Parem as máquinas!
No século XIX, o ato de parar as máquinas era uma ação instintiva quando acontecia algum problema na produção. Em geral, este problema era algo que afetava o trabalhador devido as condições de trabalho que eram insalubre para ele e que podiam colocar sua vida em risco e, quando diante destas condições, eles reivindicavam ou melhores condições ou maiores salários para suportá-las. De todo modo, era um momento em que o trabalhador percebia sua própria condição dentro da produção capitalista e resolvia agir contra ela de um modo instintivo, pois disto dependia sua própria sobrevivência ou um futuro melhor pra si.
A ação instintiva de parar as máquinas demonstrava todo o sofrimento dos trabalhadores com as suas condições de trabalho e de vida que ele sentia intensamente naquele momento e que faziam querer um poder sobre ela para mudá-las, mas para isto, ou eles lutavam para se defenderem e defenderem seus direitos ou sofreriam aquelas condições pelo resto da vida, sem direito a qualquer lamento. De modo radical, esta ação instintiva ia além do ato de parar momentaneamente as máquina e se tornava a revolta contra tudo que as máquinas representam do ponto de vista produtivo, que não era apenas a substituição do trabalhador nas fábricas, mas também a ideia clara e distinta da condição dele na sociedade de ser apenas uma máquina em sua força produtiva que pode, deste modo, ser substituída por outras máquinas, ter sua mão-de-obra terceirizada por elas. Enquanto tal, por sua vez, demonstrava para ele como toda a produção capitalista é voltada para o lucro do empresário, o patrão, que exclui qualquer possibilidade de ganho ou desenvolvimento do trabalhador, pois pode ser obtido por outros meios, excluindo o trabalhador totalmente do processo produtivo ou fazendo a sua condição depender totalmente da vontade do empresário ou do patrão. Neste sentido, se a ação instintiva de parar as máquinas demonstrava uma certa revolta do trabalhador, a ação de quebrá-las como faziam os ludistas, mesmo que elas pudessem ser consertadas depois, demonstrava toda a revolta dos trabalhadores contra sua própria condição na sociedade capitalista em seu alvorecer industrial.
Depois de muitas revoltas contra suas condições, o poder do trabalhador de parar as máquinas e de quebrá-las foi pouco a pouco se tornando mais vago, consequentemente, o poder de se opor às condições de trabalho e a todo o sistema capitalista. Não necessariamente porque as condições capitalistas melhoraram, como de fato aconteceu em alguns países e nações, mas porque os trabalhadores foram envolvidos no século XX em lutas não por seus direitos, mas em lutas por seu país e nação dando a eles um trabalho de vida ou de morte. Pois as duas guerras mundiais do século XX não foram simplesmente um desvio ou uma forma de alienar o trabalhador de sua força de trabalho na produção capitalista, mas de dar um trabalho para a grande massa de trabalhadores que não tinha nenhuma perspectiva de vida sem questionar estas mesmas condições de vida. Se a guerra é, por sua vez, aquilo que salva muitas vezes os governos e o capitalismo principalmente em crise não é devido a uma alienação, mas a algo prático que ela engendra, a força humana voltada para a violência empregando-a da forma como for possível. A guerra é um trabalho e não uma diversão alienante, o momento em que governos mostram não o poder sobre uma nação inimiga, mas sobre seu próprio povo, de poder mobilizar suas forças para a produção de algo sem dar muito em troca, a não ser o ideal de uma vida feliz no futuro, depois de tanto trabalho, o que o capitalismo sabe fazer muito bem ideologicamente, mesmo que no fim seja a destruição individual e coletiva de toda uma população que aconteça instantânea ou paulatinamente.
As duas guerras mundiais não foram apenas momentos em que a força produtiva dos trabalhadores se tornou destrutiva, mas também o momento em que as máquinas adquiriram um poder de destruição em massa e o momento em que não por menos os trabalhadores em vez de lutar contra elas se tornaram aliados delas. Foi o momento em que trabalhadores e máquinas não eram opostos em sua força, mas iguais na medida em que ambas as forças deles serviam para a destruição e, ademais, o momento em que o trabalhador sentiu um poder a mais em suas mãos que as máquinas até então não lhe davam, pois apenas retiravam deles seu poder. E foi o momento em que os capitalistas perceberam senão aquilo que Ford percebera tanto tempo antes e fez sua produção multiplicar, o fato de que as máquinas deviam servir aos trabalhadores e que cada um deveria ter uma assim como o Ford T.
As duas guerras mundiais e, principalmente, a segunda demonstraram que as máquinas davam uma intensidade à vida para além de sua força produtiva e, em vez de pará-las ou quebrá-las, começaram a construir mais e mais máquinas após as duas guerras, tornando-se um potencial de vida para o trabalhador independente agora das fábricas e, mais ainda para o capitalismo empresarial que viu nas máquinas uma forma de lucrar mais com a produção de máquinas não mais para indústrias, não para mais para a guerra. Pois a guerra agora era outra, não mais contra o fascismo, mas contra o comunismo em relação ao qual o capitalismo devia mostrar seu poder por uma intensificação da vida dos trabalhadores não simplesmente por máquinas de destruição dele e, sim, por um real desenvolvimento da vida dele com as máquinas.
O desenvolvimento da informática posterior às duas guerras mundias se deve, neste sentido, à aliança entre uma grande massa de trabalhadores e máquinas para a destruição do que à utilização de cada vez mais métodos computacionais nos frontes de batalha, incluindo a criação dos primeiros computadores que se tem conhecimento, o Enigma e a máquina de decodificação de Turing, cuja relação entre eles se tornou a base da Internet atual na qual computadores decodificam mensagens de outros computadores em rede. Isto porque tal aliança fez com que a grande massa de trabalhadores sentisse necessidade de ter máquinas para intensificar suas vidas, algo que já existia antes da guerra, mas se intensificou muito mais depois dela com o desenvolvimento da informática e de um investimento na produção de máquinas para a intensificação de vida no cotidiano com a substituição de afazeres domésticos humanos por máquinas. Assim a produção das máquinas que no século XIX era mal vista pela maioria dos trabalhadores nas fábricas passou a ser desejada em casa por um consumo cada vez maior de máquinas para resolver dos problemas mais simples aos mais complexos em seu cotidiano e o que era uma solução para a produção capitalista se tornou também uma solução para os trabalhadores em seus alheamentos da vida cotidiana, mas também na produção de uma vida cotidiana produtiva diferente da que produzia em fábricas e comércios ou no campo.
Se no século XIX as máquinas retiravam o poder produtivo do trabalhador e aumentavam o poder produtivo do capitalismo, durante todo o século XX o desenvolvimento delas para as guerras e para o consumo fez com que as máquinas aumentassem o poder produtivo do trabalhador e aumentassem muito mais o poder produtivo do capitalismo ao ponto de que não é só o capitalista que quer que as máquinas não parem, também o trabalhador. No século XXI, com o desenvolvimento de máquinas computacionais diversas produzidas para o consumo agora integrado por meio da Internet, o resultado é que trabalhadores e empresários foram igualados pelas máquinas em seu desejo de não as parar, pois ambos se beneficiam com elas, e não apenas os empresários. Mais ainda, a força produtiva dos trabalhadores passou a se diversificar por meio delas e se elas o substituem nas fábricas, elas lhe possibilitam produzir de modos diferentes tornando-se eles mesmos empresários com apenas um computador em suas mãos com a produção de diversos programas de computadores ou simplesmente usando-os para o seu prazer. Não por menos, a força produtiva dos trabalhadores foi intensificada para além da produção tornando-se um divertimento que dá lucro sem o menor esforço tal como os capitalistas modernos perceberam ao ponto das máquinas serem o princípio e não o meio apenas de toda a produção capitalista atual, bem como de todo o questionamento da produção capitalista diversificando a própria luta contra o capitalismo.
Já não se pensa, portanto, em parar as máquinas, muito menos destruí-las, mas produzir mais e mais máquinas para o lucro capitalista e para destruição do próprio capitalismo. A ação instintiva contra as máquinas se tornou uma ação cada vez mais racional em relação a elas, utilizando-as cada vez mais para seus fins capitalistas ou não, mas utilizando-as sem parar. Se as máquinas são o princípio e não apenas o meio à força produtiva capitalista e anti-capitalista é porque não se pensa tanto em uma como em outra a partir senão das máquinas que fazem parte deste modo de um poder de decisão tanto do capitalista como do anticapitalista. Anticapitalista que não é um comunista, pois não pressupõe mais o comunismo como ideal e prática a substituir o capitalismo, mas um desenvolvimento da sociedade contra todas as práticas capitalistas que destroem a vida em benefício do lucro. Trata-se, por sua vez, de um questionamento de dentro do capitalismo e não mais de fora dele na medida em que o capitalismo se tornou global com a derrocada do comunismo praticado no século XX, que agindo de fora não se diversificou em suas forças produtivas e intensificadoras da vida tal como fez o capitalismo de certo modo e, assim, pereceu na realidade.
Mesmo um anticapitalismo, portanto, não abdica das condições do próprio capitalismo para o seu desenvolvimento muito menos das máquinas, pois elas não podem parar, muito menos os trabalhadores agora com elas, totalmente imersos na produção a qualquer hora e cada instante, de modo que ao mesmo tempo em que as máquinas aumentaram o poder produtivo do trabalhador, eles também perderam o poder sobre sua própria vida que passa a ser regida pelas máquinas e estão totalmente presos a elas, bem como à vida capitalista, mesmo que a elas se oponham. Viver sem as máquinas já não é mais possível e a lógica capitalista da mais-valia relativa na qual se emprega cada vez mais meios de produção maquinários para gerar lucro se tornou a senão a lógica do consumo capitalista em que se emprega cada vez mais dinheiro para meios de produção da vida cotidiana do trabalhador sem lucro algum.
Enfim, se parar as máquinas era um instinto do trabalhador em relação ao trabalho produtivo capitalista, pará-las hoje se tornou uma decisão muito mais difícil, pois diz respeito a como o ser humano quer viver a vida para além das máquinas e de toda a produção capitalista das mídias, mas não por menos essencial para que sua vida ainda tenha um sentido humano e não tão somente de produção e consumo de mercadorias capitalistas. Um sentido humano que não pertence às máquinas por enquanto e é apenas ainda uma ficção asimoviana.
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