Ágora e o ódio que move a fé


Em 2009, quando foi lançado o filme Ágora, de Alejandro Amenábar, eu me tornava filósofo por profissão, isto é, tornava-me professor de filosofia de modo efetivo. Ninguém é filósofo por profissão sem ensinar filosofia, sem se tornar professor. Já naquele tempo eu assistia muitos filmes e filosofava sobre eles, sobre muitos filosofando aqui, mas nenhum destes filmes era sobre filosofia ou sobre filósofos.

Não há, de fato, muitos filmes sobre filósofos. Roberto Rosselini na década de 70, foi um dos poucos cineastas a fazer filmes sobre filósofos, todos para a TV. O primeiro deles, não por acaso, foi Sócrates (Socrate, 1970), seguido de Blaise Pascal (Blaise Pascal 1971), Agostinho de Hipona (Agostino d'Ippona, 1972) e, por fim, Descartes (Cartesius, 1974). Porém, nenhum deles foi considerado um grande sucesso, afinal, a vida de filósofos e suas agruras não são tão fáceis de serem vistas por um grande público e nem mesmo por filósofos, apesar de célebres, como os filmados por Rosselini em sua tetralogia filosófica. Isto porque, apesar de serem sobre filósofos, estes filmes são obras de arte e não propriamente de filosofia e, como tais, impera sobre elas ainda uma questão estética, de gosto ou de prazer, ou mesmo de ideal de beleza, que não é suscetível de uma aceitação tácita como verdade. Ler alguns destes filósofos e sobre suas vidas é muito mais interessante em certos aspectos do que os ver fantasiados no cinema longe dos olhos que os admiram nas letras.

Se é difícil filmar a vida de filósofos com sucesso, mesmo sendo tantos, não é mais fácil filmar a vida de filósofas, tão pouco documentadas na história de um modo geral e na história da filosofia. Com certeza, sabemos hoje sobre muitas delas, ainda que pouco, mas desconhecemos a grande maioria e elas permanecem isoladas na história da filosofia a uma questão de gênero que não diz respeito propriamente à filosofia, mas à biologia, como já referendara Aristóteles esta questão há muito tempo. Não faz sentido, sob este aspecto falar de filósofos ou filósofas de um ponto de vista filosófico, mas tão somente de que ser, homem ou mulher, filosofa, em outras palavras, quem filosofa.

Se a filosofia não é uma questão de gênero, ela tão pouco está imune às questões de gênero que imperam na sociedade em cada época e é sabido como as mulheres em todas as épocas, inclusive a de agora, são impedidas de filosofar. Não todas, obviamente, mas a grande maioria que silencia diante das leis criadas pelos homens em seus poderes sobre as mulheres, algumas escritas, outras não, apenas faladas ao pé do seu ouvido enquanto molestam as mulheres com a força da Lei máscula, com L ("ele") maiúsculo, e todo seu vigor. Mesmo impedidas de filosofarem, as mulheres nunca deixaram, por certo de pensar e, ao fazerem isto, filosofarem tanto quanto homens ainda que não tenham sido ouvidas por eles.

A história de Hipátia (ou Hipácia) de Alexandria retratada no filme Ágora, pode ser vista como a história de toda a opressão das mulheres em seu pensamento quando um fundamentalismo cristão chega ao poder pelas sagradas escrituras da Bíblia e domina Alexandria, primeiro destruindo os símbolos da religião egípcia considerada pagã, depois massacrando e expulsando judeus em mais de um seus exílios. Contudo, visto deste modo, o filme se torna menor e tão pouco importante do ponto de vista filosófico, para o qual há muito mais importância em seu relato do que pode supor uma vã filosofia. Reduzir a história de Hipátia a de um mulher que sofreu nas mãos de homens por conta da fé máscula deles, pode ser tentador para uma valorização da mulher, não, porém, dela como filósofa, segundo o filme a representa.

É por representar a filosofia em sua máxima importância na vida de Hipátia que Ágora é um filme extraordinário, digno de menção pelas questões filosóficas que apresenta sobre cosmologia, ética, liberdade, amor, piedade, política e, sobretudo, sobre a fé, não a que move montanhas, mas a que é movida pelo ódio contra tudo e contra todos que não seguem a mesma religião que si. O título do filme no original em relação ao divulgado no Brasil é muito mais representativo, pois Ágora é o lugar onde todas estas questões entram em discussão e ver a discussão destas questões no filme é, de certo mais importante, do que simplesmente vê-lo como o filme de uma filósofa, apesar de que o fato de ser de fato sobre uma filósofa coloca uma questão ressaltada por Nietzsche muito bem. No caso, o fato de que se a verdade, e a verdade também de um ponto de vista filosófico, fosse uma mulher, ela foi muito mal cortejada pelos homens até sua época, e não por menos ainda na nossa.

Todavia, a verdade, apesar de feminina, não é uma mulher, pois se fosse seria algo transcendente como uma ideia ao homem a qual ele devesse se entregar ou se submeter em amor platonicamente, e é pouco provável que Nietzsche pense a verdade como uma Ideia platônica, muito pelo contrário. A verdade, para Nietzsche, é algo imanente a cada ser humano e filosofar não é, também para ele, uma questão de gênero, ainda que se possa colocar desta perspectiva social e historicamente. Mas é inegável que, feminina, a verdade adquire um peso que os homens dificilmente suportam e uma gravidade cuja força os atrai sem que eles saibam muitas vezes porque e adquire uma profundidade insondável como a de muitas mulheres para homens que pretendem dominá-las e para os quais elas são transcendentes.

Vista sob este aspecto de gênero, a questão de quem está com a verdade sempre foi uma questão masculina, tratada por homens a ferro e fogo, antes de ser tratada por mulheres. No inicio do filme Ágora, temos uma dimensão deste tratamento da verdade a ferro e fogo quando o ódio move a fé dos homens na verdade das palavras consideradas por eles como sagradas. Egípcios, cristãos e judeus disputam com todo o ódio que os une quem detém a verdade da palavra de Deus e como a verdade deve ser seguida pelos homens. Não importa neste caso a religião, apenas o ódio que move a fé deles em Deus e contra todos os outros que não acreditam na fé deles até que todos sejam totalmente destruídos.

O ódio que move a fé dos religiosos egípcios, cristãos e judeus em busca da verdade no início do filme, contrasta absurdamente com a busca da verdade da filosofia, astronomia e matemática, além de ética e política que Hipátia ensina na biblioteca de Alexandria. Uma busca que não incentiva o ódio entre as diferenças, mas busca fazer com que conflitos que surjam a partir delas se dissipem, como ao demonstrar para seus estudantes o primeiro axioma de Euclides: "Duas coisas iguais a uma terceira, são iguais entre si." Neste caso, a terceira coisa equivalendo às duas outras e, portanto, resolvendo qualquer conflito entre si. Porém, a filosofia demonstrada por Hipátia em sua busca de harmonia na matemática, nos astros e na ética e política, não é tão simples como este axioma, como ela percebe em seguida não podendo admiti-lo em sua própria vida.

Sob este aspecto, pode-se pensar que existem duas buscas da verdade, a masculina e a feminina, esta mais dócil do que aquela. Contudo, quem cai novamente nesta questão de gênero, desconhece como há vigor na docilidade e docilidade no vigor. Este talvez tenha sido o desconhecimento de Nietzsche em relação ao cristianismo ao dizer que ele busca fazer das pessoas dóceis ou domesticadas ou que qualquer religião faça isto como ópio do povo, como diz Marx. Não são pessoas dóceis que as religiões produzem historicamente e todas as armas abençoadas por religiosos demonstram isto, quando não é a própria religião que motiva o empunhar de armas com ódio em nome de Deus.

A vitória do cristianismo no mundo não parece ser o resultado de uma domesticação que resulta numa apatia do homem como Nietzsche pensou. Pelo contrário, ela parece muito mais o resultante de uma força e vigor que conseguiu dar ao homem para ser senhor e não mais escravo no Egito antigo e que, com tal, conseguisse oprimir outras religiões e seus fiéis como demonstrado no filme Ágora que, se não é fiel à realidade, não é muito diferente dela, como bem sabem os indígenas americanos e de muitos outros lugares do mundo. Obviamente, esta força e vigor não são virtuosas do ponto de vista de Nietzsche, já que são movidos pelo ressentimento e pela culpa, mas demonstram mesmo assim que a história do cristianismo como a de toda fé é feita mais por ódio do que por amor ao próximo. E apesar deste ódio poder ser observado mais em tempos idos do cristianismo, quando ele não detinha poder sobre muitos, e se poder de fato falar de uma domesticação do ser humano pela religião, há ainda uma força e vigor latente nos gritos de muitos cristãos ao se imporem contra aqueles que não querem escutar a verdade de sua fé religiosa.

Se não há precisão histórica no filme Ágora, tão pouco há imprecisão no modo com as religiões e seus fiéis tratam aqueles que não pensam como eles, em particular, os filósofos. Não apenas Hipatia, mas também Orestes sofre com isto, por indagarem filosoficamente aquilo que é inquestionável para qualquer religioso, a sua própria fé, mesmo diante de todo o mal que ela produza, pois todo mal se torna um bem aos olhos da fé em Deus. Hipatia mais do que Orestes, e estes mais do que Davus sabem disso, pois cada um a seu modo é obrigado a questionar a fé movida pelo ódio de muitos religiosos.

Não é difícil, deste modo, sentir empatia por Hipatia enquanto filósofa e pela filosofia que ensina ainda mais que o que ensina é algo decisivo para a ciência moderna no que diz respeito à concepção do cosmo ou da ordem do universo como geocêntrica ou heliocêntrica. Mais ainda é impossível não deixar de sentir uma empatia com sua angústia em salvar os papiros da biblioteca de Alexandria e com a busca por solucionar aquela questão, ou ainda quando a resolve sem saber o que significa esta resposta quando está no barco e o compara à própria Terra em movimento em volta do Sol, enfim, quando resolve a questão do movimento da Terra e não acredita que isto possa ser verdade. Sobretudo não é difícil sentir empatia com ela quando diz que acredita na filosofia e ao dizer isto sentirmos toda a força de uma vida dedicada ao amor ao saber e não ao ódio àqueles que sabem de modo diferente do que se sabe. Por fim, não é difícil sentir empatia com ela ao politicamente defender a filosofia e ser morta por isto como Sócrates o foi antes dela, mas de um modo totalmente dele tratado como homem, pois foi ela sem direito a qualquer libação de seu corpo torturado de mil maneiras até a morte.

A empatia que todo filósofo sente ao ver o sofrimento de Hipatia é por saber que, mais ou menos, não está imune ao que foi feito a ela. Se os seres mudam em seu constante devir na terra e o ser humano também muda neste sentido, e toda história muda a partir da mudança dele, para os filósofos há uma só e mesma história de dor e sofrimento infligidos por todos aqueles que o fazem sofrer por amarem o saber. Mas independente desta história de dor e sofrimento que vivem, suas vidas continuam amáveis como sempre por buscarem o amor ao saber e não o ódio que move a fé de muitos, como Hipátia de Alexandria buscou durante toda sua vida com filósofa.

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