Moro e a justiça com as próprias mãos

Por duas vezes, o juiz Sérgio Moro fez a justiça com as próprias mãos e colocou o país em pé de guerra partidária. Na primeira vez, baseado na suspeita de que o ex-presidente Lula Lula cometera crime mesmo que Lula não tenha se oposto a depor, ele assinou um despacho judicial para "depoimento coercitivo", isto é, forçado, do ex-presidente levando às ruas vários partidários dele e do PT. Na segunda vez, com a suspeita de que Lula numa conversa com a presidenta Dilma por telefone grampeado estariam agindo contra justiça empossando Lula às pressas como ministro da Casa Civil, Moro assinou um despacho tornando público em primeira mão para a Rede Globo o áudio da conversa praticamente condenando Lula e Dilma por crime de obstrução da justiça feita por suas mãos, e levando a partir da Rede Globo milhares de pessoas partidárias contra o PT às ruas pedindo a renúncia da presidenta Dilma com as próprias mãos conjuntamente com o apoio de políticos ansiosos para fazer o mesmo por meio de impeachment.

Não há dúvidas que Moro representa hoje o Brasil fazendo a justiça com suas próprias mãos. Por duas vezes, ele podia esperar e conduzir as ações conforme a justiça determina, com ampla defesa dos envolvidos, mas ele não o fez. Os motivos, por mais que baseados em autos policiais, não escondem que seu gesto foi de ser parte de uma história que assistimos se desenrolar na tela da Rede Globo como uma de suas novelas na qual seus jornalistas são protagonistas principais, no caso, a história da prisão de Lula e deposição da presidenta Dilma e do PT do governo pelas mãos de Moro. Isto porque tomando as suspeitas da justiça nas mãos de Moro como uma verdade absoluta e buscando a todo o custo legitimar as ações dele por um lado e deslegitimar as ações da presidente e do ex-presidente, os jornalistas da Rede Globo com todo seu aparato jornalístico transmitem a suspeita de Moro como verdade absoluta para as pessoas nas ruas e nas redes sociais levando-as a quererem também fazer justiça com as próprias mãos como Moro fez, mas agora com a raiva inerente a uma multidão ansiosa por linchamento público do ex-presidente e pelo impeachment da presidente Dilma.

Como é de costume à imprensa imparcial e objetiva como a Rede Globo, ao transmitir os fatos intepretados por ela como verdade absoluta, ela e seus jornalistas lavam as mãos dizendo que estão apenas cumprindo a obrigação jornalística, "imparcial e objetiva", de uma "liberdade de imprensa" tal como aqueles que apertavam o botão das câmaras de gás em Auschwitz e depõem no tribunal dizendo que não têm nenhuma responsabilidade pelas mortes dos judeus, mesmo que tenham feito a justiça com as próprias mãos as quais querem manter puras como as de quem comete um sacrifício no qual, mesmo matando, dizem que é em nome de algo maior, um poder supremo, quiçá de Deus.

Incentivada pelas interpretações verdadeiras absolutamente da Rede Globo sobre as suspeitas de Sérgio Moro, as mãos erguidas em punho, as pessoas no meio da rua, agora, tomam em suas próprias mãos a justiça dele interpretada por ela pedindo a prisão de Lula e a deposição de Dilma por meio do impeachment e forçam a cada vez mais os políticos do Congresso Nacional a também tomarem em suas mãos a justiça que Moro promulgou com as dele. Receosos e ansiosos também eles para se livrarem da justiça, não apenas de Moro, os políticos, principalmente aqueles que já fazem a justiça com as próprias mãos em seus métodos corruptos, cuidam para adiantar o máximo que podem o impeachment da presidenta para, juntos, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Aécio, todos também investigados por corrupção, além de outros investigados em outras corrupções, levantarem as mãos vitoriosos livrando o país da corrupção. E com este gesto simbólico naturalmente transmitido "ao vivo" pela Rede Globo, saciar a vontade de fazer a justiça com as próprias mãos que clama a "voz do povo" como " voz de Deus" nas ruas, neste caso, o Deus Moro, filho de Deus enviado para salvar os brasileiros segundo a crença comum de que "Deus é brasileiro".

Como esclarece absurdamente Walter Benjamin em 1921, no seu texto Crítica da violência e poder (Zur Kritik der Gewalt), "a tendência do direito moderno" é de "retirar, pelo menos do indivíduo enquanto sujeito de direito, qualquer violência e poder (Gewalt), mesmo aquela que se dirige para fins naturais." (p. 131) Mas também toda e qualquer "violência e poder" (Gewalt) de classe que se sobreponha ao Estado de direito, como no caso de uma greve geral revolucionária. Pois a ideia é manter o direito a todo custo, já que o "direito [positivo moderno] considera a violência e o poder (Gewalt) nas mãos dos indivíduos um perigo capaz de solapar a ordenação do direito" (p. 127) O temor do direito positivo é, senão, o de que se retorne a um direito natural, justamente o direito em que a justiça é estabelecida com as próprias mãos onde qualquer violência e poder (Gewalt) nas mãos dos indivíduos seria o direito natural que justificaria se obter um determinado fim não importa por que meios, sendo deste modo a violência e o poder (Gewalt) o meio principal para se conseguir qualquer fim no direito natural. Algo que o direito positivo teme, mesmo depois que retira esta violência e o poder (Gewalt) das mãos dos indivíduos, pois, se:

com efeito, a violência e poder (Gewalt) que o direito atual [positivo moderno] procura retirar das mãos dos indivíduos em todos os domínios da ação aparece realmente como ameaçadora, (...) mesmo vencida ainda suscita a simpatia da multidão contra o direito.” (Benjamin, pp. 127-128. Grifos meus.)
Simpatia da multidão contra o direito, neste caso, positivo e não o direito feito pelas mãos. Contra ademais, o direito que é feito pela imparcialidade da justiça, que requer ser seguido todos os trâmites legais, evitando que o direito, principalmente, representado pelo Estado perca seu poder (Macht) e degenere numa violência e poder (Gewalt) usadas como meios e fins naturais de direito, onde os mais fortes sempre vencem, seja pelas mãos empunhadas para bater, seja pelas mãos empunhadas para escrever.

Nada disso, foi lembrado pelo juiz Sérgio Moro quando tomou em suas mãos a justiça solapando o fraco direito positivo moderno brasileiro, fazendo a multidião simpatizar com a justiça com as próprias mãos e não com a do Estado democrático de direito, apesar dos pesares, representado pelo Supremo Tribunal Federal. Se assistisse ao filme Os oito odiados, de Quentin Tarantino, Moro, saberia muito bem o que é a justiça e a diferença entre a justiça que ele fez com suas mãos incitando outros a fazerem o mesmo e a justiça do direito positivo. Ele então raciocinaria como Oswaldo Mobray, o responsável pelo enforcamento dos criminisos quando ele explica o que é a justiça para a criminosa Dayse Mobergue:
Muito bemvocê é procurada por assassinato. Só para minha analogia, vamos supor que você fez isso. John Ruth quer levar você até Red Rock para ser julgada por assassinato. E, se for considerada culpada, o povo de Red Rock vai enforcá-la na praça da cidade, e eu, como carrasco, farei a execução. E se todas essas coisas acabarem acontecendo, é isso que uma sociedade civilizada chama de "justiça". Entretanto, se os parentes ou amigos das pessoas que você matou estivessem lá fora neste momento, e depois de quebrar essa porta, eles arrastassem pela neve e a empedurassem pelo pescoço, isso, isso seria um linchamento. Agora, a parte boa do linchamento é que aplaca a sede vingança. A parte ruim é que pode fazer o certo se tornar errado.
Moro quer aplicar a sede de vingança fazendo a justiça com as próprias mãos e incentivando o linchamento popular do ex-presidente Lula e da presidente Dilma, representante maior do Estado, fazendo o certo se tornar errado. Resta saber até que ponto será feita a justiça do enforcador, que é a justiça do direito moderno, a que não é feita pelas mãos de um juiz apenas, mas de muitos, principalmente, os nove do Supremo Tribunal Federal com base na Lei e não em interesses privados, de modo imparcial, não o modo "imparcial" da Rede Globo neste caso, sem querer tomar partido já tomando um em sua imparcialidade. A justiça imparcial tal como Mobray a afirma demonstrando o que é ser um juiz, ou seja, fazer uma justiça num Estado democrático de direito, ao responder a pergunta justamente de qual a diferença dela para a justiça com as próprias mãos:

A diferença sou eu. O carrasco. Para mim não importa o que fez. Quando eu enforcar você, não terei satisfação pela sua morte. É o meu trabalho. Enforco você em Red Rock, parto para outra cidade e enforco outro lá. O homem que puxa a lavanca, que quebra o seu pescoço será um homem imparcial. E essa imparcialidade é a essência da justiça. Justiça aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça. 

Justiça aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça. Eis a lição do Enforcador para o juiz Sérgio Moro e todos aqueles que querem fazer a justiça com as próprias mãos como ele.

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