A história de Trinta e duas e de todos nós
A peça começa, todos estão em cena, os atores e o público no mesmo palco. Todos fazem parte da mesma história das Trinta e duas… Todas concentradas num mesmo campo de sofrimento e dor. Todas oprimidas pelo espaço e tempo de história que ainda insiste em persistir, a da fome, do flagelo, da opressão natural e social.
Na peça Trinta e duas, dirigida por Neidinha Castelo Branco e produzida como conclusão do Curso de Princípios Básicos de Teatro, realizado pelo Teatro José de Alencar, a cena se divide e se integra na estrutura montada em cima no palco onde a história é narrada e encenada. No palco que se encena a vida de retirantes da seca que migraram para Fortaleza na década de 30 e foram aprisionados em campos de concentração na periferia da cidade, difícil não compartilhar da dor e do sofrimento que é não por menos a nossa como cearenses e como humanos. Não são vinte e nove atores em cena, são milhares, milhões de pessoas, todas as que migraram pela seca e pela fome do sertão, todos nós que estamos ali observando o que aconteceu a nós, cearenses, há pouco tempo atrás numa história encenada à nossa frente, como um passado que se faz presente e remete a um futuro não menos sombrio ainda para muitos de nós, e para muitos no mundo que migram e imigram por problemas naturais e sociais desterrados pela dor e sofrimento da fome e da guerra.
Montada numa estrutura semelhante a do Teatro Oficina, com a cena produzida num corredor ladeado por cadeiras, a peça introduz o público na história que se passa num trilho por onde migram as pessoas do sertão para Fortaleza para esquecer suas dores e sofrimentos, mas sem conseguirem. Da fileira da frente, o que se vê é uma cena dividida, público dividido, olhares divididos, atores divididos, falas, vozes, sons, ruídos, suores, respirações, bocas, lamentos, gemidos, risos, tudo dividido com um público que nem suspira ante o que vê em seus olhos. Quem pensa que teatro é uma representação da vida, quem pensa que teatro é encenação da vida, não consegue perceber que teatro é produção de vida em cenas e estas não são o que se vê, mas o que se sente com os olhos, com os ouvidos, com todo o corpo fremido no palco, no público a cada pisar no tablado, a cada grito por trás das cadeiras que não sabemos de onde veio, a cada ruído que surge por trás da plateia metafisicamente, na escuridão do ser.
O teatro é uma cena que se produz num tempo dividido pelo pre-sença dos atores e do público num instante de a-partamento que separa e liga a ambos ao mesmo tempo. A cena que se produz nele num instante é irrepetível. Não se produzirá novamente mesmo que encenada mais de trinta e duas vezes. É como a história contada no palco, um momento no espaço e tempo de um instante que não volta mais a não ser numa lembrança futura. Ali, no aqui e agora de um instante, ela se produz e se acaba como a fumaça a envolver em brumas os personagens da história e o público nos levando a um passado e futuro desconhecido de nós mesmos conhecido naquele instante. Ou ainda, começa e se acaba como os sons onomatopeicos de animais, de marchas, do trem que segue o trilho passando pelas estações de dor e sofrimento dos retirantes… Aqueles que retiram de dentro de si a força telúrica para continuar a viagem rumo ao nada no qual esperam a vida retirada deles com a seca, a fome.
A cena que é produzida pelos atores é histórica porque remete à história, mas também porque produz a história, deles em particular como atores, mas também nossa. Ali, no teatro, a história se produz no instante da cena que nos separa e liga ao mesmo tempo, atores e público. Somos impelidos ao palco a entrar na cena como observadores da história, mas também partícipes delas. No teatro, vivemos a história que no cinema e na literatura apenas imaginamos. Na cena teatral, as bocas, olhos, ouvidos, corpos se comungam numa mesma história vivida de modos diferentes na contemporaneidade de um instante. Como mais antiga produção artística do ser humano, o teatro é produção de vida numa cena, assim como a filosofia produz vida num conceito, a diferença é que no teatro a história é vivida num instante e na filosofia, este instante é eternizado em sua duração. Ambos, porém, fazem parte da mesma história, assim como atores e público na peça as Trinta e duas, ambos retirantes na terra em busca de uma vida que é retirada de si a cada instante e a cada instante reposta por seus pés que continuam seguindo a viagem em cada estação onde há uma promessa de vida.
A promessa de vida é sempre o fim da história, quando a peça acaba e um sorriso de alegria pelo que foi produzido se faz presente. Enfim, os participantes são atores, concluíram o curso, passaram por mais uma estação da história de suas vidas e nós, o público, também a concluímos com eles alegres por fazermos parte desta história, da história que nunca chega ao fim, posto que sempre se desvia dele em cada instante que abre o tempo à nossa interpretação, como abre a peça, a arte, a filosofia, a vida à espera de quem a interprete a cada instante do tempo.
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