Um copo d'água
Tristeza não tem fim, felicidade sim... Cantam Tom Jobim e Vinícius de Morais em sua música A felicidade anunciando a vida de afetos que há por vir, movida por alegrias e tristezas que se alternam a cada momento sem nunca se repetirem. Música a partir da qual formulei um dos meus ditos espirituosos tristeza infinita que demarca a cada momento a lembrança destes versos que dizem muito e pouco sobre a vida.
Dizem muito, pois nos rementem a uma existência que não consegue escapar da dor e do sofrimento e que vive em meio à toda sua tristeza pouco momentos de felicidade como a salvação para seus infortúnios, a alegria de um momento como se fosse a própria vida. No caso, uma vida que se quer viver livre das dores e do sofrimento, alegre eternamente neste breve momento de felicidade. Porém, estes versos dizendo mais do que isto, que esta vida de felicidade não existe como momentos de alegria que sempre se acabam, tendem a acabar, e se sobrevêm a dor é apenas por algum momento.
Dizem muito ainda por estes versos tão flechantes naquele que vivem como os raios de Apolo pois ressoam Schopenhauer nos ouvidos dizendo que a vida é sofrimento e a alegria é senão uma peça que a natureza nos prega para a vivermos a vida melhor a cada dia. Uma vida que alguns se acostumam a viver e outros fogem a todo instante em prazeres ditos vulgares, mas que têm o mesmo fim natural, a ilusão de que se vive plenamente, que se pode escapar da própria existência. Uma vida natural cuja força de seus afetos são sempre maiores que as nossas e em algum momento insuportável e sob a qual havemos de perecer um dia pela nossa natureza mortal.
Estes versos dizem muito também porque nos lançam num moinho de vento que gira constantemente dores moendo nossa existência como se a vida fosse realmente um sofrimento e que devêssemos padecer nela hoje para viver plenamente amanhã, num eterno amanhã que nunca chega e, quando chega, com a morte, já não podemos saber, não podemos dizer o quão feliz e alegre é a vida após ela, apenas imaginar. Imaginar como seremos felizes depois de morto e assim confirmar o dito de Schopenhauer que tudo não passa de uma ilusão, algo que imaginamos para fugir de nossa vida de sofrimento, imaginar que a felicidade não pertence a esta vida, à nossa vida e que a vida é uma tristeza infinita da qual nos livramos rindo como Crisipo de Solis, filósofo estoico ao morrer de rir. E se a morte é uma felicidade é senão porque ela põe termo a todo o sofrimento que acumulamos com o tempo de vida e nos pesa sobre os ombros até o momento em que nos curvamos em pensamento como Cronos.
Todavia, estes versos dizem pouco sobre a vida também porque acreditar que a felicidade é esta alegria que resplandece após a morte nos livrando de todo o mal eternamente ou que ela é apenas um momento fugaz de felicidade é algo que nos move em uma direção que só aumenta nossa dor quando tal felicidade não vem ou quando vai embora e leva com ela toda a alegria de nosso ser. Acreditar que a felicidade é um breve momento de alegria na roda do infortúnio que é viver é pensar que a vida se resume a momentos de tristeza sem perceber que se a tristeza é infinita como eu digo, a alegria não é menor do que ela em seus momentos. E que, neste sentido, alegria e tristeza têm a mesma infinitude em nosso ser, são afectos que nos demonstram a vida numa igual medida, equilibrando-se como o bêbado equilibrista cantado por Elis Regina. Afectos que expressam nosso ser como diz Spinoza fazendo perceber que apesar da profunda raiz etimológica e ética das paixões remeter ao sofrer ou ao sofrimento como pathos desde o panteão grego, tais paixões são também alegres, anunciando uma vida romântica que nenhum romântico alemão conseguiu sonhar em sua tempestade e ímpeto ao submeter a vida a uma Ideia absoluta, o sinônimo de felicidade para os românticos, que é já destituída e destituidora da vida remetendo o amante sempre ao sofrimento, a dor e à morte, como o jovem Werther.
Ver a vida como uma alternância de afectos como Spinoza é o que também faz Sócrates, quando livre das correntes que o aprisiona percebe como alegria e tristeza andam sempre juntas em nossa vida, uma sobrevindo a outra constantemente e não se pode pensar numa sem já pensar na outra. E deste modo nos alerta que a vida diferente do que nos remete a musica, e a filosofia muitas vezes, se é uma tristeza infinita é senão alternada por uma alegria infinita a cada instante. Por mais que Sócrates seja morto por Platão em sua filosofia de vida, o primeiro de muitos parricídios na história da filosofia, submetendo a filosofia a uma preparação para a morte e não para a vida e a alegria irônica que Sócrates sente no momento em que desacorrentam suas pernas ainda doloridas anuncie já a morte como alegria em relação ao seu sofrimento de estar preso ainda nesta vida, da qual já se demonstra cansado.
Contudo, apesar de Platão submeter Sócrates à sua felicidade eterna enquanto Ideia, podemos pensar que tudo não passa da última ironia de Sócrates, aquela que diz o contrário do que diz, e é assim que à dor infinita de morrer, ele faz sobrevir à véspera de morrer a alegria de viver os últimos momentos de sua vida, feliz como Crisipo, rindo da morte que lhe sobrevêm, pois nem mesmo ela há de tirar dele a alegria de viver a vida como um copo d'água bebida até a última gota feliz por existir e não por negar a existência devido sua dor e sofrimento, ainda que esta existência seja insípida, inodora e incolor como a água num copo d'água, meio cheio e meio vazio, de tristezas e alegrias até o fim.
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