Em busca do movimento perfeito

Quando se pensa num movimento perfeito, pensa-se geralmente num movimento retilíneo uniforme, um movimento em que não há nenhum obstáculo que impeça o corpo em seu movimento. Isto quer dizer que, sem obstáculo, um corpo se move senão reto, porque não se desvia por nada, e, logo uniformemente num espaço, tempo e em sua velocidade. Deste modo, o movimento perfeito sendo aquele em que não nenhum obstáculo, empecilho ou dificuldade no seu caminho.


Apesar de toda sua preocupação com o movimento, mesmo considerando uma variação dele em sua uniformidade, em Newton como em toda a física clássica, o movimento é paralisado, como nas provas de física em que sempre "se mostra um carro em movimento" de um ponto a outro sobre uma reta e se pergunta quanto espaço, tempo ou em que velocidade ele se desloca de um ponto a outro, porém, sem nunca sair do lugar a não ser em nossa imaginação e pensamento. Isto acontece porque o movimento perfeito do ponto de vista da física newtoniana é um movimento que nega o próprio movimento, o mover-se do corpo, o próprio corpo, ou ainda, todos os corpos que estão em questão em cada movimento. No caso banal do carro na prova, não é levado em questão o movimento do vento como ar, um corpo que retém o carro em sua velocidade, a terra que o retém mais ainda em seu percurso, o desgaste das peças do carro, de quem dirige, enquanto corpos, o simples fato de ter ou não alguém do seu lado. Obviamente, isto não seria possível ser avaliado numa prova de física de ensino médio, mas esta é senão a deficiência da física newtoniana em relação movimento que Einstein demonstra com sua teoria da relatividade, ao expandir o campo de análise e prova destas circunstâncias. Uma relatividade que se poderia resumir dizendo que todos os corpos produzem a todo instante um desvio no movimento do corpo, um desvio do movimento pelo corpo, um desvio que é o próprio movimento de um corpo.

O desvio que um corpo produz em seu movimento é algo problemático desde Platão, para quem o corpo era um obstáculo para a alma como um mundo sensível em relação ao mundo inteligível da alma. O problema no caso era simples: o corpo em seus diversos movimentos impede a alma de pensar, apesar disto ou mesmo pensando nisto, propondo Platão um movimento dialético como pressuposto para um movimento ideal, isto é, um movimento absoluto, o da Ideia, tal como Newton proporá ser o movimento de modo retilíneo e uniforme, ou seja, ideal. No caso de Platão, apesar de se valorizar também o movimento, ele é negado de modo inteligível ou teórico pela Ideia absoluta, que é perene e imutável e qual considera ser o princípio do conhecimento e da physis, isto é, da natureza, a partir de uma reminiscência que é um movimento de retorno à origem do ser segundo a metafísica platônica. Deste ponto de vista, por fim, Platão propõe senão uma paralisia do corpo na medida em que ele deve ser governado pela alma e propunha a ginástica como exercício para o corpo, como uma forma de conter seu movimento disforme ou a deformidade de seu movimento a partir de um controle dele por ela, assim como a música e tudo mais que se pudesse limitar o corpo para que não impedisse a alma de pensar.

Apesar desta negação e denegação do movimento do corpo no desvio que ele produz em relação à inteligibilidade da alma, Platão percebeu este desvio na natureza dos corpos, um movimento que não é uniforme, diferentemente de Newton, para o qual mesmo a variação ainda não destitui o movimento de uma uniformidade. Deste ponto de vista se pode dizer a partir dele que a busca de um movimento perfeito não é algo próprio da física newtoniana em sua busca de explicação do devir da natureza de modo teórico, ou ainda, própria a Ideia de Platão como princípio do ser da physis, e, portanto, nem na Ideia e nem no movimento retilíneo uniforme ou uniformemente variado é possível encontrar o movimento da natureza em si mesma, por assim dizer, que escapa senão a eles em seu próprio movimento. E pode-se dizer também que se é possível encontrar uma perfeição do movimento na natureza é dele como movimento curvilíneo disforme no qual a retilineidade e uniformidade pensada por Newton e a Ideia de uma alma livre do corpo por Platão não acontece de fato, pois a física newtoniana não é uma física relativa, como a de Einstein, e, sim, absoluta, tanto quanto a Ideia metafísica de Platão. E que, neste sentido, se é possível encontrar este movimento curvilíneo disforme na natureza, é na dança, mais do que na física e metafísica que o encontramos, a qual se aproxima da relatividade de Einstein ao pensar não um corpo em movimento, mas corpos em movimentos, apesar dele pensar ainda a partir de um mesmo efeito, o que deste ponto de vista o efeito deve ser sempre o mesmo para os corpos em movimentos, isto é, inteligível a ambos, superando uma dificuldade inerente aos pontos de vista diferentes que devem, por fim, se adequar um ao outro de modo perfeitamente plausível, algo questionável para a física e metafísica clássica desde Platão, a não ser do ponto de vista de uma dualidade dialética, isto é, quando se restringe os pontos de vista a uma dualidade de opostos.

A busca do movimento perfeito na dança, no caso, de um movimento curvilíneo disforme, diferentemente da física, inclusive a einsteiniana, porém, é a busca de um movimento considerando suas variações de modo pleno, sem nunca ser retilíneo, nem tão pouco uniforme. É a busca de um movimento variável do corpo a cada momento que se disforma enquanto se move e somente assim se move, disformando-se, deformando o corpo em sua retidão. Não por acaso o giro é o movimento mais presente em qualquer dança na medida em que é o desvio de uma retilineidade e que nunca é absoluto, apesar do balé buscar de certo modo uma retilineidade fazendo um pivô com o pé e buscar cada vez mais um equilíbrio do corpo. Balé que seria talvez a maior expressão de uma busca da perfeição do movimento na dança, porém, uma perfeição ainda pautada na física newtoniana por assim dizer, pois quanto mais retilíneo e uniforme o movimento do bailarino, mais perfeito ele é considerado, e a emoção do balé é muito próxima da perfeição atlética e física, que é a do movimento feito de modo perfeito em sua eficiência como uma reta que é o menor caminho entre dois pontos e cuja forma é símbolo de uma perfeição em sua uniformidade.

A relação entre atletismo e dança não é algo fortuito. A dança como um movimento do corpo em leveza e suavidade precisa da resistência do corpo para conseguir isto. Resistência que é a força do corpo a produzir um sustentação do movimento, isto é, fazer com que ele se mantenha constante em sua leveza e suavidade e se veja isto como algo belo. Deste ponto de vista, o balé seria talvez o mais próximo que a dança chegaria de uma física platônica ou newtoniana em sua busca de um movimento perfeito como um movimento constante, isto é, nulo, e cada movimento na dança do balé parece demonstrar uma contradição física, pois mesmo vendo o movimento, o que emociona é a retidão do corpo, a sustentação de um corpo em relação a outro, a constância do giro num pé só e num ponto só, sem qualquer desvio de um lado para outro que não tenha sido pensado em sua retidão e uniformidade.

O balé, deste ponto de vista, não é o melhor exemplo do movimento perfeito na dança o qual seria encontrado, senão, no seu oposto, pensando dialeticamente, no caso, o breakdance ou break, uma dança de rua, e não de salão ou teatro, criada na década de 70 nos Estados Unidos por negros afrodescendentes, e não por brancos europeus, e que tem no hip hop a música que acompanha os movimentos dele, o oposto da música clássica em relação ao balé. Ao opor, porém, o break ao balé, não está em questão o valor cultural de um em relação ao outro em todas estas diferenças, mas como o movimento perfeito na dança se desviou, mudou direção a partir da metade do século passado, assim como a música também mudou com todas as suas dissonâncias e desacordes, a pintura em todo o seu impressionismo e expressionismo, surrealismo e abstracionismo, como a física mudou e todo o mundo literalmente mudou em diversos aspectos sociais, econômicos, políticos, artísticos, filosóficos, científicos, tecnológicos. E mesmo o teatro, esta forma tão visceral de arte corporal, mudou e é cada vez mais um teatro ex machina enquanto performance, um corpo, parado ou em movimento, que é algo inesperado que faz desviar a atenção do cotidiano em toda sua uniformidade e que constitui hoje uma reinvenção do teatro como algo que desperta uma emoção inesperada, trágica, cômica ou tragicômica, isto é, dramática, a partir de várias técnicas corporais ou maquinais.

Mais do que uma dança, o break, sintetiza uma mudança na qual o movimento se torna importante e que o movimento de um corpo é curvilíneo disforme, inclusive em relação à própria música com a qual ele não tem relação propriamente dita, mas se relaciona a ela em seu próprio movimento, com sua própria emoção, pois cada movimento do corpo produz ele próprio uma emoção diferente em relação à música ouvida, e que, portanto, não é um prolongamento da emoção que ela passa. Em outras palavras, que não é preciso ouvir a música e sentir o que ela passa para dançar, dança-se por se dançar, para movimentar o corpo num certo sentido, numa certa direção, mas sem se saber qual o sentido e a direção certa, pois cada movimento se desvia em relação ao outro, é um desvio em relação ao outro, é uma mudança em relação ao movimento precedente, é uma mudança do próprio movimento no movimento.

O break foi apropriado não sem razão pela dança contemporânea para uma contestação da dança clássica, no caso, o balé, propondo-se na dança contemporânea o que se pode chamar de desconstrução do sentido de dançar, uma desconstrução que é o próprio movimento curvilíneo disforme do break ao desconstruir o corpo a cada movimento, ao desconstruir a retidão e a linearidade do movimento do corpo em todas as traduções que a palavra break comporta em si: pausar, quebrar, romper, partir, dividir, separar, desligar, transgredir, desmanchar, rachar, ultrapassar... e que se pode pensar a partir dele, não como ele propriamente, pois ele mudaria a cada sentido destas traduções. Neste sentido, uma de suas formas mais comuns, a robótica, na qual o dançarino se assemelha a um robô em seus movimentos, mostra, por um lado, como o break se opõe à retilineidade e suavidade do balé, mas também, por outro lado, como nesta variação de sentido do break, ele expressa a desconstrução do movimento, que não é uma negação do movimento ao contrário do que se poderia pensar, mas o desvio do movimento pelo corpo que faz da pausa e da quebra um movimento em relação a outro movimento do corpo, diferenciando o movimento do corpo a cada instante.

Não há algo mais simples de se observar no break do que a diferença ou différance de um movimento em relação a outro a partir de um pausa ou quebra de seu ritmo, o que por pausa não se quer dizer parada do corpo, mas do movimento que o corpo produzia em um determinado momento numa determinada direção e sentido que é pausado por outro movimento que começa e que o quebra em vários sentidos: de direção, espaço, tempo, velocidade, aceleração, ritmo, cadência, invertendo pés e mãos e incluindo a roupa no próprio movimento e não apenas como adereço dele. Em relação a isto, por sua vez, não por acaso não existe apenas um movimento de dança no break, isto é, um modo de fazer a pausa ou a quebra de um movimento, ou de movimentar-se quebrando ou desconstruindo o movimento, mas diversos movimentos possíveis pelo corpo e pelos corpos na medida em que o break tanto pode ser uma dança solitária, como uma dança coletiva, ser realizada tanto na rua como num palco. No caso coletivo ou no palco, ele se assemelhando a uma dança retilínea e uniforme como o balé, contudo, demonstrando com isto que ele não é uma negação ou uma oposição propriamente dita à dança clássica, segundo um pensamento dialético, mas um desvio em relação a ela que não nega um retorno mesmo ao clássico em seu movimento retilíneo e uniforme, porém, sem conceber, contudo, este movimento como absoluto, ou mesmo relativo a este absoluto.

Em outras palavras, e por fim, o break mostrando que uma busca do movimento perfeito a partir da dança que ele constitui é, paradoxalmente, um movimento imperfeito, um movimento que não se realiza plenamente, que não é absoluto nem tão pouco relativo, mas um movimento curvilíneo disforme que não evita obstáculos, mas se apropria deles como desvios inevitáveis ao corpo em movimento o qual, por mais que seja físico, seu sentido não é físico nem tão pouco metafísico, apenas sentido quando se dança, isto é, quando se encontra o movimento do corpo em si mesmo, no corpo em movimento, no corpo como produtor de movimentos disformemente variados em suas curvas e desvios de todos os obstáculos que o engrandecem mais do que anulam seu movimento.



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