Repetir até ficar diferente
"Repetir, repetir, repetir... até ficar diferente" canta Paulinho Moska em sua música Mar deserto parafraseando Manoel de Barros na terceira parte de seu poema Uma didática da invenção quando diz: "Repetir repetir — até ficar diferente./Repetir é um dom do estilo." E que aqui se parafraseia também, mas sem repetir o repetir, mesmo assim não deixando de dar ao repetir toda a força de compleição do diferente.
Repetir é o que mais fazemos no nosso cotidiano e o que mais constitui o cotidiano para nós. Estamos sempre repetindo diversas vezes o mesmo processo de acordar, escovar os dentes, comer ou não comer algo pela manhã dependendo do estômago e da viagem, ir ao trabalho, à escola, vivenciando o mesmo processo em cada um até dá o toque para voltarmos para casa, quiçá dar uma paradinha em algum lugar pra sair da rotina, como geralmente se diz. Rotina que é outro nome para o nosso cotidiano e que não por menos é outro nome para repetição.
A força poética e, porque não dizer mítica, de Manoel de Barros ao dizer "Repetir repetir — até ficar diferente" Paulinho Moska de um certo modo desvela quando canta "Agora vou voltar, mas não é para trás" e deste modo nos faz ver aquilo que no nosso insondável cotidiano dificilmente não percebemos, não queremos perceber ou não nos deixam perceber nas infindáveis horas de estudo ou trabalho, que a cada repetição dos segundos, minutos, dias, horas, meses, anos, de nosso calendário solar ou lunar, há um devir constante. Um que, como diz Heráclito, que se é uma mudança constante de toda a natureza em seu sempre fluir é também uma repetição do fluir do sempre novo (physis) a cada instante nela, pois em cada repetição da vida na natureza é uma nova vida que se repete. E, neste sentido, se repetir é algo que se faz tanto nela como no nosso cotidiano nenhuma repetição é igual a outra, pois nenhuma vida que volta não é para trás, senão temporariamente em nossa lembrança de um tempo que somente existe na memória do nosso ser no tempo.
Diferente do que pensamos em nosso cotidiano, a repetição neste caso é não apenas um dom do estilo como diz Manoel de Barros, mas aquilo mesmo que ele diz no título de seu poema, uma didática da invenção, a fórmula mais simples de se inventar algo. Isto porque a cada repetição do que já foi feito, nós recriamos tudo de novo de uma forma diferente, pois a vida que investimos naquele momento é uma vida totalmente diferente da que vivíamos quando pomos pela primeira vez entramos no rio. Neste sentido, o dizer de Heráclito só faz sentido se repetimos a entrada e entramos novamente naquilo que já tínhamos deixado para trás em nossa vida, vendo que, ao contrário do que pensamos, nada é igual como antes, tudo se modificou em nossa volta e a vida que tinha um sentido de um modo, já não tem mais aquele único sentido, mas também outro. O labirinto em linha reta de que nos fala Jorge Luís Borges já ganhou pelo menos um caminho se tornando um jardim de caminhos que se bifurcam nos impondo uma decisão de seguirmos em linha reta ou simplesmente desviar para outro caminho.
Desviar para outro caminho e sair da repetição cotidiana mesmo considerando esta tão enfadonha e tediosa não é algo fácil. É mesmo o que há de mais de difícil, pois dificilmente buscamos coisas novas no cotidiano, mudando o caminho de ir ao trabalho, à escola, sempre seguindo o preceito geométrico de Euclides, que o menor caminho entre dois pontos é uma linha reta, e quando não podemos seguir uma linha reta, o menor caminho que nos leve direto aonde queremos chegar. E onde chegamos também não queremos ver nada diferente do que vimos antes, pois tudo deve estar sempre no mesmo lugar onde se deixou tudo no dia anterior e todas as conversas devem começar sempre do mesmo modo, pelo tempo: "Hoje o dia está..." Até que o tempo se finde novamente em sua repetição cotidiana sem maiores sobressaltos que nos deixe angustiado no cotidiano como o atraso de 1 minuto para chegar o ônibus na parada que você acabou de chegar...
Não desviando de nosso caminho em nenhum instante, toda a poesia de Manoel de Barros e de Paulinho Moska, de Borges, de Heráclito e de Hegel (Hegel? Sim, Hegel.) perdem o sentido, pois tudo que vemos na repetição é algo negativo que, apesar disso, é valorizado como positivo para constituição de nossa identidade imediata no cotidiano que não nos deixa perder em delírios poéticos. Delírio que está no começo de tudo, no verbo, como diz ainda Manoel de Barros em outra parte de sua didática da invenção, mas que esquecemos no nosso cotidiano e que as crianças percebem ao dizerem: "Eu escuto a cor dos passarinhos.", pois, ele complementa: "Então se a criança muda a função de um/verbo, ele delira." E não por menos, para Manoel de Barros, o fazer poético, da poesia e do poeta, é um fazer nascimentos com sua voz, pois o "O verbo tem que pegar delírio."
Fazer nascer é fazer algo novo, diferente, mas é também fazer o que sempre se faz e se fez na natureza desde tempos alhures, isto é, repetir todo o processo da vida num instante, num parto ou num partir, pois todo parto é um partir e todo partir é um a-partamento, isto é, uma separação e ligação ao mesmo tempo com o que ou quem foi deixado para trás. Uma mãe, um pai, um lar, um amor, uma história, um trabalho, um caminho que era seguido repetidamente, mas em uma de suas repetições cotidianas foi modificado, pois nele se percebeu que a repetição nem sempre é de algo com o qual se está acostumado a ver ou fazer, mas de algo diferente. E a repetição mesma é sempre diferente a cada momento que se percebe o que Heráclito ensina sabiamente ao falar de não podermos entrar duas vezes no mesmo rio com seu devir que quer dizer deixar vir, isto é, deixar vir algo novo na repetição do nosso dia a dia no fluir do tempo, deixar que as coisas sejam diferentes no nosso pensamento cotidiano que são sempre as mesmas coisas que acontecem sempre.
E nesse ponto Hegel foi revolucionário em sua época ao questionar a identidade imediata de nosso ser na história, a identidade de uma representação, de uma repetição que é sempre a de uma presença no tempo infindável e que nos acostumamos a ter sobre tudo, vendo tudo como a mesma coisa de sempre. Isto porque todo o trabalho do negativo só é negativo para aquele que quer permanecer na sua identidade imediata, no famoso dizer "eu sou assim e pronto", sem questionar em nenhum momento a sua vida, sem por em questão a sua história e a sua identidade com tudo nela, pois questionar tudo é algo negativo, e se deve sempre seguir o que os pais dizem, a escola diz, o quartel diz, o hospital diz, a empresa diz, a sociedade, enfim, diz. Sem paráfrases, ipsis litteris. Ou seja, é por negar qualquer mudança em nosso cotidiano que o trabalho se torna negativo e tudo que remete também à ideia de trabalho, nem um pouco inventivo no fim da modernidade com as revoluções industriais, bem diferente do que acontecia no início dela quando o trabalho ainda era artesanal e pouco manufaturado, quando o artesão ainda criava e dificilmente se reproduzia um produto em cada fazer nascer ele de novo.
Em contrapartida, se é negativo mudar nossa vida de trabalho vista desta forma, tão pouco chegamos à identidade que Hegel propõe, no caso, da identidade do conceito, isto é, do conhecimento de nós mesmos, da nossa vida, da nossa sociedade e da nossa história, que não é a do nosso cotidiano, a que nós conhecemos como sempre a mesma coisa. Pois o conhecimento do conceito ou do que é cada coisa em nosso cotidiano para além do cotidiano mesmo depende da repetição de nossa identidade, agora, não mais vendo tudo como era antes e sempre querendo ver tudo da mesma forma que antes, com as mesmas ideias sempre, mas ver tudo diferente a cada momento no devir de nossa vida até o fim de nossa história. Chegar ao fim da história é chegar ao conhecimento de nós mesmos não simplesmente na morte que um dia vai chegar e vamos reviver todo o nosso passado como se fosse um filme como se costuma dizer, mas chegar ao fim do dia e pensar em tudo que fizemos diferente, mesmo que pensemos ter sido um dia como todos os outros em nosso cotidiano.
Aprender isto, porém, não é algo fácil, mas uma questão de tempo, em como olhamos para o tempo, como vivemos o tempo em sua repetição querendo ou não que ele seja diferente, mesmo que sejam as mesmas coisas e acontecimentos a se repetir nele, incluindo nós mesmos. O que não quer dizer que se deva mudar radicalmente de vida para ser diferente, apenas perceber que ela está diferente a cada instante, a cada aula, a cada conversa no trabalho, a cada nascer do dia. E que cada bom dia! É diferente do outro a cada repetir, pois nem sempre é um bom dia que temos, mas podemos ter se quisermos repetir até ficar diferente como a natureza nos ensina a cada dia fazendo nascer tudo novamente.
Uma didática da invenção
Manoel de Barros
(http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/)
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.
Manoel de Barros
(http://www.revistabula.com/2680-os-10-melhores-poemas-de-manoel-de-barros/)
I
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.
II
Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.
III
Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
V
Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.
VI
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
VIII
Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.
IX
Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.
X
Não tem altura o silêncio das pedras.
Mar deserto (Paulinho Moska)
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