Sheru e a casa que mora em nós
Quando partimos nunca mais retornamos, pois o tempo é algo que não volta senão numa espiral de lembrança para seguir novamente em frente e por mais que voltemos de onde partimos o mundo já deu muitas voltas e tudo é diferente. O que nos resta é a lembrança da casa que sempre mora em nós e onde sempre vamos nos encontrar.
Ao assistir ao filme Lion - Uma jornada para casa (Lion, 2016), de Garth Davis, não é preciso muito tempo para reconhecermos a Índia de Quem quer ser milionário? (Slumdog Millionaire, 2008) e de O homem que viu o infinito (The Man Who Knew Infinity, 2016), outros filmes em que Dev Patel, Saroo, participou em todos numa longa jornada e neste último também retornando a ela, uma Índia que é vista em sua realidade nua e crua que nos deixa sem palavras e nos faz reter muitas lágrimas. Lion é um filme emocionante cujas palavras não são necessárias em muitas partes dele, pois o silêncio nos convida a lembrar do passado de Saroo, da história que se perdeu há muito tempo atrás e que ele apagou da lembrança até um momento proustiano se fazer presente em sua vida não numa xícara de chá, mas em um jalebis.
Se a história se apaga facilmente de nossa memória, principalmente quando somos crianças, a geografia não, e a Índia que Saroo conheceu sob seus pés e em sua dor deixou para trás em seus campos abertos, rios e vielas, ainda permanece na lembrança, pois se partimos de algum lugar em nosso devir, o lugar nunca parte de nós, muito menos a nossa casa, a nossa terra. Estamos sempre voltando para o lugar de onde viemos e Saroo sabe disso ao ponto de não conseguir mais evitar a lembrança de tudo que um dia fez parte de sua vida, foi sua vida, por pouco tempo que tenha sido sua vida na Índia, em Ganesh Talai ou Ganestalay como a conhecia em sua vaga lembrança do hindi, sua língua materna perdida antes mesmo de ser conhecida plenamente, assim como sua mãe, Kamla Munshi, seu irmão mais velho Guddu Khan e sua irmã mais nova Keshila, todos abandonados por si em meio aos acasos do destino.
Nos olhos vagos de Saroo nos encontramos tão perdidos como ele quando criança carregando pedras para sua mãe e sofremos todas suas desventuras perdido de casa, sentimos a dor de cada lembrança de criança em sua terra quando adulto já muito mais distante de quando se perdeu num vagão de trem até Calcutá. Sofremos em silêncio com cada memória que desperta sob seus olhos ao se lembrar do irmão que um dia lhe ensinou a viver a difícil vida das pessoas pobres na Índia, que o amava e ele a si. Sentimos no peito a dor de momento de desespero seu no tempo que se estende sob seus olhos sem retorno e com a esperança de que um dia volte para casa e lá encontre o que um dia foi seu lar.
Por mais simples que seja o desenrolar de sua história no cinema, sabemos que seu devir geográfico nele não foi tão simples assim. Cada desterritorialização e reterritorialização sua num determinado lugar e num determinado tempo histórico não deixa margens para dúvida de que seu corpo sentiu todas as marcas de sua longa caminhada até chegar, enfim, em casa. Não mais a casa de antes, mas a casa que mora em si, que guardava na lembrança sem saber onde estava, mas sabendo que tinha de encontrá-la, pois sempre estamos em busca da casa que mora em nós mesmos. Uma casa pequena já para nosso corpo grande, uma casa cujos espaços já não se adequam à nossa vista, uma casa que é a pura lembrança de um tempo que já não existe mais, apenas o espaço a priori do qual partimos em nossa sensibilidade.
Voltar para casa é voltar para si mesmo num tempo que já não volta mais e que é a pura lembrança de si mesmo. O retorno de Saroo aos braços de sua mãe é o retorno à sua terra, sua casa, é o retorno a si mesmo, Sheru, seu verdadeiro nome, o encontro com a resposta pela qual sempre ansiou, que sempre ansiamos, de onde viemos, em nosso a-partamento.
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