O Brasil depois do golpe e a revolução
Parece óbvio agora, como já era antes mesmo que não percebido nas paixões políticas ainda arrefecidas, que as condições sociais do Brasil depois do golpe não podem mais ser revertidas. O curso da história do Brasil de 500 anos segue novamente sua ordem e progresso definidos como lemas há uma centena de anos atrás. Mais uma vez as expectativas revolucionárias de melhoria social no Brasil foram destruídas a golpes, mas não a golpes de martelo como gostaria Nietzsche, nem de martelos e foices como gostariam Marx e Engels, pois a realidade brasileira definitivamente não é a europeia que ensejou tantas revoluções e executou-as tão bem em um determinado período de tempo.
As condições sociais e históricas do Brasil atual demonstram claramente que não adianta ter a consciência histórica, social, política e mesmo filosófica europeia para os brasileiros serem europeus e fazerem uma revolução como eles fizeram. Na verdade, este é o grande problema para que uma revolução aconteça no Brasil, a consciência europeizante que limita qualquer pretensão dela de fato ou por direito, de modo imediato ou mediatamente no tempo, somente possível com a utilização de uma força sobre-humana para isto, ou seja, por meio de um poder social muito intenso, tendo em vista que quem está no poder não vai querer sair fácil dele e usará todas as armas possíveis para manter a ordem e o progresso de seu poder. O que isto já foi demonstrado muitas vezes na história do Brasil desde a colonização e ficou patente isto com o golpe militar de 1964 e, mais recentemente, com as investidas policiais contendo qualquer levante social por meio de um aparelhamento militar muito além do necessário para contê-lo, com a demonstração da força do Estado para manter a ordem e o progresso continue tal como no período da Ditadura Militar.
Se existe uma falácia que é extremamente difundida há muito tempo no Brasil é o lema da bandeira brasileira definida pelos militares republicanos com base na filosofia positiva francesa de Auguste Comte e isto demonstra o quanto estamos depois do recente golpe, mas muito antes dele, há anos, senão séculos de distância dos europeus e de seus revolucionários, isto é, de todos europeus e não apenas alguns ilustres europeus revolucionários conhecidos. Isto porque a ordem tão bem defendida por Comte na França defendida com base nas ciências da natureza e não com base nas ciências sociais propriamente dita, nunca seria possível a partir do passado da França desde e depois de sua revolução. Um passado turbulento e revolucionário que simplesmente abdicou de toda a religiosidade conferida ao rei e decapitou sua cabeça em praça pública, ato que seria senão considerado terrorista hoje em dia e não mais libertário como foi à época permitindo assim, inclusive, que as ciências positivas que Auguste Comte tão bem colocou como exemplo à sua ciência social viesse a surgir.
Não se pode falar de positivismo francês sem falar de revolução francesa neste sentido e tão pouco se pode pensar como um francês sem todo o passado histórico bem sucedido de sua revolução. O mesmo vale para toda a Europa que mesmo não sendo tão revolucionária como a França mudou radicalmente sua forma de agir implementando, seja pelo capitalismo mais voraz já existente como foi o caso da Inglaterra, seja pelo comunismo na Rússia que foi além do que os franceses revolucionários imaginaram algum dia no socialismo pré-revolucionário dos contratualistas e utópico pós-revolucionário. E o mesmo vale para todos os lugares que conseguiram mudar suas condições sociais de modo revolucionário depois de muitas guerras ou muitos conflitos como é o caso dos países pós-coloniais africanos.
Parece óbvio que a defesa de Auguste Comte de uma ordem se fez mediante a todo um passado de desordem que surgiu na Europa e que, em sua época, ele não quer que retorne ensejando que a sociedade fosse algo tão ordenado como era a natureza para o cientista natural, dócil ao poder humano ou mesmo submetida em sua voracidade e selvageria à violência humana. A intenção de Comte está de acordo com todas as necessidades da época pós-revolucionária francesa burguesa em que não se pode tolerar mais nenhuma revolução social, haja vista também todo o terror depois da revolução e não propriamente produzida por ela. O que isto demonstra de um modo claro que o terrorismo não tem nenhuma relação com atos revolucionários, nenhuma relação com o ensejo de liberdade do ser humano por meio de uma mudança de suas condições sociais e históricas. Pois o terrorismo é uma ação do Estado, propriamente do Estado na tentativa daqueles que estão no seu poder de se manterem no poder e que ele não por menos reconhece tão bem projetando de modo paranoico naqueles que tem que lhe tire do poder.
Nenhuma revolução se faz com base no terrorismo por motivos que são tão óbvios que qualquer criança conseguiria entender isto, ou seja, porque não se avisa o que vai fazer quando o que vai fazer é totalmente contra o poder de outrem para não ser justamente impedido. Nenhuma revolução pode, neste sentido, ser promovida com base no temor de morte da população como faz o terrorismo, mas justamente pelo contrário com a ausência de medo da população em morrer, com um levante popular no qual ela já não tenha medo do que possa acontecer consigo de um modo geral, quando a consciência de que a sua liberdade é mais importante do que a morte no cadafalso ou pela degradação do trabalho. A morte tão impingida na mente pelos terroristas não produz revoluções, e, sim, o passado de mortes de todos aqueles que morreram submetidos pelo poder de modo injusto, como aconteceu na Europa que cada morte se tornou um motivo para a revolução sem temor ao rei e todos que o protegiam, inclusive deus cristão à época.
Contudo, mesmo com a violência latente europeia a fomentar suas revoluções, não foi apenas a violência que as fez surgir, mas o fato de que não se podia reagir à revolução mesma, que ela era algo necessário e imediato e toda revolução somente existe sob esta condição de necessidade imediata e não como algo planejado alhures como um ato terrorista que pode dar certo ou não, e se não dá certo se faz outro e mais outro. Uma revolução, se é uma demonstração de poder, não é a demonstração de poder num jogo de poder que se faz durante um longo tempo, mas se demonstra em apenas um momento de luta, de uma vez só, como pensou Benjamin em sua análise crítica fundamental da violência e poder e a possibilidade da revolução. Em outras palavras, ou se faz uma revolução ou não se faz e se busca, em vez disso, meios parlamentares, diplomáticos ou democrático de alcançar o poder e mudar as condições sociais na medida do possível, esperando os golpes contrários que advirão sempre em defesa da ordem e progresso apenas para alguns privilegiados.
Diante desta breve consciência histórica do passado europeu que não é seguramente a consciência história do Brasil pode-se perceber que a ordem exaltada aqui a partir dos franceses é uma falácia na medida em que não há nem nunca houve um passado revolucionário que emergisse a necessidade desta ordem no Brasil. Mas houve à época deste lema já uma clara preocupação com isto pelos militares republicanos que alcançaram o poder depois que D. Pedro I declarou a "independência" do Brasil, mas não sua liberdade em relação à Portugal. Independência que foi na verdade apenas uma mudança de poder de pai para filho e de herança de terra, haja vista que João VI nada fez para impedir e simplesmente concedeu a posse do Brasil ao filho. O que ele logo recusou pela posse das terras portuguesas após o falecimento do pai concedendo também as terras brasileiras ao filho, D. Pedro II, como o pai fizera a si.
Se não houve nenhuma desordem que fundamentasse a ordem pressuposta pelos republicanos, uma desordem necessária até mesmo em relação à natureza no que diz respeito ao pensamento humano que tenta estabelecer uma ordem para ela, isto é, conhecendo-a mais e mais e entendendo o que ela é, e toda a ordem no Brasil é uma falácia vinda de fora sem nenhuma relação com a história do Brasil, tão pouco o progresso é algo verdadeiro, mesmo depois de um século de desenvolvimento do Brasil por meio de algumas tecnologias. A falácia do progresso do Brasil tão defendida pelos políticos atualmente há tanto tempo não se sustenta de modo algum se considerarmos novamente que todo o progresso pensado por Auguste Comte é a partir do desenvolvimento das ciências naturais francesas desde Descartes e de todo o estabelecimento da educação científica como pressuposto para a mudança social na Europa a partir do implemento de tecnologias advindas justamente de um maior conhecimento científico. Neste sentido, parece óbvio que, assim como uma revolução é impensável sem a participação de todos ou da maioria da população e a ordem social só se modifica com esta participação, que também a ordem social europeia só se tornou possível com o desenvolvimento científico e tecnológico de toda a população por meio da educação, que ,se não foi amplamente difundida entre todos na sociedade, foi amplamente difundida nas universidades e financiada pelos capitalistas burgueses principalmente.
Não há nenhuma perspectiva de progresso para o Brasil mesmo capitalista sem o desenvolvimento da ciência e da liberdade conferida pelos europeus a ela para o seu desenvolvimento mesmo que este seja voltado para o lucro. Não existiria progresso científico tão pouco se os revolucionários franceses que negaram a religiosidade do rei, não negassem também a religiosidade do mundo e a interferência da religião no desenvolvimento e educação científica. Não foi, em contrapartida, contra Darwin que a Inglaterra se desenvolveu, mas a favor dele que muitas viagens de navegação foram feitas em todos os povos e colônias para adquirir deles toda a fauna e flora necessária para seus estudos naturais e, futuramente, evolucionistas promovendo a revolução nas ciências biológicas a partir da, ironicamente chamada, teoria da evolução das espécies e do ser humano. Teoria que é o fundamento de toda a compreensão de progresso na natureza a partir da qual senão se pensa todo o progresso social, não por meio de acumulação de conhecimento, mas por perda e acréscimo de conhecimentos sobre o meio existente no sentido de se adaptar, na verdade resistir, a ele.
Há muitos motivos pelos quais podemos pensar em porque a teoria de Darwin com toda a mudança na história natural e humana que ela produziu não ter sido chamada de teoria da revolução das espécies e tão somente da evolução delas, ou ainda, porque a luta para se manter vivo e, de certo modo, se libertar do meio, não se submetendo totalmente a ele, foi definida no sentido de uma simples adaptação dos seres ao meio. Talvez o principal motivo esteja no fato de que Darwin era inglês e não francês, de a Inglaterra ter se adaptado às mudanças históricas europeias e ter se desenvolvido em seu poder real à margem das revoluções. E isto inclusive de um ponto de vista religioso quando se fez frente ao catolicismo e fundou uma religião mais aberta às necessidades reais dela, do rei e de sua realidade social e, deste modo, progrediu com mais acréscimos do que perdas, como acontece segundo a teoria da evolução mesma no sentido de uma adaptação ao meio. Teoria da evolução que seguiu à margem das contendas históricas que ela ensejou e que somente se tornou possível porque se manteve à margem delas, assim o Inglaterra como nação que sempre soube se adaptar às circunstâncias sociais e políticas se mantendo unida como reino.
Novamente, esta não é a consciência histórica do Brasil, mas da Europa. Nenhuma destas condições históricas de ordem e progresso existiram ainda no Brasil e existem atualmente e, mesmo caminha-se totalmente ao contrário disto, ao contrário de toda ordem e progresso com base na ciência e tecnologia na medida em que a educação é algo totalmente sem importância para o progresso brasileiro sem investimento público ou privado em descobertas científicas, tão pouco investimento em uma educação científica, mesmo que isto tenha progredido na última década. O Brasil depois do golpe é de fato e não ideologicamente um país do regresso social e científico e não do progresso. E não se trata de um pensamento pessimista diante das condições econômicas atuais que simplesmente que podem ser mudadas para melhor, pois não são as mudanças econômicas do Estado ou dos empresários que mudarão o Brasil para melhor, mas as condições da população como um todo e é esta, absolutamente esta, que está totalmente fora da perspectiva dos políticos e empresários atualmente.
Não é nem nunca foi o desenvolvimento da população que se teve em vista pelos políticos e empresários brasileiros como se pode perceber claramente hoje em dia a cada manchete de jornal. Acreditar que políticos e empresários estão preocupados com a ordem e o progresso brasileiro é acreditar que o Brasil está em vias de uma revolução ou de uma guerra civil que está longe, muito longe de acontecer, pois não há simplesmente consciência histórica atualmente para isto. Pior, a pouca consciência histórica adquirida está sendo novamente destruída pela religiosidade e pelo conservadorismo social que ensejou o golpe que vivemos atualmente semelhante ao golpe militar de 64, com a única diferença que não foi deflagrado por militares, mas pelo próprio governo e população que tem no militarismo sua palavra de ordem e progresso ainda. Um militarismo que está nas ruas na forma de uma Polícia Militar que mata da mesma forma que matava antes a mando do governo e com a mesma consciência de que defende a ordem do Brasil contra manifestantes comunistas de esquerda, assim como a população também assim pensa. É toda uma consciência histórica, falsa consciência diria Marx, de um Brasil que nunca existiu, revolucionário ou pretensamente revolucionário, que produz temor na consciência dos brasileiros atuais. É um terrorismo de Estado que promove medo e não liberdade que governa as mentes de políticos e da população brasileira atualmente a golpes de armas e cassetetes muito mais do que de martelos e foices.
Se os brasileiros não estão nas ruas atualmente contra o governo, mas apenas por questões particulares em algum momento como greves ou ocupações é porque a consciência histórica que se tem é a de revoltas senão particulares, motins duramente reprimidos pela ordem e progresso do poder de alguns em detrimento de todos. Não importa a consciência histórica de classe neste aspecto se não há uma consciência histórica do ser humano que se vê diferenciado nestas classes e situações particulares e não percebe que, a partir da desigualdade delas, não é livre. Foi o anseio pela liberdade humana, independente das classes que motivou a revolução francesa e todas as revoluções e não a consciência de uma única classe, no caso a dos trabalhadores. Foi quanto todos, unidos ainda que pelas circunstâncias, se viram presos em uma realidade social na qual eram reprimidos e oprimidos por golpes cada vez fortes dos que estavam no poder, independente das condições econômicas que tinham, que houve realmente uma revolução ou uma mudança social das condições sociais e históricas de fato e por direito.
Não é isto que acontece no Brasil. Não é uma consciência de liberdade independente das classes que se tem. Pelo contrário, é uma diferenciação cada vez maior das classes que mantém a ordem e o progresso do poder real de políticos e de algumas classes de nobres empresários que os mantém no poder para seu próprio benefício. Não se fará nenhuma revolução nem mudança social sem a menor consciência de se libertar de toda a condição social existente atualmente quanto a estes políticos e nobres empresários. Apenas se sofrerá os golpes deles constantemente, como tem sido há século e hoje cada vez mais a olhos vistos produzindo eles mesmos a desordem e o regresso social ao contrário da ordem e progresso do Brasil mesmo que professam defender, e que se existe ou existirá será novamente apenas para eles como tem sido há tempos, mas não para o povo ao qual resta apenas o consumo das migalhas de riqueza que lhe é concedido em troca da sua liberdade.
Uma liberdade, enfim, que é libertação das condições de opressão que se vive em relação à natureza, sociedade, religião e história que limite toda ordem e progresso humano de um modo geral, algo que todos tiveram que buscar para fazer parte da história humana e nós, brasileiros, ainda não conseguimos, pelo menos não satisfatoriamente como muitos outros. Não importa o quanto de riqueza tenhamos, nunca seremos eles se não pensarmos como eles em busca da liberdade humana e do nosso desenvolvimento como seres humanos. E nenhuma consciência histórica nossa é possível sem pensarmos a consciência histórica que eles mesmos produziram e que nós devemos produzir em busca de nossa liberdade fazendo nossa própria revolução, impondo o nosso poder sobre os que estão no poder atualmente e nos oprimem a cada dia mais sem qualquer perspectiva de desenvolvimento social e histórico nosso como seres humanos.
Não é a nação ou a democracia que está em crise no Brasil, mas o desenvolvimento dos brasileiros como seres humanos capazes de produzir sua própria história independente das condições sociais e históricas que vivem até hoje. É a independência do brasileiro como ser humano livre que se coloca de fato hoje em dia em questão e que se vê cada vez mais impedida pelas condições econômicas, políticas e religiosas de conservação de uma ordem e progresso que nunca vão existir tamanha a desordem e regresso que produzem atualmente nas condições sociais. É o saper aude iluminista que ainda aparece no pórtico da consciência dos brasileiros sem que tenham consciência dele, do que significa ter a coragem de pensar por si mesmo e, mais ainda, agir conforme seu próprio pensamento sem a tutela de outros em nome da liberdade humana de pensar e de agir, como pressupunha Kant tendo consciência do que estava em questão no alvorecer da modernidade europeia.
Sem esta consciência de ser humano livre não é possível nenhuma revolução no Brasil de fato ou por direito, apenas a resistência aos golpes dos que nos oprimem de fato e por direito. Que ser humano queremos ser, eis a questão hamletiana que se coloca à nossa frente como se colocou à frente dos europeus em seu questionamento existencial moderno:
Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e flechas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provocações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.(!)
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