A velhice e sabedoria de Mr. Morgan


Velhice e sabedoria sempre andam juntas ao longo dos tempos. Há como que uma lei tácita de que uma leva à outra ou que não se pode chegar a uma sem chegar à outra. Ficar velho é sinônimo de se tornar sábio e ser sábio ser ao mesmo tempo velho. No filme Último amor de Mr. Morgan (Mr. Morgan's last love, de Sandra Nettelbeck, 2013), não é diferente e principalmente por isto é tão sensível como outros que abordam a vida sem esquecer que a morte lhe é parelha. Parelha e não oposta, pois a morte não é uma oposição à vida como geralmente se supõe, mas o que a vida é quando deixa de ser para que a morte advenha e, com ela, outra vida.

A proximidade da morte, talvez se diga, é o que torna as pessoas sábias, pois as faz pensar na vida. É pensando na morte que muitas pessoas mudam o que são, tornam sua vida diferente ou se tornam literalmente pessoas opostas ao que eram antes, em geral se preocupando mais com a vida, querendo viver mais, fazendo coisas que não fez ainda ou que gostaria de fazer e nunca teve coragem para isto. Morgan Freeman e Jack Nicholson demonstraram isto em outro filme, Antes de partir, (The Bucket list, de Rob Reiner, 2007), fazendo algo relacionado à juventude, num retorno a um tempo em que podiam fazer tudo, mas não fizeram e, agora, velhos, prestes a morrer, se dispõem e podem fazer. Não é isto que acontece, porém, no Último amor de Mr. Morgan, cujo título também engana aqueles que pensam que, por se tratar de um filme sobre um velho que se aproxima de uma jovem, Pauline, talvez pareça que seu último amor seja o desta jovem, quando, na verdade, como no ditado, se trata do primeiro.

Não é tão pouco viver mais o que o velho Sr. Morgan quer também como se pode perceber no início do filme e que nem a presença de Pauline consegue desfazer, senão confirmar que já não lhe resta mais nada na vida, pois já descobriu tudo, algo que, como diz Pauline a ele, só se descobre com a morte, e que ele descobrira segundo pensa com a morte de sua esposa, sobre a qual fala num discurso que é um dos mais românticos já filmados dizendo que ela era tudo para si e sem a qual ficou sem nada e não poderia mais viver. Romântico, porém, não por ser feito por uma pessoa velha que demonstra que ainda ama sua esposa, mas porque se refere ao amor e ao que é amar incondicionalmente uma pessoa e que somente se pode descobrir isto quando se conhece alguém para quem se doe toda a vida, isto é, morra por ela, morra para que ela viva. Algo que ele diz literalmente a seu filho, Miles, numa das brigas que os impedem de se reconciliar, ao dizer que daria tudo para ficar no lugar de sua esposa falecida.

É difícil não se emocionar com um filme que desde o início é perfeito, não porque seja o melhor filme a ser feito em competição com outros, pois a perfeição neste caso é como Morgan define o amor ou amar, geralmente visto como sendo por algo que lhe distrai na vida, isto é, como um prazer por ter algo ou proporcionado por algo, mas que é esta doação de vida a algo, como a morte Ã© para a vida e vice-versa, e, segundo Heráclito, não uma oposição de contrários, mas a união por uma separação. Isto porque é separando-se a vida e a morte que ambas podem existir contrariamente, ou ainda, se unir em sua contrariedade, surgir uma harmonia entre elas, e, assim, morrendo se vive a morte e vivendo se morre a vida. Vida e morte como uma só e a mesma coisa segundo o Logos de uma harmonia invisível, a felicidade que não está nos prazeres do corpo, segundo ainda Heráclito, mas na sabedoria. Se o encontro com a morte, como em outro filme, Encontro marcado (Meet Joe Black, de Martin Brest, 1998), nos faz rever a vida e a faz querer vivê-la de outro modo, um modo até então desconhecido e estranho, no Último amor de Mr. Morgan é a morte que se quer viver, nesta contradição imperdoável que é o suicídio e a eutanásia, mas que Heráclito soube conhecer tão bem em seu Logos, pois um só vive se outro morrer, e, reciprocamente, outro só vive se um morrer, vida e morte, um e outro, não se opondo, mas deixando de ser para que outro ser exista.

A vida e a morte não estão em uma oposição, mesmo que em luta e em guerra constante como diz Heráclito, pois não há oposição em sua contrariedade, em seu contraste, apenas uma mudança constante de uma na outra, de uma para a outra e não pela outra. A morte não muda a vida nem esta muda a morte. Ambas mudam conforme sua própria medida, ambas deixando de ser para que a outra exista. A velhice, neste sentido, traz a sabedoria não porque aprende-se mais sobre a vida ou se vive mais os prazeres do corpo antes de morrer, mas porque a sabedoria está em que tudo tem o seu tempo, isto é, a sua medida, a sua lei, ou ainda, a sua metade, a que lhe faz sempre falta quando não está mais presente, como é a esposa para o Sr. Morgan, alguém sem o qual ele não vive, porque não vive sem o contrário dele, aquilo que é diferente de si, não simplesmente porque é mulher e ele homem, mas porque também fala outra língua, é de outro país e cultura que não a sua, e por quem ele decide abandonar sua própria casa e terra e para viver junto ainda que separados por todas as diferenças, vivendo todas estas mortes por ela, pelo amor a ela, como ela vive para ele e os filhos como esposa e mãe. No caso dos filhos, ele já não sendo um bom pai como admite, pois não soube doar-se a eles como ela e, talvez por isto, eles vivem afastado dele e este afastamento ou separação é também o que faz eles se harmonizarem, pois como diz também Heráclito, "separando-se, podem harmonizar-se", como na velhice, em que a sabedoria nos traz não um apego à vida, mas uma harmonia com a morte na medida em que nos separamos cada vez mais da vida, isto é, de tudo em relação a ela, coisas muitas vezes fúteis que nos fazem pensar que estamos vivos.

Como em outro filme, Amor (Amour, de Michael Haneke, 2012), Último amor de Mr. Morgan mostra o que é não a velhice ou o amor, mas envelhecer amando alguém que se ama tanto que se chega a odiar, pois em determinado momento o amor se transforma em ódio pela pessoa amada, isto é, o amor deixa de ser o que é para o ódio passar a existir numa guerra de sexos constante, mas também o ódio deixa de ser para que o amor exista e assim se passa o tempo quando se é casado, se faz o sacrifício de amar alguém por toda a vida. Se amor é sacrifício, neste caso, não é por uma recusa ao prazer, mas por um deixar de ser si por quem ama, o que se faz por poucos nesta vida e não se pode deixar que nada se interponha, no caso, que destrua o amor ou o impossibilita, como diz Matthew Morgan a seu filho Miles, pois foi o que fez em relação à mãe dele. Um sacrifício que é, porém, também o de se deixar partir, o de uma separação, pelo divórcio ou pela morte de quem se ama, em todos os aspectos um sacrifício que é um deixar de ser um para ser outro ou para que outro venha a ser, mesmo que este deixar ser sacrificial seja para que As Invasão Bárbaras (Les invasions barbares, de Denis Arcand, de 2003) dominem a si e a morte seja inevitável na contradição absoluta de vida e morte no suicídio e na eutanásia.

Se há uma beleza, por fim, no Ãšltimo amor de Mr. Morgan, portanto, é a de uma morte que não é mais terrível, mas desejável como a vida quando já se descobriu tudo sobre ela, algo que o filósofo Sr. Morgan (pois ele foi professor de filosofia) descobriu depois de a viver conforme sua medida, sem apressar seu tempo, antecipando a morte por desespero, mas, sobretudo vivendo a morte a cada dia, e, a cada dia, morrendo a vida novamente em seu Logos até que sua velhice encontre a sabedoria da vida e da morte, quando se tornam uma só e a mesma coisa, como dizia Heráclito.

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