Ser pai e não padrasto


Ser pai não é uma tarefa fácil, desde Laios ou bem antes dele, com Céu, Cronos e mesmo Zeus, pois nem mesmo os bondosos deuses escapam da difícil e muitas vezes ingrata tarefa de ser pai e não padrasto, como diz o dito, mas que no fim da história não faz muita diferença.

Ser pai e padrasto não é diferente, pois o filho é sempre de outro, no caso, da mãe. É a ela que é devido a vida do filho e mesmo as ofensas que só fazem sentido com ela e não com o pai. Ser pai e padrasto dão sempre no mesmo ainda sua diferença seja intrínseca porque em nenhum dos casos o filho é gerado por eles, apenas assumido como na tradição antiga de muitos povos de deposição do filho na terra para que o pai o levante reconhecendo a paternidade ou deixe ele lá negando-a. O que disto se conclui antecipadamente senão que ser pai, ou padrasto, é assumir o filho de outrem, consequentemente, assumindo assim mesmo a condição de pai, e esta é a condição da história segundo as religiões há muito tempo como diz Mircea Eliade em Tratado de história das religiões:

O pai não é pai dos seus filhos senão no sentido jurídico e nunca no sentido biológico do termo. (...) O pai humano nunca faz mais do que legitimar tais filhos por um ritual que possui todas as características da adoção. (ELIADE, 2008, p. 197)

Ao assumir a condição de pai, o homem deixa de ser homem no sentido másculo do termo, pois é necessário que ele demonstre afetos que historicamente não lhe condizem e, no caso de filhos homens, é preciso que estes afetos sejam ainda mais negados, pois afetos amorosos entre homens não é coisa de macho. Com filhos homens se deve ensinar desde cedo a jogar, em particular, o jogo da vida, o jogo das duras penas de viver, para que o filho aprenda a realidade, algo que uma mãe obviamente pode fazer hoje em dia, obrigada assim como o pai a trabalhar, até mesmo pela ausência deste, mas sem saber o que é a condição de ser pai assumindo a obrigação da opressão de ser homem. A opressão que muitos pais repetem com os filhos por terem sido filhos de um pai opressor que alguns assumem como dádiva divina, a de oprimir os filhos por terem sido oprimidos pelo pai, deus, um dia.

Em seu texto Carta ao pai, Kafka atualizou sobremaneira o que é ser pai no sentido tradicional do termo, qual seja, o da opressão. Suas palavras como filho deveriam ser ouvidas por todos os pais que como Céu, Cronos, Zeu, e sobretudo Laios, pensam que sua grande tarefa é ser para os filhos um exemplo de vigor másculo, impondo a eles a realidade das penas, toda a violência da jurisdição paterna para que aprendam a viver sem afetos, ou ainda, viverem sem pai. Ao lermos o texto de Kafka todos os homens que não seguem o bom manual da conduta e doutrina masculina se sentem representados e mesmo aqueles que seguem a cartilha ensinadas pelos pais são também representados, ainda que não admitam, ainda que não admitam seus afetos amorosos, sensíveis, vulgarmente conhecidos como coisas de mulher e não de homem. Isto porque todo homem, como filho, busca um reconhecimento do pai, aquilo que não se busca com a mãe em relação a qual já se tem de antemão, por toda a simbologia da maternidade telúrica em questão.

Se ser pai é assumir-se como tal ao assumir o filho, ser filho é sempre buscar este assumir, este reconhecimento paterno, muitas vezes não vindo em vida, muitas vezes sentido com dor e angústia diariamente como Kafka. É senão muitas vezes como ele que muitos filhos se submetem a pais opressores em busca deste reconhecimento e muitos repetem esta opressão aos filhos com orgulho para que rendam a ele este reconhecimento, pois é difícil a tarefa de ser pai sem ser opressor, sem assumir a tarefa de ser rei, juiz, de impor a força da lei paterna, dos homens, ou ainda, de um deus a qual se investem muitos pais.

Ser rei, juiz, deus, todo poderoso é a condição de ser pai para muitos homens que se investem de uma armadura para lutar uma guerra quando assumem então esta tarefa sem questionamento. Uma guerra, no caso, contra os filhos e como toda guerra sempre perdida, sempre sem vencedores, como a de Laios contra Édipo imortalizada por Freud e a psicanálise na mente de muitos como uma lei natural, o complexo de Édipo que é antes senão o complexo de Laios, o complexo da perda do poder, de ser rei, de ser Deus, todo poderoso, e assumir ser mortal, saber que vai morrer. Pior, assumir que que esta morte pode advir de seu filho como um destino inevitável e como algo mesmo inesperado, posto que advinda de quem ele menos imagina, mas também como um acontecimento fortuito como no caso de Laios quando, enfim, sua vida cruza com a de seu filho Édipo a quem tentou matar e este lhe retribui a tentativa de morte com a pena de morte mesma. Uma vingança branda, mas ainda assim uma vingança pelo que seu pai lhe fez, mesmo Édipo não querendo fazer isto a seu pressuposto pai, no caso, padrasto, o rei de Corinto. Uma vingança ou justiça que não podia deixar de fazer ao pai, a quem lhe devia esta dívida, sua herança de opressão paterna para que ele viesse a ser opressor paterno também, rei e juiz, mesmo que ele não quisesse ser, mas este era o seu destino...

Mas talvez não fosse se Laios não tivesse mandado matá-lo ao saber do oráculo o que este faria consigo, se tivesse escolhido não exercer o poder opressor de pai, de homem da família, de rei, de deus, se não tivesse medo de ser mortal e da morte, de perder o poder sobre a própria vida em nome de outro, por amor ao outro em vez de amor a si mesmo em sua arrogância infinita. Obviamente a história seria diferente e o fim não seria trágico trazendo uma catarse teatral esperada por todos aqueles que esperam com o teatro verem a si mesmos representados em sua dor e dilema humano. Mas talvez este tenha sido senão o grande erro de Freud e de todos os psicanalistas ao acreditarem no complexo de Édipo sem se perguntarem sobre o complexo de Laios, nem mesmo questionado por Deleuze e Guattari quando ao complexo de Édipo opõem as máquinas desejantes dos anti-Édipos, quando culpam o pai paranoico capitalista que leva o filho à paranoia, condição de toda normalidade social disciplinar e de controle, ou à esquizofrenia, indisciplina e descontrole de toda a máquina desejante fazendo de um modo ou de outro a máquina desejante funcionar quebrada de modo inconsciente sempre de modo traumático. Mas ainda assim Deleuze e Guattari estão certos em dizerem que o problema não está em Édipo e, sim, em Laios, no pai e não nos filhos, não deixando margem à duvida de que Laios é o culpado para além da tragédia teatral, na história mesma.

Contudo, mesmo concebendo que Laios é o culpado, ainda assim é ao filho que se diagnostica, eis o problema de toda psicanálise e esquizo-análise, pois se para esta a culpa não é do filho que não introjeta o papel de pai, de poder e de toda normalidade necessária para a sua existência social no complexo de Édipo, sofrendo a dor e a angústia por não conseguir isto, se esta culpa é do pai também para a esquizo-análise não é este o diagnosticado, tendo em vista que a normalidade do pai não é posta em questão ainda que seja paranoica. Assume-se que o pai é opressor e luta-se contra ele e tudo que representa a paternidade para destituí-lo do poder e assumir o complexo de Édipo, agora, porém, sem culpa por matar o pai em sua ascendência divina como deus todo poderoso. E deste modo não se escapa ainda da difícil tarefa de ser pai sem ser rei, juiz, deus, todo poderoso, não mais por não ter medo de morrer, mas por não ter medo de matar e assim vencer a batalha entre pai e filho em seu inconsciente e na vida, vencer o complexo de Édipo por meio de um anti-Édipo: matar o pai sem culpa.

O grande erro da psicanálise com seu complexo de Édipo e mesmo da esquizo-análise com seu anti-Édipo é acreditar no teatro de Édipo como se ou que fosse a realidade imanente. Acreditar que toda a tragédia de Édipo fosse vivida ou deva ser a vida destinada a todos nós, pais e filhos, da qual no fim não há escapatória, não há saída para além das duas alternativas, a paranoia ou a esquizofrenia, a normalidade ou a anormalidade. Enfim, acreditar no mito de Édipo por analogia ou por imanência desta analogia, levar ao limite a semelhança entre o mito e a realidade, como se esta semelhança fosse mesmo a pretensão do teatro grego ou da tragédia grega atribuindo a ela a função de catarse social como diz Aristóteles, como se todos tivessem intimamente uma relação com o mito de modo transcendente ou imanente.

Acreditar no mito de Édipo é acreditar assim que o fim da história é sempre assumir ser pai, rei, juiz, deus, todo poderoso e que nenhum homem pode escapar deste empoderamento, e hoje em dia nenhuma mulher. É assumir que a história é tal como o teatro trágico apresentado por Sófocles e, antes dele, melhor ainda por Hesíodo, e por todos os mitos cuja razão de ser é a crença de que são a realidade e que dependem mesmo disto para existirem inconscientemente. Como a crença de que ser pai é ser a representação da opressão, realizar a história da opressão para além até mesmo do fim da história. A crença de que o teatro mítico apresentado é a própria vida ou ainda a vida ser vivida historicamente como se a ela não houvesse escapatória, como o destino de Laios traçado no momento em que ele soube que ia ser pai e que seria morto pelo filho e não tivesse outra escolha a fazer senão a opressão a ele para se manter no poder, para não perder o poder para o filho, para não assumir que é mortal e não um rei, juiz ou deus todo poderoso.

Segundo o mito, portanto, todo pai teme o poder dos filhos, é o que mostra Sófocles e antes dele Hesíodo, e em muitos outros mitos a história se repete. Por este temor muitas vezes também os punem de modo atroz. Ter um filho é deste modo sempre temeroso para um pai como demonstra a história e o costume antigo do pai assumir o filho levantando-o da terra, quando homens temendo que os filhos não sejam deles os deixam ele na terra não os reconhecendo e, assim, não querem correr o risco de perderem o poder para um filho bastardo. Um temor do filho ser bastardo e dele advir a morte como se ela não sobreviesse de um filho biológico repetindo o dito de melhor ser pai do que padrasto, como se o mito de Laios não nos mostrasse que a condição de pai de um filho biológico não faz escapar da perda de poder e da morte.

É tão somente de um ponto de vista histórico que se é pai ou padrasto portanto, ainda que toda a biologia afirme os laços de sangue confirmados hoje em dia por DNA. É deste ponto de vista histórico que é difícil assumir a tarefa de ser pai, pois a história é a representação mítica dos pais em seu poder paterno, másculo, real, jurídico, divino. De um pai que não é mãe, que nunca vai ser mãe, dizem orgulhosamente muitas mulheres, e muitos homens aceitam esta condição com orgulho maior se tornando pai apenas no nome ou no papel sem estabelecer laços amorosos com os filhos.

Acreditar que a história deve ser tal qual na representação mítica de muitos pais dita comprovada pela própria história é o grande problema de ser pai ou padrasto, o complexo de Laios, e não acreditar nesta história a difícil tarefa de não ser este pai e não edipianizar o seu filho, isto é, não o tornar um pai opressor paranoico com medo da morte e caso não seja, o submeter à pena, à punição da morte mesma, ou ainda, da culpa, do ressentimento, da vingança ou da esquizofrenia quando isto não ocorrer. É a grande dificuldade que se tem de perceber que a tragédia teatral não é a vida e que não se busca com ela uma identidade com a vida por meio de uma catarse que faça se viver melhor por se ver representado nela ou que, identificando-se com ela, se viva como ela e se repita a cena na realidade histórica ainda que de modo diferente, como Édipo que se torna Laios mesmo inconscientemente. Enfim, a grande dificuldade de acreditar que a história pode ser diferente de como ela é apresentada e que ser pai não é ser opressor, se tornar opressor dos filhos ou de todos na Terra, que ser pai é assumir a difícil tarefa de mudar a história, de transformar o dito, de não ser homem, deus, todo poderoso, de aceitar a morte, ainda que ela venha de um filho, enfim, de ser mortal.

Não ser Laios, eis a difícil tarefa de ser pai ou padrasto. Não repetir o mito e o dito historicamente. Assumir a tarefa de mudar a história e tudo que nela se repete entre pais e filhos para que ela seja diferente, sempre diferente, sem exemplos de que deem conta de sua realidade. Ser pai é amar um filho sem que este realmente nunca lhe venha a amar. É levantá-lo da terra segundo o costume sem medo do que lhe possa acontecer ajudando-o a viver nela da melhor forma possível durante toda sua vida. Ser pai é ter um filho não como sua posse, como alguém submetido ao seu poder, que lhe seja semelhante, e sim como alguém que você deve amar mesmo que venha a ser diferente de si e venha a morrer por ele, amor que Laios podia ter dado a Édipo vivendo o máximo de tempo com ele para que o fim não fosse trágico e o que todos nós, pais, devemos fazer se que não queremos repetir o mito, dito, e a história repetida há muito tempo a partir dele, pois é preciso não edipianizar seus filhos como Laios, ainda que isto seja extremamente difícil por sermos visto como pais ou padrasto sempre no fim da história.

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