Kháos e a separação das águas


Separações nunca são bem vistas. O ato de separar ou se separar é, em geral, visto como negativo, algo que afeta a todos de um modo triste, fazendo-os perder a perseverança, o ânimo de viver. Separar-se é um doer, um afeto que pode vir de dentro ou de fora, mas que é sempre visto como uma paixão triste.

O motivo pelo qual as separações são paixões tristes parece óbvio: a união que sempre se coloca em sociedade como um princípio natural, familiar, civil e religioso. Separar ou se separar é ao tempo romper com estes vínculos ao mesmo tempo ou com algum deles em particular, mas não importa com o que se separa neste caso, pois a separação é vista como uma desunião. Vista deste modo a separação é o oposto da união e esta mudança analógica de palavras entre separação e desunião cria uma diferença absoluta entre separação e união e faz da separação ser vista negativamente.

A tristeza que se sente ao se separar de algo ou, principalmente, de alguém, é a tristeza desta desunião, de ver que aquilo que estava unido agora foi desunido. Isto porque a desunião não é uma simples separação, ela é o resultado de um conflito entre duas pessoas, no mínimo, de um litígio cuja consequência inevitável é a separação vista com tristeza por causa deste conflito. A união pressupõe uma harmonia que se desarmoniza com a desunião e a separação é vista outrossim como esta desarmonia. Todos os pressupostos bons em relação à união, enfim, são contrapostos aos pressupostos maus que a desunião comporta em si e que são transpostos à separação.

Não há como evitar esta metafísica colocada à separação por meio da ideia de união que a transforma em desunião. Há todo um logocentrismo que faz da separação algo negativo e, mais ainda, algo que dói por todos os lados. Tal metafísica logocêntrica ao fazer da separação uma desunião causa, portanto, um dor pungente que assola o ser e o sucumbe muitas vezes em ressentimento pelo outro e culpa por si mesmo, entristecendo-o quase sempre.

A tristeza por uma separação é um momento em que o ser se compele ao seu íntimo desunido daquilo ao qual estava unido até então e a separação se aprofunda no seu eu separado, pressupostamente, de tudo. É um desfazer de laços antes estabelecidos que o eu contempla em seu íntimo com dor e a perda deixa de ser a perda de algo para ser a perda de si mesmo em relação a tudo a que ele se unia. Não importa a perda que se tenha com a separação, ela sempre é sentida pelo eu como a perda de si mesmo em relação aquilo que se perde, pois o que se perde, no fim, é o eu unido ao outro, qualquer que seja o outro. É a união do eu com o outro que se perde com a separação vista como desunião e a perda da união do eu com o outro é uma dor profunda pois é a perda da própria realidade vista a partir desta união que ao se desfazer por uma desunião, a separação, abre um nada no qual o eu se distancia cada vez mais do outro e de si mesmo.

Quando se pensa a separação como uma desunião é todo um processo de pensamento triste que se faz presente em relação ao ser desunido ou separado daquilo ao qual estava unido. Neste sentido, uma petição de princípio, que é o princípio de toda metafísica e de todo logocentrismo, faz toda a diferença ser negativa. A petição de princípio é a própria união vista como boa ou necessária que faz com a que a diferença dela ou em relação a ela seja vista como má, no caso, como desunião. Por sua vez, a consequência desta desunião, que é a separação, tende a ser vista como negativa e, sobretudo, má enquanto contraposta à união.

Qualquer possibilidade de separação tende a ser mal vista na medida em que ela é pensada como uma desunião a partir de uma união tida como princípio de nossa vida natural, social, familiar, civil, religiosa. A separação é a pena, o sofrimento, a dor, o castigo mesmo a ser imposto aquele que ao se separar, desune a união e faz do eu não mais unido o outro. A separação é vista, então, como um ato egoísta no qual o eu ao separar-se do outro ou ao separar outros volta-se para si mesmo e não se importa mais com o outro, em trocar ou compartilhar com ele uma economia de afetos por meio de uma união. A separação enquanto desunião é a negação da própria união econômica de afetos entre o eu e o outro em sociedade, no caso.

É intolerável do ponto de vista da união que se desuna e esta intolerância faz da separação algo mal visto, uma negação, a maldade travestida em dor e sofrimento, ressentimento e culpa, castigo e pena. Não se tolera que se separe, quem se separa, pois separar é desunir, é negar o outro pressupostamente a partir do momento em que o eu se separa dele, desfaz a união. A relação entre separação e desunião é uma relação que faz da separação uma dor produzida pelo eu ao outro com o qual se unia, um ato de violência sentida intimamente pelo outro. Mas algo acontece quando se separa, pois a separação não é simplesmente o resultado de uma desunião, ela se faz o contrário desta mesma e, contrária à desunião, não se opõe à união, não a nega absolutamente e não é a separação em si mesma um ato negativo como o ato de desunir pressuposto a partir da união com o qual ela é comparada analogicamente.

A separação contrariamente à desunião não é um conflito do eu com o outro a partir da união deles. É a cessação deste conflito, pois diferente da desunião que ainda é um conflito pela união do eu com o outro em suas diferenças, a separação não é um conflito, mas a superação deste e, consequentemente da união que o gera a partir das diferenças, elas mesmas vistas como negativas na medida em que são vistas a partir do princípio de união, e podem ocasionar a separação. A separação não é um mal como a desunião, nem é uma tristeza a partir dela, ou algo negativo em sua ação. O ato de separar ou separar-se é um ato de libertação em relação ao conflito mesmo entre união e desunião ao qual a separação põe senão termo ou um meio-termo ainda que nunca preciso em relação aos afetos.

Tomada em si mesma em seu princípio de ação, a separação não é uma desunião nem uma união. Nela, eu e outro se separam e ao mesmo tempo permanecem ligados num a-partamento espacial e temporal do ser em sua existência. A separação é, paradoxalmente, uma ligação neste a-partamento do ser em sua existência no espaço e tempo não mais unido ao outro em seu eu, mas ligado a ele separadamente, na separação e por meio dela. Eu que assim separado e ligado ao outro não mais o nega e nem se nega perante o outro numa dialética constante no espaço e tempo.

Separar ou separar-se não é negar a união, tão pouco afirmar a desunião entre o eu e o outro, é pensar diferente e a diferença da relação do eu com o outro, que não seja a dialética da união/desunião na qual todo dor e sofrimento, ressentimento e culpa, pena e castigos são produzidos por não se admitir a separação. Separar ou separar-se é um a-partamento em relação à toda uma prisão metafísica e logocêntrica de união natural, familiar, civil e religiosa tidas como princípios da existência do ser no mundo e na realidade que o entristecem e o sucumbem ao nada quando há uma desunião, que se faz presente na ausência da união.

Não há, por fim, tristeza na separação quando ela não é mais vista como uma desunião do eu com outro, mas como uma ligação do eu com o outro sem união e desunião, como um a-partamento. Pois a tristeza da desunião não faz parte da separação na medida em que esta é ainda uma ligação do eu com o outro, mas agora diferente em suas diferenças, sem uma identidade natural, familiar, civil ou religiosa que os una e os desuna cotidianamente. O que há, por fim, na separação enquanto a-partamento, é a alegria de viver do eu com o outro separados e ligados ao mesmo tempo no mundo e na realidade pelas águas que tomam caminhos diferentes quando kháos, o princípio grego da separação e ligação ao mesmo tempo de tudo no kósmos, se faz presente.

Kháos o princípio de todo a-partamento, para além da dor e sofrimento, culpa e ressentimento, pena e castigo, sem lamento.

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