O princípio ético do amor

outubro 29, 2017
Imagem do sol se pondo na praia de Iracema em Fortaleza quando eu e Isadora Pio nos encontramos pela primeira vez.
Amar é uma coisa séria, mas muitos pensam que é brincadeira, algo de momento que não envolve decisão alguma, apenas emoção, desejo, paixão, loucura. Quem ama, porém, toma a decisão mais séria de sua vida e não se trata de querer casar com alguém, o fim último dos relacionamentos sociais depois da curtição do crush, do ficar, do namoro e noivado. Pois amar não é estabelecer laços sociais e, sim, afetivos com alguém para a vida toda.

Quem ama se entrega a alguém por amor, eis o princípio ético do amor. Entregar-se a alguém é render-se ao que sente por alguém em qualquer sentimento que seja, é render-se à vida como diz Clarice Lispector, sem se preocupar em entender, pois viver ultrapassa todo entendimento. Contudo, diferente de muitos sentimentos que nos levam à destruição de alguém por raiva, rancor, inveja, ódio, vingança, afetos movidos pela tristeza relacionados à ausência do amor ou a perda dele, ou que levam a uma empatia por alguém no caso da amizade nos entregando a afetos momentâneos de alegria, o amor não é um afeto momentâneo, mas duradouro. Ele não afeta o nosso corpo simplesmente como os afetos da alegria e tristeza, ele afeta o nosso ser, por isso é tão sério.

Afetar o ser não é uma modificação do corpo, tão pouco da mente simultaneamente quando sentimos algo físico. Afetar o ser é afetar a sua existência no mundo modificando profundamente quem se é, no caso, para melhor, melhorando sua existência, tornando-o mais próximo da beatitude considerada divina por Spinoza. Este momento de felicidade que muitos confundem com a alegria e que somente acontece quando estamos amando alguém e nunca é algo solitário, mas vivido com outra pessoa, uma única pessoa no mundo.

Podemos amar muitas pessoas na vida e não existe apenas um único amor. Mas o amor é único sempre que nos afeta diretamente a partir de alguém que modifica o nosso ser, muda a nossa existência no mundo. É um acontecimento que envolve toda a existência do cosmo numa ordem perfeita que muitos chamam de destino, mas que é sempre feito de acasos, acontecimentos fortuitos que dizem respeito a inúmeras decisões que tomamos na vida e a modificam em algum momento fazendo tomar rumos incompreensíveis no futuro.

Se o amor é uma decisão tão séria é porque diz respeito justamente a se deixar afetar em seu ser profundamente sabendo que a partir do momento em que decide amar não há mais volta, sua vida vai mudar completamente. Novamente, isto não tem nenhuma relação com relacionamentos sociais de namoro ou casamento. Diz respeito a estar aberto em seu ser para ser afetado profundamente por outro ser e se isso tem relação com uma beatitude divina é porque senão com os deuses que as pessoas fazem isso com mais frequência, se entregando a ele em seu através do amor, não importa o que aconteça em suas vidas, mesmo que de modo fanático, venham a morrer por ele. O mesmo acontecendo no caso dos amores trágicos dos românticos que demonstram como há uma entrega total de alguém a outra pessoa, deixando-se afetar no seu ser profundamente.

Para além da questão divina e trágica, o amor enquanto momento de entrega é uma decisão que envolve um princípio ético, que é o de se abrir para o outro, para o desconhecido, para as incertezas de uma vida agora que não é apenas sua, mas de mais alguém. Uma vida que você vive e não mais decide sozinho. Uma vida que é comum, vivida a dois, a três, a quatro... não importa o nível de relação social que estabeleça. Contudo, uma vida vivida plenamente com o outro ou outros. Os românticos souberam perceber isso muito bem quando elevaram o amor romântico entre duas pessoas para o amor romântico entre muitas pessoas numa nação em uma determinada cultura, quando fizeram do amor um princípio ético por excelência contra a razão que sempre determinou a ética ocidental.

É a partir dos filósofos românticos alemães que o amor se torna, enquanto princípio ético, uma decisão séria tomada não pela razão, mas pelo coração, esta parte do corpo na qual Pascal disse que há mais razões que a própria razão desconhece e Descartes em todo seu racionalismo disse que há um fogo que nos mantém vivos comparado senão à luz natural da nossa mente, a razão. Descobri quais são as razões que o coração dispõe e como o seu fogo pode iluminar a nossa vida é a decisão que tomamos quando decidimos amar e não simplesmente pensamos que amamos, como se o amor fosse um afeto passageiro como a alegria e a tristeza.

O amor como princípio ético não é um afeto involuntário do corpo que sentimos como alegria ou tristeza em nossa mente e que produz lembranças diversas nos fazendo pensar em alguém. O amor como princípio ético é um pensamento que leva em conta todas as alegrias e tristezas por vir e todas as mudanças no ser que elas possam produzir. É uma abertura do ser ao mundo, à vida, à existência no tempo. É abrir o ser ao outro que é tudo isto e ao desconhecido que ele é como por vir sempre inesperado mesmo que se espere pelo que vai acontecer em algum momento.

Abrir-se é o que ninguém quer com frequência e que muitos dizem para não se fazer, pois justamente pode-se ser afetado profundamente pelo amor e isto levar à sua morte, dependendo dos afetos que se sente. Amar é sempre um risco e, por isso mesmo, algo sério. Muito sério na vida de duas pessoas. Não se deve amar sem compreender que este risco existe sempre e que se deve o máximo possível evitar que os afetos tristes provenientes da ausência do amor ou da perda dele o domine e o leve à raiva, rancor, ódio ou à depressão e morte.

Amar nunca leva a afetos tristes, pois eles não estão relacionados ao amor, mas, pelo contrário, à ausência de amor, ao impedimento dele existir entre duas pessoas ou entre várias como reconhecimento de um povo em sua cultura. Por isso mesmo quando estes afetos tristes acontecem, deve-se lembrar dos afetos alegres que existem quando se ama, pois eles, sim, estão diretamente relacionados ao amor na medida em que estão relacionados à presença direta daquele que é amado e das mudanças no seu ser que ele produz trazendo alegria.

O amor como princípio ético é uma decisão que diz respeito à vida, sempre à vida, a um aumento de sua potência, de seu querer viver e nunca de seu querer morrer. Nunca alguém enquanto ama e tem o seu amor em sua presença vai querer morrer, somente quando este está ausente ou é tirado de sua presença por algum motivo. E mesmo que isto aconteça a presença da pessoa na lembrança é ainda um motivo para viver na medida em que o amor continue a ser o princípio ético que rege a vida contra todos os afetos tristes que as outras pessoas produzam naquele que ama considerando o amor um erro.

Amar nunca é um erro e nem nunca vai ser, mas sempre vai ser considerado assim dependendo das convenções sociais que existem em cada sociedade que impõe seus padrões de relacionamento. São esses padrões de relacionamento que definem quando e como se deve amar que fazem do amor um laço social tão fugidio na vida das pessoas que começa e acaba do nada. O amor como princípio ético não começa do nada e não acaba do nada, ele é perene, eterno enquanto dura, e a duração do amor é a vida inteira, pois nunca se ama apenas por uma brevidade de tempo. Mas se pode, obviamente, decidir não amar do mesmo modo que se decide amar.

A decisão de não amar é o contrário, óbvio, da decisão de amar o que demonstra que o princípio ético do amor tem seu oposto que é uma decisão tanto quanto ele. O oposto do princípio ético do amor é o desamor, o desafeto, o não se deixar afetar no seu ser pelo amor, o não se abrir para tudo que ele possibilita de novo, sempre novo a cada dia. Ninguém é obrigado eticamente a se abrir para algo novo a cada dia, a cada ser em sua existência. Pode-se obviamente viver a vida sem nunca se abrir em seu ser para mudanças profundas. Pode-se viver plenamente regrado evitando que nada lhe aconteça de diferente do que quer, que tudo seja determinado em sua ordem tão imutável quanto possível. É uma decisão de cada pessoa.

Assim como o amor abre o nosso ser ao outro, o desamor nos fecha a este outro. O que demonstra novamente que amar é algo sério na vida de alguém. É estar disposto a não se fechar para os outros, de olhá-lo nos olhos e saber que mesmo os olhos sejam as janelas da alma como disse Agostinho, a alma do outro nunca é vista a partir deles, está sempre oculta a nossos olhos não importa o quão profundamente olhemos nos olhos dos outros, pois o ser é intocável. Não podemos senti-lo, apenas, imaginar, pensar, conhecer e acreditar em sua existência de um determinado modo conforme nossa imaginação, pensamento, conhecimento e crença.

A indeterminação do ser do outro é o que se revela quando decidimos amar alguém e que podemos determinar de vários modos, mas nunca conhecer plenamente a não ser por meio do amor e nunca totalmente, mas a cada dia e a cada momento de afeto com ele, deixando-se modificar por ele a cada dia profundamente no seu ser, aberto aos seus pensamentos e desejos. O amar é uma abertura total do corpo e da mente ao outro e todos seus afetos aumentando a potência a nosso ser a cada abertura a ele como a um alimento que aumenta a potência do corpo e da mente. E sempre com um determinado limite que é o quanto o corpo e a mente desejam e pensam, pois o amor como princípio ético tem sempre a vida como um limite que nunca tem a morte como fim, mas que é um fim em si mesmo, algo que se preserva contra a morte mesma dela.

Engana-se quem pensa que a morte é o fim último da natureza e que amar é correr o risco de morrer. O fim último da natureza é a vida sempre a vida, pois a morte não existe na natureza que sempre se renova a cada dia em seu devir. A morte é a ausência da vida presente em sua existência a partir do ser humano. Quando se decide amar e se ama a morte deixa de existir e o que há é o para sempre da vida, da natureza, de algo divino, sempiterno, da existência com o outro. E quando Schopenhauer diz que o amor é uma ilusão da natureza para que haja a procriação, ele está compreendendo ainda que negativamente o princípio ético do amor que é viver com o outro, o princípio da vida que somente é com o outro, o princípio da existência de tudo.

É a vida que a natureza quer que vivamos em sua vontade natural presente em tudo. É a vida que ela quer que compartilhemos com os outros. Uma vida que somente existe compartilhada com os outros a todo instante e a todo momento e que o amor, somente o amor enquanto princípio ético e não uma alegria momentânea por estar com alguém, pode nos mostrar.

Quando decidimos amar, decidimos viver a vida com o outro e não apenas consigo mesmo. É quando compreendemos a natureza (physis) das coisas como pensavam os primeiros filósofos, é quando compreendemos que nada sabemos como compreendeu Sócrates, é quando compreendemos que se a Ideia não é simplesmente a verdade, o belo, o bem e o justo para Platão, somente se pode chegar a ela por meio do amor ao saber e não simplesmente do saber ou da razão, pois nenhuma razão nos leva a Ideia alguma em sua plenitude divina e eterna. Nenhuma razão nos faz compreender o que é uma Ideia no sentido de um Ser em sua existência, apenas o que ele é em sua objetividade ideal como pensa Descarte a partir de seu cogito e Husserl demonstra em sua fenomenologia como acontece isto.

Amar não é uma objetividade ideal, tão pouco uma subjetividade que se torna ideal, pois não é a projeção de si mesmo no outro em determinadas qualidades. Isto é, novamente, apenas o sentimento de amar alguém, nunca a decisão de amar alguém. Pois o que se é nunca se sabe quando se está amando, diferentemente de quando se está pensando, do mesmo modo que não se sabe quem é o outro em seu pensamento mesmo quando está amando. Abrir-se ao outro é abrir-se a si mesmo a cada momento a um desconhecido que é o outro, si e tudo que existe a partir desta abertura. É um encontro consigo mesmo ao mesmo tempo que com o outro e com tudo que é outro, novidade que existe a partir do encontro promovido por esta abertura de si ao outro e do outro a si, mesmo que este outro não se abra totalmente, não o ame como você o ama. Pois o amor não é uma via de mão dupla, mas de mão única na qual cada um deve seguir em direção ao outro neste que é o pior labirinto segundo Jorge Luis Borges, o labirinto em linha reta.

Geometricamente, para falar em termos de objetividade e representatividade ideal, o amor é este encontro de duas linhas retas que se fundem numa só linha e na qual é indiscernível e indecidível qual é a uma das duas e que se enlaçam como fios de um certo modo uma contornando a outra tocando-a produzindo mudanças na outra a todo instante até que algo as separe, sempre mais difícil a cada enlace e que mesmo sendo separadas ainda compartilharão uma os fiapos da outra e seu ser já será modificado completamente pelos nós produzidos entre elas.

Abrir o eu ao nós, eis enfim o princípio ético do amor. Um nós que não é a junção de duas pessoas em sua presença, mas o existir em comum de duas pessoas em uma só, uma como abrigo para a outra em seu ser, totalmente aberta em sua vida ao outro para que ele se abrigue quando quiser. É tornar-se um lar e uma casa para o outro, como a Terra se torna se torna a casa para todos que existem nela e abriga a todos quando já não são mais presentes, não importa se em seu corpo em cinzas. Transformar o corpo em cinza é já tornar o corpo terra, é já compreender que a natureza da Terra é o acolhimento de todos os seres em sua vida e em sua existência no tempo para sempre.

Assim é o amor enquanto princípio ético, como a Terra, o acolhimento de todos os seres em sua vida e em sua existência no tempo para sempre, principalmente aqueles que em particular amamos em nossa existência e que nunca esquecemos, assim como nunca esquecemos a Terra, por mais distante que o navegante dela se distancie como canta Caetano Veloso a Terra, o nosso amor por ela, o nosso amor por alguém em toda sua plenitude como princípio ético com quem queremos ser feliz para sempre, independente do espaço e do tempo, e de todas as circunstâncias que nos impedem de amar um ao outro ou uns aos outros.

Uma história de amor nunca tem fim, apenas começo, para quem decide amar.

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