Não corra!
Não corra!... Foi o que falei para meu filho ao levá-lo ao shopping para consertar seu tablet quebrado. Um adágio dito por qualquer pai em muitas circunstâncias que passaria despercebido por ser tão cotidiano como muitos outros do tipo, mas não por mim que, ao dizê-lo, não pude deixar de ouvir ressoar em minha mente toda a Segunda dissertação da Genealogia da Moral de Nietzsche. Aliás, todo o passeio ao shopping foi um aprendizado dela na prática, com culpas, ressentimos e má consciência se contrapondo a uma vontade de poder de meu filho.
Uma coisa que qualquer pessoa pode verificar na prática é que crianças não andam, elas correm. Os primeiros passos de uma criança ao aprender a andar não são prevenidos em sua caminhada, mas destemidos. Ao menor passo, seu corpo pende pra frente e ela tenta equilibrar sua massa muscular ainda amorfa não recuando no passo, mas apressando-o como se fosse superar a ausência de equilíbrio com o auxílio da velocidade e não da gravidade, isto é, refreando sua força até ficar inerte. Neste sentido, deve-se dizer que não existe o primeiro passo de uma criança, mas os primeiros passos, pois ao primeiro sobrevém logo o segundo e o terceiro, ou mais, antes da queda inevitável.
Todo caminhar é um agir contra a lei da gravidade da Terra que impulsiona à inércia, a qual a criança luta contra desde os primeiros momentos de vida: primeiro rolando no berço se pondo de bruços, em seguida usando os braços para se erguer, depois, usando as pernas para se ajoelhar e começar a engatinhar... Engatinhar, mas não docilmente como um gato desfilando seu corpo mole e peludo, e sim, como um gato ágil caçando algo com seus olhos de lince, pois já ao engatinhar a criança se locomove rapidamente forçando ao máximo seus joelhos, sem sentir dor alguma. Neste sentido, o engatinhar já demonstra toda a vontade de poder da criança que, mesmo refreada por alguns tombos possíveis com a cara no chão, não a impede de engatinhar sempre de modo rápido com olhos de lince, diria, em busca do que ela deseja.
O engatinhar representa o primeiro momento deste instinto de liberdade que Nietzsche chama de vontade de poder, ou vontade de potência para alguns, no caso, vontade de poder que é instinto de liberdade, no caso da criança, de toda a gravidade da Terra que lhe pesa sobre o corpo e de todo o peso do corpo senão por meio dela. O momento do engatinhar é também o momento em que os pais começam a se preocupar e também correr atrás dos filhos, mas com medo que eles caiam de uma escada ou saiam em direção a uma rua, ou simplesmente taquem a cabeça no chão, neste último caso, quase sempre inevitável, restando apenas a mão na testa pra consolar o machucado com algum carinho às vezes, pois dependendo dos pais, pode ser acrescido um "eu não avisei", como se fizesse muita diferença para a criança em seu engatinhar na vida.
Criança não sente medo. Nós incutimos o medo e todos os afetos tristes e reativos nela. Criança não sente tristeza ou alegria, nós fazemos ela sentir isso. A cada queda, ela chora, mas isso não a faz sentir medo. A dor não nos ensina a temer, como nos ensina muito bem Nietzsche em sua genealogia do castigo, a dor nos ensina a sermos precavidos em relação a ela. O temor, quem ensina são os pais quando diante da dor, dizem Não corra! ou Não faça isso!, seguida do jargão lógico matemático tão característico nestes momentos, Se não vai apanhar!. Não é difícil perceber a oposição de Nietzsche a Hegel, neste aspecto, pois quando pais fazem isso com certeza é pensando na superação especulativa da negação com outra negação, ou seja, se a criança faz algo negativo, a ideia básica é, segundo a lógica hegeliana, negar outra vez, uma negação da negação que, caso, é fazer algo negativo a ela pra que se lembre de não fazer isso da próxima vez. O contraponto clássico de Nietzsche a Hegel, neste sentido, seria outro adágio popular muito comum entre pais: Corra, pra cair de novo! ou Se levante pra cair de novo! E que coloca a criança num dilema ético já nos seus primeiros momentos de vida: Correr ou não correr? Eis a questão.
Do engatinhar ao correr é um pulo, pois logo depois que a criança começa a engatinhar, ela consegue se sentar. Dizer que ela consegue se sentar não é propriamente a realidade, pois são os pais que obrigam a criança a se sentar na posição de buda, são eles que ensinam a aceitar a gravidade sobre seu corpo e não ir contra ela com outro adágio paterno muito comum: Sente aí! ou Fique sentado! Algo que vai ser perpetuado por toda a infância e adolescência por pais em diversos lugares e na escola pelos professores e que é não por menos o castigo básico da pedagogia disciplinar das Super Nanny e de quem pensa que ela sabe educar alguém.
Assim como criança não anda, corre, criança também não se senta, ela se levanta constantemente, como é fácil também de perceber quando são colocadas de castigo num canto. À ação negativa dos pais em forçar a criança e assumir uma postura de negação de sua vontade de poder ficando simplesmente sentada, a criança responde se mexendo a todo instante como se brincasse de não ficar estátua. Em seus primeiros momentos de vida, quando ainda não é castigada, ela faz isso engatinhando, depois se apoiando nos pais ou em algo para se levantar e, em seguida, dar os primeiros passos.
O primeiro passo do homem na lua nunca será tão importante como os primeiros passos de uma criança em sua humanidade. É no momento em que a criança se livra de qualquer apoio dos objetos ou dos pais que o maior ensinamento de Nietzsche sobre a vontade de poder enquanto instinto de liberdade vem à tona causando todos os afetos alegres que pais conhecem muito bem e muitos esperam quando engravidam e eles nascem. Se o parto é motivo de choro para a criança porque é a retirada de sua inércia no mundo para a atividade nele, o primeiro passo dela é motivo de alegria por ser o derradeiro momento de uma vontade de poder ser livre que começou com o seu se debruçar no berço, ou mesmo, com o fugir dele, muitas vezes tacando a cabeça no chão, como meu filho... É o momento de uma alegria plena por existir de modo ativo e não mais reativo com o pleno domínio de seu corpo orgânico ainda flácido, mas pleno de vida ativa, carregando seu próprio peso, livre dos objetos e dos pais... E não apenas ela se alegra com isto, todos os pais se redimem à sua vontade de poder e aos afetos ativos de sua vontade, quiçá recobrando inconscientemente eles seu instinto de liberdade e sua vontade de poder ali expresso nos primeiros passos de seus filhos. E não importa quantas quedas as crianças levem, mesmo receosos os pais deixam elas serem livres correndo pela casa em seus primeiros passos, pelo menos até o momento em que são levados à preocupação por não as terem mais em suas vistas e começarem a gritar Não corra! e derrocar toda a vontade de poder correr dela.
É no momento em que os pais começam a dizer Não corra! que começa a culpa, o ressentimento e a má consciência de que agir é algo ruim, que o melhor é a criança ser passiva e obediente à moral dos pais, do contrário, sofreram o castigo, este instrumento que tem o objetivo claro de criar na criança a memória do mal, de que fez algo mau, isto é, simplesmente correu, e que não pode fazer isso, pelo menos em todo lugar, e nem sempre dizer Não corra! quer dizer algo negativo. Mas é o momento em que, diante da culpa muitas vezes por correr, surge também o ressentimento, mais conhecido entre os pais como birra, quando a criança mesmo reprimida em sua vontade de poder correr, demonstra como esta ainda está ativa em si, como seu instinto de liberdade ainda está presente, ali, naquele instante e, muitas delas, mesmo diante das mais investidas ofensivas de opressão, não deixam de mostrar seu descontentamento por não fazerem o que querem, emburrando a cara ou dando língua. Até que, por fim, em algum momento, a má consciência a vence: pelo cansaço, pelas palmadas, pelos puxões de braço, de orelha, pelas chineladas e cintos alçados em seu corpo com todo o prazer de muitos pais em fazer-sofrer os filhos com diversas formas de castigos violentos, um desejo que realizam em seu ímpeto de vingança, e não simplesmente de castigar. Vingança porque se trata de uma ação produzida por ressentimento em relação aos filhos, ou ainda, inconscientemente, em relação aos pais que o castigavam violentamente.
Bater num filho não é um ato de educação, é um ato de vingança por ter sido violentado na infância pelos pais. É o momento em que o mais fraco realiza sua vontade de poder sobre quem é mais fraco do que ele pra se sentir forte e poderoso. É o momento de um afeto reativo diante do que foi feito a si naquele instante, ir contra a uma ordem geralmente, mas uma reação ao que foi feito a ele no passado por seus pais e que ele, na incapacidade de agir contra quem é mais forte, age em relação a quem mais fraco do que si, seus filhos. Afeto reativo que, como diz Nietzsche, é o último lugar em que a justiça se faz presente, o mais difícil de ser conquistado, pois este afeto reativo é o que mais está presente no ser humano, já que basta até o mais íntegros dos homens sofrer algo que ele logo se encoleriza e seu ímpeto é senão fazer-sofrer o outro com o castigo, ou ver ele fazer-sofrer quando não pode fazer isso. Mas há algo mais do que isto muitas vezes, pois há a satisfação ou o prazer de ver e, principalmente, de fazer-sofrer no ato de castigar e que é o grande problema da vingança segundo Nietzsche, pois ela faz que se deseje senão castigar com violência atroz os inimigos, mas sem que esta violência ser percebida como tal, e sim, sendo percebida como uma ação justa, como um ato de justiça.
Por que os pais se vingam nos filhos ao bater neles? Não por simplesmente descarregar sua raiva neles, o que é comum ao ser humano, mas por fazer isto com uma finalidade a justiça, pressupostamente, mas esta nunca é obtida por este meio. Quando os pais castigam não é a liberdade como princípio do direito e do que é justo que se tem em vista, pois toda a ação de castigar, seja ela qual for, ao fazer-sofrer e se satisfazer com isso, tem por objetivo a inibição da vontade de poder e do instinto de liberdade até que se extingam pela inibição dos filhos em manifestar sua vontade de poder, em geral por meio de um ascetismo, negando os prazeres pra não sofrer e sofrendo mais ainda sempre. No limite, esta inibição da vontade de poder se manifestando como esquizofrenia.
A vingança ou o ascetismo, ou ainda, a esquizofrenia produzidas em maior ou menor grau de intensidade não levam a um aumento da vontade de poder e de uma liberdade de poder fazer algo, como simplesmente correr. Em ambos os casos, é uma rejeição à vida que se coloca, no caso da vingança a vida do outro considerado como inimigo e no caso dos ascetismo e da esquizofrenia, a admoestação do corpo, a automutilação, enfim, o suicídio, o derradeiro momento do Não corra! quando de tanto dito aos filhos se torna um Não viva!, o oposto do que todos os pais querem para seus filhos. Nem sempre é fácil não dizer Não corra!, mas pensar nisto já é o primeiro passo para não edipianizar os filhos.
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