A justiça dos oito odiados
No dia em que o Brasil celebrou o ódio como forma de justiça nas ruas, resolvi assistir ao filme Os oitos odiados, o oitavo filme de Quentin Tarantino. Nada programado, apenas oportuno, tendo em vista que tinha adiado por longas semanas assistir a ele e não queria mais perder tempo.
Falando ainda de Oscar, Enio Morricone mereceu, e muito, o Oscar de melhor trilha sonora, surpreendente durante todo o filme, que nos faz ficar tenso a todo instante que alguém pensa em sacar uma arma no armazém onde os 8 odiados permanecem por quase 2 horas em tempos fílmicos, uma eternidade se levarmos em conta a tensão da espera da morte iminente. Morte que é algo comum nos filmes de Tarantino, seja no sentido de banal com relação à frequência com que acontece em cada filme, mas também no sentido de natural, como algo inevitável a alguns de seus personagens. Porém, uma morte como algo extraordinário, como toda morte, inesperada, imprevisível e chocante quando acontece. Nada para surpreender o espectador ou fazê-lo pular da cadeira, ainda que virar o rosto seja um movimento comum em determinados momentos, pois nem sempre é bom encarar a morte de frente em toda sua crueldade, o que seria um pouco sádico, podemos dizer. Tarantino, apesar de todas as mortes e todo o sangue que borrifa na cara de seus personagens e na tela, não quer chocar a todos com a morte, quer apenas mostrar que ela acontece, num momento ou outro, como algo comum, mas também que surpreende.
O fascínio pela morte talvez faça alguém odiar os filmes dele desde que fez da morte em Pulp Fiction a principal personagem de seus filmes, presente em meio a todos os diálogos surreais dos personagens humanos, muitos dos quais protagonizados por Samuel L. Jackson com uma mordacidade a perder de vista. Talvez o fascínio pela morte faça também o contrário e muitos quererem assistir aos filmes de Tarantino para ver mais e mais sangue, como se fossem os vampiros de Um drink para o inferno, no qual Tarantino elevou as cenas de violência a um nível infernal. O certo é que a morte nos filmes de Tarantino é tão certa quanto os impostos no capitalismo norte-americano e quem quiser assistir a seus filmes deve esperar por elas pacientemente como alguns dos 8 odiados esperam, pois, por mais que demore, ela sempre aparece uma hora ou outra para nos surpreender.
Não é o fascínio pela morte que me leva a assistir Tarantino, mas, teorizando um pouco a partir deste último filme, é como ela aparece em seus filmes como um senso de justiça que, em Os oito odiados, aparece de modo mais contundente. Justiça que, ainda teorizando um pouco, ouso dizer ser o grande objetivo da filmografia de Tarantino, sua marca cinematográfica, e que está presente naquela que é considerada o ato mais justo de todos, a morte, pois sempre chega para todos, uma hora ou outra, e a qual é para muitos a maior expressão da justiça, tanto humana quanto divina. Uma justiça que não é a que muitos defendam civilizadamente, mas muitos anseiem fazer quando sofrem alguma violência.
A maneira como a justiça se estabelece no filme Os oito odiados, em particular, é impressionante desde o início, quando dois caçadores de recompensa se encontram, ambos querendo chegar à cidade Red Rock para receberem a recompensa por suas capturas: o Major Marquis, com seus dois mortos capturados, e John Ruth, com Dayse Domergue capturada e mantida viva para ser enforcada por assassinato. O que acontece quando estes dois caçadores de recompensas se encontram no meio de uma nevasca no Wyoming é o prelúdio de uma questão difícil que é de como a justiça é possível entre duas pessoas nas quais não se pode confiar. Uma questão que surge quando John Ruth oferece carona ao Major Marquis em sua carruagem, mesmo suspeitando que ele queira também a recompensa pela sua prisioneira, Dayse Domergue. Uma questão que se torna mais complexa e aumenta as suspeitas de John Ruth quando, no meio do caminho, ambos se encontram com o futuro xerife de Red Rock, Chris Mannix, tal como ele diz e não sabem se ele é de fato quem diz, e, o que é pior, se também não tem interesse na recompensa por Dayse, juntamente com Marquis, pois, como diz John Ruth: "Considerando que há uma nevasca chegando, tem muita gente a pé na estrada."
As suspeitas de John Ruth dão o tom do filme que crescem com a nevasca de Wyoming a cada momento e a tensão entre os personagens. Suspeitas de um crime perfeito que John Ruth tenta a todo instante evitar, até mesmo fazendo acordo com quem desconfia, no caso, com o Major Marquis, um negro, ex-combatente da União na Guerra Civil estadunidense, sobre o qual o futuro xerife Mannix levanta constantes suspeitas quando é aceito na diligência pelos outros dois em direção a Red Rock. A principal suspeita levantada por Mannix é o fato do major ser negro já que ele lutou também na recente guerra civil americana do lado dos Confederados escravagistas e continuou lutando mesmo depois da rendição destes, inconformado com a perda da guerra e a liberdade dos negros no sul norte-americano.
Neste sentido, quando se olha para dentro da carruagem que conduz um negro que lutou na recente guerra civil pela União, que carrega uma suposta carta de Abraham Lincoln e matou diversos brancos que tentaram matá-lo, um sulista e racista branco que lutou na mesma guerra, um caçador de recompensa reconhecido como o "Enforcador" por levar seus prisioneiros presos para serem enforcados, mesmo não sendo necessário isto, temeroso de ser morto, e uma mulher assassina disposta a qualquer coisa para se livrar da prisão e que não dá a mínima para as agressões que sofre de Ruth em sua condução ao enforcamento, é inevitável pensar como é possível que eles permaneçam no mesmo espaço por tanto tempo e dialogarem entre si sem se matarem.
Mas isto, como disse, é apenas um prelúdio do que acontece depois quando chegam ao Armazém de Minnie para esperar a nevasca passar e lá encontram o restante dos odiados com os quais terão que conversar e conviver também sem se matar, pelo menos por algum tempo. No caso, os outros odiados são: Bob, um mexicano que está cuidando do armazém porque Minnie não está, algo suspeito; Joe Gage, um cowboy sentimental que está indo visitar a mãe depois de Red Rock, algo mais suspeito ainda; o General Sanford Smithers, que lutou na Guerra Civil pelos Confederados, racista inveterado, e que está ali esperando alguém para conversar sobre a construção do túmulo do filho que morrera ali anos atrás; e, por fim, o enforcador Oswaldo Mobray a caminho de Red Rock para mais uma execução, o qual explica à Dayse e Ruth sobre a imparcialidade da justiça representada por ele e que é senão o leimotiv do filme. Diz ele então:
Muito bem, você é procurada por assassinato. Só para minha analogia, vamos supor que você fez isso. John Ruth quer levar você até Red Rock para ser julgada por assassinato. E, se for considerada culpada, o povo de Red Rock vai enforcá-la na praça da cidade, e eu, como carrasco, farei a execução. E se todas essas coisas acabarem acontecendo, é isso que uma sociedade civilizada chama de "justiça". Entretanto, se os parentes ou amigos das pessoas que você matou estivessem lá fora neste momento, e depois de quebrar essa porta, eles arrastassem pela neve e a empendurassem pelo pescoço, isso, isso seria um linchamento. Agora, a parte boa do linchamento é que aplaca a sede de vingança. A parte ruim é que pode fazer o certo se tornar errado.Difícil dizer a sensação de ver a justiça tão bem explicada nas palavras do enforcador Mobray e as duas intepretações mais comuns acerca dela, a primeira dada por Ruth escultando atentamente o que Mobray diz e retrucando suas últimas palavras ao dizer que o linchamento não seria ruim para Dayse, pois "No seu caso, você merecia. Mas outras pessoas, talvez nem tanto.", por fim questionando Mobray: "Mas no fim das contas, qual é a diferença entre os dois?" O que Mobray responde em defesa própria e de seu serviço, mas principalmente em defesa da imparcialidade da justiça:
A diferença sou eu. O carrasco. Para mim não importa o que fez. Quando eu enforcar você, não terei satisfação pela sua morte. É o meu trabalho. Enforco você em Red Rock, parto para outra cidade e enforco outro lá. O homem que puxa a lavanca, que quebra o seu pescoço será um homem imparcial. E essa imparcialidade é a essência da justiça. Justiça aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça.A última sentença de Mobray é o divisor de águas ou de sangue em relação à justiça n'Os 8 odiados, mas também em relação à justiça em si. Este divisor se coloca de modo premente em toda a tensão que decorre no filme em saber até que ponto todos que estão ali vão querer a justiça do enforcador, imparcial e justa, ou a justiça da multidão, parcial e tornando o certo errado. Bem, quem conhece os filmes de Tarantino sabe que a justiça do enforcador nunca está presente nele, que sua justiça nunca é imparcial, e que é justamente tornando o certo errado que a justiça aparece em seus filmes. Mas que também não é um linchamento que ele defende para aplacar a sede de vingança de uma multidão, donde o derradeiro problema que se coloca em relação à justiça é a de saber se há um meio-termo em relação às duas justiças apresentadas por Mobray.
Este meio-termo existe, de certo modo, e é o que Tarantino propaga em seus filmes, podemos dizer. N'Os oito odiados, a justiça enquanto meio-termo está presente na história que o Major Marquis conta ao General Sanford Smithers sobre o filho deste que apareceu anos antes para matar Marquis em busca de uma recompensa por sua cabeça, mas, obviamente, não conseguiu isto. Reproduzir esta história seria estragar tudo o que a envolve àqueles que não assistiram ao filme e não poderiam perceber todo o regozijo de Marquis a contando a Sanford, que fora seu opositor direto numa batalha da guerra civil e agora estava ali tão velho quanto ele em sua frente. Em relação a ela, basta dizer que Sanford estava desarmado sentado numa poltrona e Marquis coloca uma arma perto dele antes de começar a história, dizer também que Marquis acentuou cada vez mais detalhes nela para forçar o general a pegar a arma e Marquis ter justamente o motivo para matá-lo, algo que ele quer desde que entrou e viu o General Sanford no armazém e que Sanford tem um desejo recíproco em relação a Marquis, cuja negritude ele despreza e mais ainda quando sabe o que Marquis fez ao seu filho, além de matá-lo obviamente.
Diante desta cena, parece claro o que se coloca em questão como meio-termo justo às justiças do enforcador e a do linchamento, ou justiça propriamente dita tal como Aristóteles a pensou milhares de anos atrás. É, no caso, a justiça da justa indignação, tanto do Major Marquis pelo General Sanford como deste por aquele, ambos em campos de batalha opostos, com seus objetivos e interesses totalmente díspares, cada um com um passado que o motiva a matar o outro. É a justiça de um acerto de contas quando estão ali um diante do outro prestes a se matarem e ninguém intervém para impedir, como se estivessem no Velho Oeste, apesar de estarem de fato, mas não estão, pois não é o Velho Oeste onde estão, mesmo que seja o gatilho mais rápido que ainda faça de um ou outro o vencedor. É um armazém e ali não há duelo de quem é o mais poderoso ou mais rápido, mas o conflito de duas ideologias e raivas inerentes a ela, cada uma justificando a morte inevitável do outro, que não vai acontecer sem motivo até que o ódio leve um a sacar a arma e tente matar o outro e, deste modo, justifique ser morto por esta tentativa de assassinato a partir de justa indignação.
É esta justa indignação que motiva cada um dos personagens no filme Os oito odiados, cada um com sua ideologia, cada um com seu discurso, cada um tentando convencer o outro a sacar a arma primeiro para ter assim o direito de matar, o direito de fazer justiça com suas próprias mãos, mas não sem um bom motivo, a legítima defesa, ou a defesa legal, a defesa da lei. Uma justiça que somente é abandonada no fim do filme quando ironicamente a justiça do enforcador retorna justamente em relação a quem mais merecia morrer por uma bala, mas não tem arma para sacar.
Uma análise dos motivos para justiça em relação a cada um dos personagens no armazém nos demonstra que se a justiça em Tarantino está sempre envolta em sangue e morte é porque ela é sempre a justiça dos que odeiam e que são odiados, pessoas que, por um motivo ou outro, para aplacar o ódio pelo outro, buscam superá-lo na morte do outro, ainda que em legítima defesa. Uma legítima defesa que é um fato que acontece na presença de todos que estão ali como testemunhas e não o discurso de alguém sobre um fato sem que ninguém mais tenha conhecimento do ocorrido. Legítima defesa ainda que é a extensão de um debate ideológico no qual ganha quem, por mais raiva que tenha do outro, sabe esperar o momento certo, pacientemente, até que o outro demonstre sua raiva primeiro e, em meio a ela, erre, tornando injusta sua ação de matar. Um erro punido senão pela morte justamente.
Por fim, se a morte é justa para todos nos filmes de Tarantino, isto não quer dizer que o modo como ela aparece a cada um seja justo de uma mesma forma. Pensar em como a justiça se coloca a cada personagem em cada momento, eis o que Tarantino nos ensina em Os oito odiados, mais do que em qualquer outro filme seu até então.
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