WhatsApp?


Recentemente, um juiz decretou mais uma vez o cancelamento da empresa de telecomunicação WhatsApp deixando milhões de pessoas sem o serviço prestado por esta empresa. O cancelamento mais uma vez foi devido à recusa dela em fornecer informações sobre um de seus usuários, mesmo que ele seja um possível criminoso, pois fere o contrato de privacidade estabelecido entre ela e seus clientes no momento em que estes se cadastram para utilizar os seus serviços. Por mais que isto pareça uma questão privada da empresa em si e afetar apenas indiretamente milhões de pessoas, a questão é bem mais complexa se considerar o fato de que é uma empresa defendendo o contrato de privacidade que estabeleceu com milhões de pessoas que não são criminosas e um juiz defendendo a quebra desta privacidade por causa de apenas um indivíduo, provavelmente criminoso caso seja sentenciado assim. Até que ponto um ente público, o juiz como representante do Estado e o próprio Estado pode invadir a privacidade das pessoas, ou ainda qualquer pessoa privada pode fazer isto, invadindo a privacidade de pessoas mesmo estas sendo consideradas possivelmente criminosas como fazem alguns hackers, é o que está em questão neste problema, mas em tudo envolvendo o avanço das tecnologias da comunicação no relacionamento das pessoas, seja ele amistoso, seja criminoso.

A privacidade é o principal problema envolvendo as tecnologias atualmente e ele diz respeito a toda a vida social em suas diversas relações, como se pode observar neste e noutros casos. Estas questões de privacidade envolvem empresas privadas quanto às tecnologias patenteadas por uma empresa e que lhe são privadas, mas que são copiadas por outra empresa, o que isto é uma querela judicial antiga no Vale do Silício desde o surgimento dos computadores e seus periféricos. Outras questões de privacidade dizem respeito à relação entre empresas e pessoas físicas, principalmente quando o "compartilhamento" de produtos indevidos de empresas detentoras de seus direitos autorais ou de criação passou a ser comum através do compartilhamento de todo tipo de produtos na Internet, principalmente envolvendo direitos autorais de músicas, vídeos e livros, e todo tipo de bens culturais, não necessariamente roubados, mas compartilhados sem a devida autorização dos detentores dos direitos de criação dos produtos. Em contrapartida a esta questão de privacidade envolvendo empresas e pessoas físicas, há a questão de privacidade entre as pessoas físicas no que diz respeito ao compartilhamento de produtos referentes a elas, particularmente produtos visuais, de áudio e audiovisuais, que ela produz para si de si mesma, no caso, imagem de si em fotos, seus pensamentos em textos ou em áudios gravados, ou suas imagens e áudios em vídeos. Por fim, esta que envolve diretamente o caso do WhatsApp, que é a questão da privacidade envolvendo as pessoas físicas enquanto cidadãos e empresas privadas em relação aos entes público-privados do Estado que inverte a questão de privacidade, pois faz com que ela deixe de ser um problema, para ser a solução de um problema, no caso, o problema do Estado em relação aos cidadãos que ele suspeita que são criminosos e quer obter provas disso por meio de uma coerção legal, isto é, por direito, no caso, ao fazer com que todos os cidadãos representados pelo Estado aceitem que a privacidade deles e de quaisquer cidadãos seja invadida por uma questão de segurança, nacional ou de suas vidas.

O motivo pelo qual o Estado representado pelo juiz que decretou o cancelamento do WhatsApp, mas visa fazer valer também em outros casos a todos os cidadãos, foi muito bem esclarecido pelo filósofo Benedictus Espinoza em seu Tratado político, de 1677:
...os perigos que ameaçam a cidade (isto é, o 'corpo' do Estado, segundo ele) têm por causa cidadão mais do que os inimigos do exterior, pois os bons cidadãos são raros. Donde se segue que aquele a quem o direito de comandar é entregue por inteiro receará sempre mais os cidadãos que os inimigos do exterior e, consequentemente, aplicar-se-á a defender-se a si mesmo e, em vez de salvaguardar os súditos (aqueles que 'têm que obedecer às regras instituída pela cidade, isto é, suas leis'), a enganá-los, sobretudo aqueles que a sua sabedoria tenha posto em foco, ou cujas riquezas tenham tornado poderosos. (1983, cap. VI, parágr. 6, p. 322. Os Pensadores)
Percebe-se nesta breve e extremamente lúcida explicação de Espinoza como a questão de invasão de privacidade se coloca em questão já em sua época a partir da qual todo cidadão deve se defender em relação ao Estado quando este considera os cidadãos como perigosos, não apenas um, mas todos, tendo em vista a ameaça que eles mais causam à cidade do que inimigos do exterior. É contra seus próprios cidadãos que o Estado defende, portanto, uma invasão e privacidade e se coloca contra uma lei de privacidade, que serve para defender os cidadãos em relação a outros cidadãos, deles em relação às empresas, e estas em relação a outras empresas e estas de outras, mas não pode ser utilizada, segundo os juízes, para defender os cidadãos em relação ao próprio Estado como ente público, representante de todos os cidadãos, mas também privado, defensor de si mesmo, que salva-guarda de todos os cidadãos seus próprios interesses, e se põe contra eles caso exponham esta sua intenção, caso adquiram riquezas que os tornem mais poderosos do que o Estado, como no caso das empresas de telecomunicações.

É óbvio que o Estado vai contra uma lei de privacidade de cada cidadão e empresa privada quando juízes tomam decisões como a que foi tomada em relação ao WhatsApp. É óbvio também que ações deste tipo de seus representantes legais vai contra o princípio liberal e neoliberal de não intervenção em ações comerciais, no caso, a do WhatsApp com seus clientes, quando não há lesão de uma parte ou de outra, que pode ser tanto um cidadão, mas outras empresas também. Bem como é óbvio o interesse do Estado em invadir a privacidade das pessoas tendo como motivo a "segurança" de suas vidas, pois como esclarece também Espinoza, "considerando o fim em vista do qual um estado civil se funda; este fim não é senão a paz e a segurança da vida" (cap. V, parágr. 2, 1983, p. 320)" e, portanto, "a virtude necessária ao Estado é a segurança"(cap. I, parágr. 6, 1983, p. 307).

Contudo, é importante considerar a advertência de Espinoza de como o Estado e seus representantes por direito ou mesmo muitos cidadãos que o têm como seu representante não visam salvaguardar os súditos, isto é, defender a paz e segurança deles, mas enganá-los e aterrorizá-los com a possibilidade de invadir sua vida privada, bem como com a possibilidade de lhes tirar toda e qualquer segurança de vida, colocando-os em risco constante como os piores inimigos do Estado, como diz Espinoza, e não é difícil se perceber atualmente quando o terrorismo de pessoas pertencentes a outros Estados estimula cada vez mais um terrorismo de cada Estado em relação a seus cidadãos com cada vez mais invasão de sua privacidade.

É preciso ter em mente estas questões no que diz respeito à privacidade das pessoas enquanto indivíduos, clientes ou cidadãos, pois a privacidade é um direito humano inalienável no qual toda pessoa tem direito sobre si mesma (em seu corpo, sua alma e suas criações e produções) e que não pode ser invadida ou usurpado algo de sua privacidade sob qualquer circunstância do modo como tem sido feito pelos juízes, de modo que ela deve se reservar neste direito não podendo expor nada, absolutamente nada, sobre si por meio de coerção legal ou violência física (tortura), e, muito menos, no que diz respeito ao direito brasileiro, a produzir provas contra si própria expondo informações que a incrimine de algum modo, como no caso do WhatsApp e de qualquer cidadão cliente dele.

Por fim, parece óbvio, em relação a um Estado de direito, tal como Espinoza o expõe, que a segurança e a vida humana de todos os cidadãos sobrepõe-se ao direito de informação que o juiz e o Estado pretende ter sobre todos os cidadãos. Neste sentido, se uma pessoa expõe informações quando julgada de crimes para seu próprio benefício com a redução de pena (delação premiada), estas informações não podem ser obtidas a partir um crime maior que é a invasão de privacidade que causa a ausência de paz e segurança da vida de todos os cidadãos posta em risco com o poder do Estado de invadir suas vidas.

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