A linha do coração


Quando adolescente, deixei uma amiga que lia mãos ler a minha mão, mesmo que não acreditasse muito nisso, e ter feito isso mais por brincadeira e curiosidade. Depois de ler a minha linha da Vida e da Cabeça, e me dizer algumas coisas sobre elas não quis, porém, naquele momento, que ela lesse a minha linha do Coração. Porém, em seguida, depois de me questionar o porque de negar isto, voltei a ela e pedi que ela a lesse, mas, então, foi ela que não quis ler a minha linha do coração.

Em relação ao coração, sempre estão relacionados o amor e o desejo que, na filosofia, desde Platão, sempre se opõem, assim como na vida cotidiana, como demonstra muito bem a música Amor e sexo, de Rita Lee, num jogo de oposições dialéticas em que um sempre exclui o outro apesar de estarem sempre juntos. A oposição que Platão faz entre amor e desejo, ou sexo, está diretamente relacionada à tradição que vê no desejo algo ruim, que leva ao engano e ao desatino, que faz cometer loucuras, que não deixa o filósofo pensar, e que está diretamente relacionado ao corpo, enquanto o amor é aquilo que está relacionado à alma, que a encaminha à sabedoria na medida em que ela controla o corpo e todos os seus desejos, sobrepondo-se a ele como um senhor a um servo. O que, deste modo, a filosofia é, para Platão, senão o que tradicionalmente se diz dela, um amor à sabedoria, e não propriamente um desejo de saber, como também se costuma dizer a seu respeito.

Se Platão soube tão bem separar o amor do desejo, ele também soube muito bem opor aquele a este, de um modo que por muito tempo se acreditou que apenas o amor é importante, e não o desejo. Passou-se, então a reprimir o desejo e o corpo de todas as formas possíveis e imagináveis em nome do amor à sabedoria, mas também em nome do amor a Deus, de tal modo que o desejo passou não apenas a ser reprimido como um problema num determinado momento, mas a ser um problema originário, uma culpa originária, um pecado em relação a Deus. Neste sentido, o corpo no qual o desejo se manifesta passou então a ser violentado cada vez mais em nome da alma e do amor a si mesmo e a Deus por meio de torturas tão infindas quanto o desejo e tão atrozes que somente os que amam a si mesmo e a Deus deste modo podem explicar.

A oposição do amor ao desejo se tornou, por sua vez, uma obsessão histórica ao ponto de ambos não poderem andar juntos na alma dos filósofos, dos religiosos e de muitos outros no cotidiano e o desejo e o corpo, de tão reprimidos e violentados, foram esquecidos na alma das pessoas como aquilo que é um mal. Baruch Espinoza, filósofo holandês do século XVII, foi um dos primeiros a repensar esta história e ver no desejo e no corpo algo que não era mau e que, ao contrário do que dizia Platão, não é algo que nos opõe à sabedoria, mas nos leva a ela, pois conhecendo nosso corpo e desejos conhecemos também nossa vida movida por eles. Não é, assim, opondo amor e desejo, alma e corpo, que vivemos uma vida feliz segundo Espinoza, mas fazendo-os caminhar paralelamente, pois o que acontece no corpo acontece na alma, seguindo seu famoso paralelismo, e desejo e amor caminha também juntos.

Mas foi com Freud que a paranoia criada em torno da oposição do amor e desejo, tanto platônica como religiosa, começou a ser intepretada, em parte pela filosofia ética de Espinoza, quando o corpo e os desejos que se manifestam nele passaram a ser interpretados pela psicanálise do ponto de vista do inconsciente diante de toda a repressão, violência e castração que sofriam constantemente. Contudo, como demonstrou a esquizoanálise de Guattari e Deleuze, ainda que talvez inspirado por Espinoza, Freud tornou ao platonismo e à religião buscando nestes algo que confirmasse sua teoria da castração do corpo e seus desejos que estava senão presente de modo indiscutível neles, posto que tanto num como na outra, o corpo e o desejo eram senão castrados, metaforicamente no caso deste e literalmente nos casos daquele. E a partir de uma leitura ao mesmo tempo platônica e religiosa, esta castração se tornou em Freud senão mítica na leitura que ele fez do mito de Édipo, no qual o desejo passou a ser visto a partir de então como algo extremamente nocivo não apenas para a alma do indivíduo, mas para toda a sociedade, já que Édipo, movido por um desejo cego de conhecimento ou de sabedoria, isto é, inconsciente, matou o pai e casara com a mãe.

Se, segundo Freud o desejo manifesto no corpo enquanto inconsciente deveria ser conhecido cientificamente pela psicanálise, ele não era, por sua vez, tão valorizado por ela, pois poderia destruir a família, o amor filial, o amor da philia, o amor pelos pais, pelos irmãos, o amor fraterno, a amizade, como no caso do mito de Édipo que, com Freud, se tornou complexo. Se o desejo levava ao mal, Freud mostrou a partir do mito de Édipo do que os indivíduos movidos pelo desejo poderiam fazer, de modo que o desejo passou a ser complexamente entre tantos e outros desejos possíveis, um desejo de matar, um homicídio, e um desejo de incesto, isto é, de ter relações sexuais com quem não se pode ter, em outras palavras, de violentar, um desejo de violência. Se é óbvio que é necessário reprimir o desejo de matar ou de violentar, e o mito em outras palavras quer dizer também isto, muitos seguidores de Freud e da psicanálise não deixaram de fazer da repressão e da castração dos desejos do corpo novamente uma obsessão, tal como na filosofia e religião de muitos, mas, agora, não mais por amor à sabedoria ou a Deus, mas à ciência, ao conhecimento científico. E, deste modo, a castração que fora o princípio do conhecimento psicanalítico, se tornou o fim da própria psicanálise, o objetivo a ser perseguido por ela de formas tão imagináveis quanto as dos religiosos medievais com suas torturas ao corpo para que o desejo que se manifestava nele morresse de uma vez por toda.

Em comum, filosofia, religião e ciência psicanalítica fizeram valer historicamente, portanto, a oposição do amor da alma ao desejo do corpo ao ponto de cometerem as maiores atrocidades já conhecidas pelos seres humanos em nome da sabedoria, de Deus e do conhecimento científico. Até que ponto amor e desejo se opõem e devem se opor, eis a questão que se coloca em relação a elas e a todos os seres humanos. Isto porque é importante pensar, como em Espinoza, que o amor da alma e o desejo do corpo não se opõem, mas caminham juntos como duas mãos que alheias totalmente uma a outra não produzem nada, apenas juntas. Aprender que o desejo nos impele sempre ao conhecimento daquilo que não conhecemos, isto é, daquilo que é o outro, e não conheceríamos nada se não fosse ele neste caso. Que é desejando que buscamos conhecer o outro e a nós mesmos como outros, conhecendo as mudanças que acontecem em nós, a nós, em cada momento que deixamos de lado um eu solipsista e egoísta e nos deparamos com a objetividade do outro, que está na nossa frente ou é nós mesmos e não enxergamos ou não queremos enxergar. Outro que é também um Deus ou uma Deusa para nós em sua sabedoria, beleza e bondade que somente conhecemos quando deixamos de negar o desejo e o corpo que nos move a ele, de se opor ao desejo e ao corpo cegamente querendo ver apenas nós mesmos.

É importante pensar ademais que se o desejo do corpo é múltiplo como Platão soube perceber bem, ou ainda, uma multiplicidade como souberam perceber melhor ainda Deleuze e Guattari, o desejo não é uma falta - de conhecimento, segundo a filosofia, de Deus, segundo a religião, ou de sociabilidade, familiar em princípio segundo a psicanálise freudiana - a qual somente se compensa de forma obsessiva, paranoicamente numa neurose, psicose ou perversão de qualquer modo autoritário e violento, ou mesmo esquizofrenicamente. Pelo contrário, o desejo do corpo é sempre um saber, algo divino e uma sociabilidade, pois o desejo é aquilo que nos faz encontrar o outro, o Outro ou outros, que não encontraríamos sem ele, permanecendo imutavelmente estáticos em nossa alma. E diferentemente do que se pensa, o desejo não é desejo de algo que falta, algo que está ausente, de que não se sabe o que é, pois o desejo sempre sabe o que quer, mesmo quando não sabemos dizer o que se deseja, mesmo quando o que se quer é inconsciente a nós, pois é o desejo que nos faz encontrar sempre algo e sempre encontramos aquilo que desejamos, e se o desejo não é uma falta é porque ele é, sobretudo, a presença constante em nós mesmos de que queremos algo, mesmo que não saibamos dizer o que é.

A diferença do amor em relação ao desejo a partir disto é que, enquanto o desejo é múltiplo, uma multiplicidade que nos impele sempre ao outro, Outro ou outros como uma presença constante em nosso corpo, o amor nos detém diante do outro, Outro, outros e do próprio desejo que nos impele a estes. Detém-nos diante do desejo, porém, não detém o desejo, negando-o, mas porque, diferente do desejo, o amor é aquilo que nos faz parar diante do outro, Outro ou outros. Neste sentido, se o desejo é o que nos faz encontrar o outro, Outro ou outros, é o amor que faz destes encontros algo único e do outro um um, o Um, idêntico a nós, deste modo, fazendo-nos encontrarmo-nos no outro, Outro ou nos outros e não apenas a partir deles, de passagem, na movência dos desejos de nosso corpo.

Sem o desejo, não encontraríamos o outro, Outro ou outros, mas sem o amor, o outro, Outro ou outros, não seriam quem são para nós. Não saberíamos quem é o outro, não o veríamos o Outro como algo divino, não permaneceríamos ao lado dos outros pelo resto de nossa vida. Não pararíamos diante do outro, Outro e outros e contemplaríamos sua sabedoria, beleza e bondade em nosso desejo constante.

Se o desejo nos move em nosso corpo em relação ao outro, Outro, outros, cabe ao amor nos fazer parar diante dele e é senão por amor que paramos diante do outro, Outro, outros. Amar o outro, Outro, outros, neste sentido, é parar diante de quem destes sem negá-los, matá-los, reprimi-los, torturá-los ou violentá-los, diferente do que a história nos mostra em relação ao que a filosofia, religião e ciência fizeram ao outro como se o amasse de verdade numa obsessão por si mesmas como a de um ciumento que vê no outro não a si mesmo no outro, isto é, algo que tem uma identidade como si mesmo, mas algo que detém sobre ele um poder, que lhe é, por sua vez, uma propriedade e pode fazer o que bem entende, inclusive, impôr-lhe os maiores sofrimentos.

É sempre como uma parada diante do outro, Outro ou outros, que o amor se manifesta em nossa alma. Quando isto acontece, eis outra diferença dele em relação ao desejo, pois, enquanto, este é uma presença constante, o amor é a falta. Uma falta porque o amor é aquilo que se ausenta a nós e não percebemos senão quando paramos diante do outro, Outro ou outros quando somos impelidos a ele pelo desejo em nosso corpo. Uma falta que é não uma ausência oposta a presença do desejo, mas uma ausência diante da presença constante do desejo, como se desaparecesse em relação a ele, que se apresenta em nossos desejos, mas não vemos, senão quando paramos diante deles em relação ao outro, Outro ou outros que nos faz encontrar.

Se sabemos sempre o que desejamos, não sabemos nunca quem amamos. Eis porque o amor se manifesta enquanto falta ou ausência e diferente do desejo enquanto presença constante em nossa vida. Não sabemos onde ou quando encontrá-lo em meio a todos os nossos desejos, mas podemos encontrá-lo na medida em que desejamos. Por exemplo, quando desejamos ir ao banheiro e saímos de uma sala de aula e, em vez de descer uma escada, indo ao banheiro que fica no térreo para demorar um pouco mais e espairecer, resolvemos seguir em frente em direção ao banheiro que está no mesmo andar, muito mais perto, e ali, no meio do caminho, dobrando uma esquina sem que víssemos antes, olhando o verdejar dos cajueiros encontramos quem desejamos encontrar outrot dia, e paramos diante dele, parando no tempo e lugar em meio à conversa e amor que já ali sentimos por aquele outro, que passa a ser, então, divino e muitos outros que não conhecemos e desejamos conhecer mais e mais quem é em sua identidade.

Grandes história de amor são, deste modo, encontros inesperados não simplesmente porque encontramos alguém inesperadamente, mas porque o amor é algo inesperado, algo que não se manifesta em meio aos nossos desejos cotidianos e nem no que desejamos frequentemente. É deste modo que não por menos, a história de Romeu e Julieta escrita por Shakespeare, apesar de ser uma história comum em sua época, se tornou célebre e sinônimo do amor até hoje. Amar é algo inesperado em nossa vida, algo que se manifesta em nossa alma diferente do desejo que se manifesta em nosso corpo e que não aparece tão frequentemente quanto este. Isto não quer dizer que ele seja raro, mas que não o percebemos com a frequência com que percebemos nossos desejos, ou que ele seja mais ou menos importante por conta disso, mas que ele é algo que nos faz perceber o outro, Outro ou os outros de uma forma diferente da do desejo de nosso corpo.

O amor não se opõe ao desejo, ele é consequência dele. Se amássemos o outro, o Outro ou outros tanto quanto os desejamos, seríamos deveras felizes para sempre. Mas amar o outro, Outro ou outros é mais difícil do que desejá-los, e esta é talvez a derradeira diferença do amor em relação ao desejo, a facilidade com que podemos obter o outro, Outro ou outros que desejamos e a dificuldade com que nos detemos diante deles para vê-los, ouvi-los, sentir seu cheiro, tocar-lhes, degustá-los com nossa língua sem devorá-los como se fôssemos a Esfinge de Édipo e o outro fosse sempre alguém que nos mate ou matamos por amor ao saber, a Deus ou à ciência, ao fazer dos desejos obsessivos. Parar diante dos desejos do outro, Outro ou outros é algo inevitável àquele que ama, o que não quer dizer deixar de desejar, mas perceber num encontro que o desejo torna possível, um encontro com algo mais do que desejamos em alguns momentos e em alguns lugares, isto é, um encontro com o amor por alguém a quem dedicamos nossa vida para sempre enquanto ela durar, pois é isto que fazemos por amor, talvez a maior loucura que o desejo pode nos fazer fazer, desejar dedicar a alguém, um ser divino, a multiplicidade que é alguém em si mesmo que nunca temos ciência completamente de quem é, todo o espaço-tempo de nossa vida.

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