpo e da sociedade tudo aquilo que é odiado. É com força que ele se sobrepõem a todos em busca do maior silêncio possível. É um efeito de morte que se alastra cada vez mais com estes discursos que se produzem constantemente passando literalmente de boca a boca por meio de mordidas de cães raivosos. Uma raiva para a qual não há cura, posto que diferente daquilo que os produtores de discurso de ódio odeiam tal raiva não é considerada doença, mas uma expressão do ser humano sem a qual ele deixaria de ser humano.

Contudo, se todos os animais sentem raiva à menor investida contra si e produzem discursos de ódios na prática violentando quem os quer violentar, não é a raiva uma expressão do ser humano, mas do ser animal em geral. Ao contrário disto é justamente quando o ser humano começa a exercer o poder de controlar sua raiva e a dos animais transformando-os em domésticos ou adestrando-os que ele se torna totalmente diferente enquanto ser humano e muda o modo de ser dos animais. E neste caso até os animais mais ferozes como os leões se tornam seres "humanos" não por serem dotados das mesmas características do seres humanos, mas por conseguirem estabelecer uma relação que não seja propriamente através da violência.

O discurso de ódio é o discurso que manifesta a violência nas palavras e requer por meio das palavras uma ação imediata mesmo que não seja executada pela pessoa que o produz. É o indicativo do que deve ser feito e que qualquer um pode fazer desde que o discurso de ódio se torne uma palavra de ordem para si, isto é, algo necessário a ser feito. A violência inerente ao discurso de ódio é inerente a vida tal como ela se manifesta de modo animal, mas não propriamente como a vida do animal, pois não há violência propriamente na natureza, já que a morte não é produto da natureza e, sim, sua consequência. A natureza e tudo que nela existe não produz a morte na medida em que esta é a condição da própria vida na natureza desde o seu surgimento. Os animais não produzem violência uns contra os outros, produzem sobrevivência de uns por outros. Cada animal sobrevive naquele que o mata para se manter vivo, algo bem diferente do que acontece com os seres humanos no qual nenhum sobrevive naquele que o mata, pois nenhum serve de alimento a outro ser humano. A "sobrevivência" humana nunca é uma sobrevivência como a do animal que escapa à fome do outro ainda que em legítima defesa. Não há propriamente sobrevivência humana, tão somente resistência Ã  morte por outro na sociedade. O ser humano sobrevive como animal na natureza, mas resiste como ser humano na sociedade. Se sobrevive a um ataque natural, mas não a uma ataque individual ou de grupo, pois, neste caso, simplesmente se resiste à morte possível com eles.

A morte como fim último do discurso de ódio, como Trump deixou bem claro ao norte-coreanos ao dizer "eles não durarão muito mais tempo", independente da relevância informativa e interesse público, deveria por si só ser motivo para o Twitter excluir o tweet. Sua não exclusão, por mais que demonstre uma contradição com as "políticas" da rede social, demonstra que os discursos de ódio estão cada vez mais incisivos e a violência é algo que se manifesta com grupos minoritários tentando resistir Ã  morte devido ao ódio constante a si. Mulheres, LGBTS, negros, crianças, menores de idade, pobres, mendigos, todos aqueles que manifestam qualquer forma de diferença em relação ao padrão adulto, homem, branco, trabalhador, empresário é um grupo de risco, mesmo sendo a maioria em relação a este padrão.

Nenhuma violência é um ato de resistência. É um ataque deliberado contra o outro para excluí-lo da existência. Não é a morte do outro que se produz, é a destruição do seu ser, sua pre-sença ou sua essência no tempo. A violência é uma violação da essência do ser humano, no caso, de sua razão que define sua existência. A violação do ser humano em sua existência no tempo produzindo sua morte. O discurso de ódio é a violência do ser humano em palavras que se propaga para que sua morte se realize em qualquer tempo. Basta que alguém ouça seu chamado, como Sócrates ouve as palavras das leis da República em Críton antes de ser executado:
Parece-me, amigo, Críton, ouvir essas palavras como os iniciados nos mistérios dos coribantes acreditam ouvir as flautas, e o som dessas palavras fere com tanta violência meus ouvidos que torna para mim impossível ouvir outro discurso. Convence-te, então, de que tudo que dissesses em contrário seriam palavras vãs. Se, porém, ainda desejas declarar alguma coisa, declara-a. 
Nada tenho a declarar, Sócrates. (PLATÃO, 1999, p. 114. Os pensadores)
É no silêncio produzido pelo discurso de ódio, enfim, que o efeito Trump se propaga. Por isso não podemos nos calar e diante do seu ódio falar com a voz mais amena possível.

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