O medo de amar
Passado alguns dias desde este fato, a pergunta tornou à minha mente obsediante e preocupante ao despertar, não mais como uma questão a esmo dentre tantas outras que me vêm a mente pela manhã e maturo ao acordar tentando dar ordem aos meus pensamentos. Ela veio com a mesma preocupação que a estudante tinha com o amor quando me fez a pergunta e para a qual nem ela nem eu tÃnhamos uma resposta, e necessitamos dela. O que me faz pensar, agora, em quão preocupados nós somos com o amor ou ainda em como o amor é algo preocupante em nossas vidas e como muitas vezes existe em nós um medo em relação a ele, um medo de amar. Parece estranho, neste sentido, que um sentimento tão bom como o amor possa ser uma preocupação, que tenhamos preocupação por amar, por sentirmos algo que nos faz bem e que fiquemos preocupados com ele ao ponto de não saber se estamos amando ou não muitas vezes nos angustiar, nos trazer dor e sofrimento, ser, enfim, um problema para nós.
Por mais que o amor seja muitas vezes sentido pelas pessoas, e pelos poetas românticos como eu mais ainda, a questão é que, por mais que amemos muitas vezes e muitas pessoas em nossa vida, não sabemos o que é o amor e saber se estamos amando ou não é um problema existencial pelo qual dificilmente passamos incólume, sem dor alguma. Amar, por mais sublime que seja enquanto sentimento humano, não é algo simples e, por vezes, extremamente complicado, ao ponto do amor ser um problema histórico não apenas existencial e particular, mas um problema que muda totalmente a história de um povo ou de muitos povos. Por exemplo, segundo a mitologia, quando Páris e Helena se amaram e fugiram para Troia eles promoveram com seu amor a discórdia entre gregos e troianos e, antes mesmo disso, quando o amor por Helena, considerada a mulher mais bela do mundo, era um problema para os gregos devido a disputa que existia por ela e cujo juramento de proteção a si independente de com quem casasse levou os gregos a se unirem para destruir Troia depois que fugira com o prÃncipe de Troia. Por outro lado, segundo a religião cristã, quando Jesus Cristo em nome de seu amor à s pessoas, ele também mudou a história, no caso de muitos povos do Ocidente e se tornou para os cristão o sÃmbolo do amor de deus na terra pelos seres humanos ao enviar seu próprio filho para morrer por eles.
Muitos outros casos podem ser avizinhados a estes exemplos históricos e cada pessoa tem pelo menos uma história de amor para contar que causou algum problema senão para muitos apenas a si mesma, de modo que cada um em sua existência sabe como é difÃcil amar, seja alguém, seja muitas pessoas. No caso dos que amam pessoas do mesmo sexo, isto se confirma mais ainda, principalmente nos dias de hoje em que elas buscam cada vez mais afirmar sua sexualidade perante a sociedade em termos de direito e muitas são violentadas e mortas por amarem deste modo. Muitos ainda, diante de todos os problemas que o amor envolve, preferem abdicar do amor em suas vidas não amar alguém para não sofrer e para alguns o amor pelo ser humano perde todo o sentido existencial se tornando misantropos.
Não é por acaso, portanto, que o amor é um problema e há muito medo de amar ao lembrarmos de vários fatos históricos, particulares e universais como estes envolvendo o amor por uma pessoa, de outro ou do mesmo sexo, ou ainda por muitas pessoas altruistamente. Neste sentido, o amor é propriamente um problema ou questão se coloca frequentemente na história e que muitas vezes é diminuÃda pela história mesma, como no caso do amor de Páris e Helena diminuÃdo pelo motivo econômico apontado como principal motivo da guerra dos gregos contra Troia. Também na vida pessoal de cada um que ama o amor é diminuÃdo como sentimento quando é considerado como bobo, ou faz da pessoa bobântico, como gosto de dizer, e deste modo a questão sobre o que é o amor e que é mesmo o amor, em vez de ser pensada em busca de uma resposta, é simplesmente denegrida e posta de lado como uma questão menor na nossa vida, na história e na filosofia ela mesma por uma razão e lógica sempre preponderante em relação ao pensamento que tenta submeter o amor a uma razão e logos, mas dos quais, porém, ele sempre escapa ao domÃnio.
De um ponto de vista lógico e racional, parafraseando Agostinho, aquele que mais buscou demonstrar o amor de deus pelos seres humanos em todo o seu sentimento e pensamento, pode-se dizer do amor o mesmo que ele diz do tempo ao se perguntar o que é o tempo? E responder a esta pergunta de um modo paradoxal quando diz: "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei." (AGOSTINHO, 1980, p. 265) Do mesmo modo, podemos dizer que se ninguém se pergunta o que é amor, sabe não por menos o que ele é em sua vida quando está amando, contudo, se quiser explicar o que ele é já não consegue dizer e, deste modo, o amor, assim como o tempo, foge à tentativa de submetê-lo à razão. Esta fuga do amor à toda razão foi em outro momento da história da filosofia descrita também de modo paradoxal por Pascal em seus Pensamentos ao dizer que: "O coração tem razões que a própria razão desconhece."
Problema histórico, polÃtico, social, existencial, o amor é, deste modo, um grande problema à filosofia em sua lógica e razão e um problema da própria filosofia em seu nome vulgarmente traduzido como amor ao saber. Um problema que está presente nela desde os pré-socráticos como união entre os elementos da natureza fÃsica e que, de modo particular, foi o tema da obra O Banquete de Platão quando alguns gregos proeminentes de Atenas se reuniram na casa do poeta Agatão e resolveram elogiar o amor, entre os quais Sócrates, considerado miticamente como o mais sábio de todos os gregos e amor platônico de Platão. Um problema que nesta obra é colocado por Sócrates a todos os homens presentes no banquete em particular e todos da história na medida em que, em seu momento de elogiar o amor, Sócrates não diz o que é o amor, prefere reproduzir o discurso de Diotima, mulher de Mantinéia, sobre a qual diz que "nesse assunto era entendida" e era ela que o "instruÃa nas questões do amor" (grifo meu), e, por fim, em relação a este discurso diz:
o discurso então que me fez aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a partir do que foi admitido por mim e Agatão, como meus próprios recursos e como eu puder. (PLATÃO, 1983, p. 33. Os pensadores)
Que Sócrates tente repetir com seu próprios recursos e como puder o discurso de uma mulher sobre o amor, uma estrangeira a quem ele assemelha aos sofistas consumados, e que ele seja obrigado a se calar diante dela quando no inÃcio de seu discurso, ela lhe interrompe dizendo "Não vais te calar?", isto demonstra o quanto o amor é algo estranho, estrangeiro, sofisticado, alheio mesmo à toda a lógica e razão dos homens filósofos, e o fato de o amor ser caracterizado primeiramente por Sócrates com Agatão como carente do que é belo e bom ao mesmo tempo, demonstra não por menos que a pergunta o que é o amor carece de uma resposta ela mesma bela e boa, ou ainda, justa, isto é, de uma verdade para os filósofos. Algo que parece se confirmar quando Diotima diz a Sócrates "o que é evidente ... até mesmo a uma criança", no caso, o que é o amor e quem são os que filosofam quando ele lhe pergunta:
- Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?
- É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre estes dois extremos, e um dele seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. (PLATÃO, 1983, p. 36. Os pensadores)
Entre a sabedoria e a ignorância, eis que o amor e a filosofia são algo sobre o qual nem sabemos o que são, nem tão pouco não sabemos o que sejam. É um meio termo entre extremos que não põe termo algum entre eles e, deste modo, não pode ser compreendido logicamente pela razão e é, assim, um paradoxo, isto é, está para além da opinião comum (doxa) e mesmo verdadeira (urdoxa), para além da verdade que possamos estabelecer sobre ele, que o filósofo possa estabelecer sobre o amor, e no caso, o mais sábio dos homens e filósofos entre os gregos. Amar e filosofar seriam semelhantes neste sentido em sua sabedoria e sua ignorância e Sócrates parece resumir com seus próprios recursos isto que Diotima lhe ensina ao dizer só sei que nada sei, e não por menos todo o discurso de Diotima parece ser o fundamento da filosofia de Sócrates em sua maiêutica quando fala do amor como "um parto em beleza, tanto no corpo como na alma" e, sem que ele a entenda quando diz isto, ela diz a ele mais claramente:
- Pois eu te falarei mais claramente, Sócrates, disse-me ela. Com efeito, todos os homens concebem, não só no corpo como também na alma, e quando chegam a certa idade, é dar à luz que deseja a nossa natureza. (PLATÃO, 1983, p. 38. Os pensadores)
A carência do amor não é, deste modo, simplesmente a carência do amor por um objeto amado, isto é, como um desejo por aquilo que lhe falta, como Platão caracteriza o amor e a filosofia como platonicamente a partir de uma Ideia, mas a carência de um saber mesmo o que é o amor e do que é ser filósofo, uma carência de saber representada por Sócrates ao ser instruÃdo por Diotima não apenas nas questões do amor, mas também da própria filosofia, bem como em sua maiêutica. Que o simpósio em O Banquete de Platão tenha por último discurso o louvor de AlcibÃades a seu amor, no caso, Sócrates, em meio a uma embriaguez e ciúme violento demonstra como o amor e o desejo é menos a carência de algo do que a carência de razão e de lógica mesmas, e como isto é um problema do qual Sócrates e os filósofos buscam se defender, quando diante do ciúme e amor de AlcibÃades, ele apela Agatão:
- Agatão, vê se me defendes! Que o amor deste homem se me tornou um não pequeno problema. Desde aquele tempo com efeito em que o amei, não mais me é permitido dirigir nem o olhar nem a palavra a nenhum belo jovem, senão este homem, enciumado e invejoso, faz coisas extraordinárias, insulta-me e mal retém suas mãos da violência. Vê então se também agora não vai ele fazer alguma coisa, e reconcilia-nos; ou se ele tentar a violência, defende-me, pois eu da sua fúria e da sua paixão amorosa muito me arreceio. (PLATÃO, 1983, p. 44. Os pensadores)
Incapazes de sabermos o que é o amor, mesmo que saibamos o que ele é de modo evidente desde criança, como diz Diotima, e incapazes de lidarmos com o amor quando ele se manifesta em nós, sentindo angústia quando o sentimos sem saber se é amor, ou ainda nos defendendo do amor mesmo como algo para além da nossa compreensão lógica e racional e que nos violenta, o amor é sempre um problema, e, apesar de tudo que é belo, bom, justo e verdadeiro que há em sua ideia, ele é algo que nos preocupa, algo do qual temos medo.
Será que é amor? Sem saber o que sentimos, mas já sentindo, é com angústia que nos perguntamos isto e perguntamos mais ainda se devemos amar, se está na hora de amar, agora ou de novo, novamente, ou nunca mais amar. Se devemos amar tal ou qual pessoa, em tal ou qual idade, em tal ou qual momento de nossa vida, em tal ou qual lugar e, deste modo, se estabelece todo um conjunto de problemas que leva à angústia os amantes em sua existência, que de bobânticos passam a ser extremamente sérios ao ponto de morrerem por amor como os românticos.
Uma pergunta sem resposta, eis, por fim, o que é o amor. Ou ainda, uma pergunta que tem como resposta o próprio amor na medida em que é pensado por alguém que, mesmo sem saber o que é o amor ou por que ama diz: Eu te amo! E deste modo faz da sua ignorância sobre o amor uma sabedoria sobre ele num ato ilocutório. E quando interrogado se ama verdadeiramente, diz performativamente: Eu juro! Perdendo já o medo de amar.
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