A vida sem portas, janelas e paredes
Uma vida sem portas, paredes e janelas é para muitos uma prisão, não para a arte. Muito menos para a arte de Fernanda Meireles em sua Loja sem paredes, ou ainda, se pensarmos nas mônadas de Leibniz, substância simples, Átomos da natureza, Elementos das coisas nas quais o mundo se espelha e que é senão sem janelas, e sem paredes, porque é sem partes, como diz em seus Princípios da filosofia ou A Monadologia, apesar de Deleuze as ter imaginado como uma casa barroca com todas as suas dobras, dividida em partes claras e sombrias, semelhante ao corpo em suas sombras e luzes interiores.
Pensar um mundo sem portas e paredes como pensa Fernanda e Leibniz não é tarefa fácil. Ser uma mônada ou viver numa mônada sem portas, janelas e paredes parece angustiante se imaginarmos como Deleuze a mônada como uma casa, não a barroca, na qual há senão janelas, mas uma casa na qual não possamos entrar ou sair, ou mesmo vislumbrar algo fora dela, pois não há portas e janelas, ou ainda, que não nos proteja dos outros, porque sem paredes, como a loja de Fernanda. Ou ainda, se pensarmos a mônada como nosso próprio corpo sem qualquer sentido que nos faça entrar em contato com o mundo exterior ou nos proteger dele. Neste sentido, por um lado, é preciso que tenhamos portas para entrar e sair, e, por outro, que haja divisões que nos separem dos outros seres, mesmo que estas divisões apenas dobras de nós mesmos como mônadas.
Aquilo que é impossível ao pensamento, porém, se consegue com arte, pois a arte destrói tudo que é próprio, isto é, tudo que é particularizado em partes, e os transforma em coisas simples, em mônadas que entram nos compostos. É através dela que podemos pensar como Leibniz na simplicidade da vida como mônada e como nos mostra Fernanda com suas frases curtas e imagens. Uma vida diferente da vida dos compostos, pois começa e acaba instantaneamente por começar "por criação e acabar por aniquilamento, ao passo que o composto começa e acaba por partes". (Princípio 6)
Somente por arte se começa e se acaba algo instantaneamente, ou ainda, se cria e aniquila de uma vez só. É por meio da arte que as mônadas entram nos compostos já que a arte destrói todas as portas, janelas e paredes e faz de tudo uma só simplicidade, uma mônada, que é senão diferente de todas as outras e é necessário que seja diferente, como diz Leibniz:
9. É mesmo necessário que cada Mônada seja diferente de qualquer outra. Pois nunca há, na natureza, dois seres que sejam perfeitamente idênticos e nos quais não seja possível encontrar uma diferença interna, ou fundada em uma denominação intrínseca.Se a arte torna tudo que é composto em simples e nos faz perceber a simplicidade de cada coisa como mônada, ou ainda, a simplicidade de cada ser como mônada ou coisa que espelha o mundo em sua simplicidade, é, portanto, porque cada coisa que existe no mundo é diferente e é preciso que percebemos a diferença delas em sua simplicidade através da arte. Em seus postais, quadros, canecas, zines, em tudo que toca, Fernanda Meireles como artesão das palavras e das imagens nos faz perceber o mundo em suas mônadas simples e diferentes, e como Leibniz nos faz pensar que a diferença é ser simples e é simples ser diferente. Pelo menos seria, se não houvessem outras mônadas que, por assim dizer, negam a si mesmas em sua simplicidade e diferença e querem que tudo seja igual e composto de partes: portas, janelas e paredes que dividam todos os seres impondo-lhes a verdadeira prisão, aquela que não se enxerga de tanto já estar acostumado como ela, como a caverna de Platão.
As portas, janelas e paredes que são impostas à nossa vida cotidiana, por onde entramos e saímos e nos fechamos em si mesmos são nossas verdadeiras prisões das quais a arte nos liberta para ver a vida de modo simples e diferente como uma mônada. O fato de não ter portas, janelas ou paredes, não quer dizer que vivamos numa prisão ou completamente inseguros, mas que simplesmente não precisamos de portas, janelas ou paredes que espelhem o mundo em nós, pois somos e estamos neste mundo. Somos o mundo na medida em que nos sentimos de modo total como um corpo, vivendo a vida cotidiana, em contato com tudo que nos cerca sem qualquer restrição, pois todo o corpo é perceptível, isto é, percebe o que está em volta e, deste modo, se apropria de tudo e se desfaz propriamente em tudo. A cada momento, o corpo é destruído em sua propriedade, mesmo que evite que algumas coisas o penetre e o fira. Ele todo é sem portas, janelas e paredes que nos impeçam de entrar em contato com o mundo, pois nos coloca totalmente em contato com o mundo e não podemos evitar isto, mesmo que em pensamento, quando através do pensamento queremos nos afastar de tudo e de todos. Em contrapartida a isto, estamos no mundo na medida em que, sem portas, janelas e paredes, estamos completamente imersos na vida que é, por acaso, nossa, mas principalmente, de todo o mundo, pois toda vida é pública, ainda que se faça privada, queira se privar do mundo. A mônada, deste modo, não precisa de portas, paredes e janelas, porque ela é o mundo em si mesmo vivido de modo simples e diferente, sem qualquer receio ou temor, pois não "há dissolução a temer" em relação às mônadas e à arte.
Fazer ver a vida sem portas, janelas e paredes é o que faz a arte, simples e diferente como a de Fernanda Meireles, e a filosofia, como a da monadologia de Leibniz, que é tão artística quanto a arte, ainda que se limite a conceitos e pensamentos, que parecem fechados e sem janelas, como mônadas, mas são sobretudo abertos a qualquer um que os queira pensar simples e diferente. Filosofia e arte não se separam nunca e nos fazem sempre viver felizes, sem portas, paredes e janelas. Pois, diferente do que pensam muitos, filosofia e arte não nos fazem fugir da vida e, sim, nos encontrar nela, pois melhor que fugir é ter onde se encontrar.
Para Fernanda Meireles,
por todos os pensamentos felizes que ela desperta
com sua arte e simplicidade.
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