O golpe do impeachment


Há pouco mais de um ano o Brasil teve o seu segundo impeachment de um presidente democraticamente, no caso, de uma presidenta, a primeira eleita também democraticamente. Contra ela pesou o crime de usar ilegalmente recursos financeiros pagar pagar contas e deste modo manipular ilegalmente a economia do governo. À época, um crime tão difícil de ser demonstrado como hoje ainda o qual muitos vão lembrar apenas pela sua alcunha de pedalada fiscal, tentar burlar de algum modo as contas financeiras do Estado, não importa se tal burla fosse para manter o maior programa social do país, o Bolsa Família. Era ilegal, foi contra lei e a presidenta não podia ser contra a lei, nem com as melhores intenções, era este o discurso legalista e técnico em respeito à Constituição que se fazia há pouco mais de um ano mesmo que fosse e ainda seja, deva ser, denunciado como um golpe.

Pouco mais de um depois do impeachment, o Brasil está em vias de mais um, agora do vice-presidente de Dilma, Michel Temer que se ressentia na época de ser apenas "decorativo", mas que com a saída de Dilma do poder passou talvez para alguns a não ser sendo presidente de fato e de direito, contudo, para 95% da população, não ser dando-lhe a alcunha de "golpista" e não mais de decorativo. Golpismo, ademais, foi o que muitos viram no processo de impeachment e denunciaram à época dele em oposição àqueles que a queriam tirar do poder e que hoje, de certo modo, é também denunciado pelo então "presidente" Temer não como uma tentativa de golpe, mas de desestabilizar o país e a nação que ele diz ter salvado da crise. Em outras palavras, querendo dizer que o seu impeachment Ã© diferente do Dilma não é algo legal, não é algo que se deva fazer que é algo que tecnicamente não se deveria fazer tendo em vista que, para ele, a economia vai bem, sem pedalada fiscal, com todas as medidas necessárias para se manter em seu desenvolvimento.

Contudo, contra o então presidente Temer pesam crimes muito mais graves do que contra a presidenta Dilma que são de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de Justiça, crimes intoleráveis cometidos por um agora não mais decorativo presidente da república posto que foram cometidos para o benefício particular e não o público, diferente, por exemplo, do crime de Dilma que, ainda podia se defender dizendo que foi em prol dos pobres. A favor de Temer aos olhos da lei não há nenhuma defesa e aos olhos da Constituição tão defendida pelos deputados e senadores há mais de um ano, não haveria nenhuma salvação. Temer tem que sair do poder, tem que ser realizado o seu impeachment, isto é, o seu impedimento de ser presidente do maior país em extensão da América Latina, mas que se tornou o menor politicamente justamente por conta da pequenez dos seus políticos em seu jogo de poderes ao estilo Game of Thrones ou House of Card.

A luta pelo poder, porém, só é entusiasmante na ficção, pois na realidade, as vidas em jogos dão um tom de tragédia crescente. Na realidade, o que se viu com o impedimento da presidenta Dilma há um atrás foi literalmente um golpe que o possível e provável não-impedimento de Temer apenas confirmará. Mas o que nos leva a afirmar que o dispositivo do impeachment que consta na Constituição é um golpe, isto é, algo que não faz parte dela, no caso, do jogo político que ela estabelece entre todos aqueles que fazem parte de um país? Qual a diferença entre impeachment e golpe?

Quando olhamos para o passado e resgatamos minimamente os discursos efusivos em nome de Deus, do país, da constituição, da nação, da ordem e do progresso, da família, da democracia, contra a corrupção, contra o PT, contra a instalação do comunismo no Brasil... que foram desferidos por aqueles que defendiam o impedimento da presidenta da Dilma, podemos ver como a diferença entre golpe e impeachment Ã© algo pouco visível e mesmo circunstancial, dependendo de uma mudança de perspectiva sutil no modo como se fazem estes discursos, isto é, no modo como eles se tornam válidos. Isto porque se estes discursos em nome de todas estas instituições e em defesa delas tinham o objetivo claro de impedir Dilma de ser a presidenta do país, estes mesmos discursos têm hoje o objetivo de impedir o impedimento de Temer ser o presidente do país. Em outras palavras, o crime de Dilma de pedalada fiscal era indefensável ao contrário do de Temer, mesmo que aos olhos da lei e do seu rigor técnico tão defendido há mais de ano seja crime do mesmo modo, e pior, Temer cometendo um crime mais grave do que ela.

Por que, então, Temer é tão defendido pelos deputados e senadores diferentemente do que foi Dilma? Por que seu crime é tão defensável perante a lei ao contrário do dela? Por que os deputados e senadores, e toda uma parcela da população que foi às ruas a favor do impedimento de Dilma não está indo às ruas para impedir Temer de ser presidente?

Há de certo uma questão de gênero aí discutida desde a primeira eleição de Dilma quando a grande questão em meio a ela foi senão uma questão de gênero, qual seja, chamá-la de presidente ou de presidenta? Sabemos numa análise de discurso que sua derrocada começara aí, nos mínimos detalhes que faziam parte do seu governo eleito a partir do apoio do presidente Lula e sob a desconfiança geral de todos que a desconheciam e que não a consideravam à altura de ser a sucessora de Lula. Sobre Dilma pairava como suspeita a questão de gênero, mas também a questão de não ser capaz de gerir econômica e politicamente o país e ao menor sinal disto na economia, tais suspeitas se tornaram verdades políticas.

A diferença entre golpe e impeachment está justamente nisto que podemos chamar de verdades políticas, as que foram negadas no impedimento de Dilma e não podem mais ser negadas agora em relação a Temer. Tais verdades políticas são as verdades criadas para se impedir alguém de se manter politicamente, são aquelas verdades ditas para derrubar o oponente no jogo político, não importa realmente se esta verdade diga ou não respeito aos fatos, vão verdades discursivas, verdades ditas para comover alguém a acreditar nelas e compartilhar do mesmo discurso, da mesma verdade. São verdades que tem em vista a comunhão, não necessariamente a união de todos, isto é, todos comungam com ela mesmo que desconfiem que não seja verdade. Foram estas verdades políticas manifestas desde a primeira posse de Dilma que a derrubaram quando ganharam força política suficiente para tanto e são estas mesmas verdades políticas que muito provavelmente não vão fazer o impedimento de Temer.

O problema é que as verdades políticas dependem de quem as afirma e, neste caso, deputados e senadores as usam não para impedir Temer, mas para não-impedir ele de governar. O que mudou foi que a verdade agora que era válida para impedir Dilma agora é válida também para não-impedir Temer demonstrando como ela é senão política. E é neste ponto que justamente o impeachment de Dilma foi um golpe, um duro golpe, mas não o maior golpe desferido pelos seus opositores à época que já eram os defensores de Temer hoje. Golpe porque no que diz respeito às verdades políticas o que interessa não é a Lei e a Constituição e tudo aquilo em nome do qual foi feito o discurso que era apenas decorativo como o vice-presidente Temer na época. O que interessa numa verdade política é o senão o interesse de golpear usando mesmo a lei para isto, que é o que Temer tem feito a todo instante. Não a lei da Justiça, perante a qual ele não tem defesa, mas a lei da injustiça, a lei que vai à margem da Justiça quando esta se torna falha, totalmente falha em coibir todo o jogo político de se exercer, quando ela não exerce o seu papel de ir contra o poder de um governante de se exercer indevidamente, quando ela se limita apenas a uma questão técnica.

O impeachment de Dilma foi um golpe porque a verdade não prevaleceu de fato, apenas uma verdade política, o interesse em jogo com o objetivo de golpear ela e o PT que estava no poder e que é o mesmo interesse de agora em manter Temer no poder, senão mantendo o golpe, pois tirá-lo do poder seria assumir uma verdade que já não é mais política, uma verdade que é a dos fatos e do direito: Temer não pode ser presidente, um criminoso não pode ser presidente de um país, um criminoso não pode ser o símbolo da lei de um país. Mas nada disto importa para a política, a verdade dos fatos e dos direitos não é válida para a política como verdade política a não ser que sirva aos interesses políticos e não é de interesse dos políticos do Congresso Nacional fazer o impedimento de Temer, é preciso mantê-lo como, agora, presidente decorativo até as próximas eleições para fazer as reformas econômicas necessárias que se necessitava antes e foram possíveis senão quando Dilma foi impedida de fato de governar, bem antes de ser impedida de direito.

Não era de interesse político que Dilma governasse o país deste sua primeira eleição, nem mesmo de grande parte de seu próprio partido, o PT, mas é de interesse político que Temer governe, mesmo que seu crime seja mais indefensável perante a lei do que o dela, eis a verdade política, eis o golpe do impeachment em todos nós brasileiros. Não importa os fatos, é esta a verdade que vai prevalecer, a verdade do discurso político, aquela que há muito tempo se diz num linguajar cotidiano, a verdade para inglês ver, em inglês, impeachment que nada mais é do que um golpe e como todo golpe injusto, mas que foi colocado ali na lei justamente para ser um golpe que pode ser dado a qualquer hora quando não se quer alguém no poder, mas é preciso a força de uma verdade política para dar. Algo que justamente não se tem hoje, nem se vai ter em tão breve tempo, não porque brasileiro tem memória fraca, mas porque ele tem uma memória seletiva, aquela que seleciona muito bem os fatos que quer lembrar, principalmente os fatos que demonstram que ele está certo, sempre certo no final da história comungando assim da verdade política do país historicamente onde muitos acreditam no discurso mítico em vez de um discurso dos fatos, por exemplo, sobre a Ditadura Militar e tantos outras defesas míticas da nação, da ordem e do progresso, da família, de Deus que tão pouco são verdades de fato e de direito.

O impeachment, neste sentido, é um golpe desde que foi inserido na Constituição como forma de destituir aquele que não se quer no poder, não pelos seus crimes, mas porque ele não comunga da verdade política mais, isto é, não é mais de interesse da verdade comungada pelos políticos em seu discurso e todos aqueles que acreditam nele. Foi o caso de Dilma, não é o de Temer. O impeachment é golpe que os políticos inseriram como justo, mas que não tem relação direta com a justiça, posto que o crime por si só deveria impedir um presidente de governar e posto que um criminoso, logica e tecnicamente, não pode ser representante legal de um povo, que não seria então um povo e, sim, um bando. Bando de bandidos, o que seremos se Temer continuar como presidente, um bando governado por um bandido segundo os crimes de que é acusado no que diz respeito à verdade da lei da Constituição, mas não no que diz respeito à verdade política, pois em relação a esta quem disse que bandido não pode ser político? Pode, contanto que não seja do PT, da esquerda e, claro, comunista.

O impeachment de Dilma foi um golpe, mas não maior do que o golpe do impeachment de Temer na medida em que ele não for impedido de governar, pois o que define o impeachment como golpe é senão ele não ser justo, isto é, não ser em favor da justiça e, sim, da política. Foi assim com Dilma, será assim com Temer, pois em nenhum dos casos é a lei que está sendo defendida de fato e de direito, mas tão somente um jogo de poder a partir dela. Não é a verdade da lei que está em questão, mas apenas o uso dela por uma verdade política, pois em termos de verdade política não importa os fatos e suas leis, apenas o discurso sobre eles perante a lei, pois em nenhum momento se impediria um presidente de governar simplesmente por um crime e se permitiria outro por um crime maior ainda se não fosse simplesmente por uma verdade política, a do golpe do impeachment.

O golpe do impeachment é, enfim, o pior de todos os golpes, aquele que faz os brasileiros acreditarem que é a verdade da justiça que está em questão, quando o que está em questão é tão somente uma verdade política.

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