Os limites da civilização europeia

A ida de pessoas para Europa cada vez mais frequente no último ano fugindo dos conflitos em países africanos e árabes-asiáticos como o Egito e a Síria tem levado a civilização europeia ao limite. Cada vez mais casos têm demonstrado isto quando os diversos países começam a impor barreiras à presença de imigrantes colocando em questão a civilidade tão ressaltada em relação a eles. No caso, seja a civilidade calcada na liberdade defendida pelos franceses, na superação do nazismo na qual se fundamenta a alemã e alguns países do leste europeu no caso da Polônia, ou ainda na educação considerada a melhor do mundo pelo PISA na Finlândia.

Os limites impostos pelos europeus não são, neste sentido, apenas aos estrangeiros que se arriscam saindo de seus países para alcançar a liberdade, fraternidade e igualdade surgida enquanto ideal da Revolução Francesa ainda hoje presente em cada país em conflito que anseie por ser civilizado. Os limites são também do povo europeu em fazer valer este lema francês como fundamento de sua civilidade e que serviu de alcunha para muitas mudanças no auge da modernidade política europeia, quando países começaram a se definir mais democraticamente, ainda que mantendo uma monarquia, como no caso da Inglaterra e outros países. Limites que começam a ser repensados a cada momento que uma pessoa pede abrigo e refúgio nos países europeus não por toda a vida, mas pelo menos até o fim do conflito.

A Europa que invadiu diversos lugares do mundo desde o século XVI, recém-descobertos por elas em seu processo civilizatório, que impôs atrocidades como a exposição de corpos esquartejados em postes durante a Inconfidência Mineira no Brasil, o massacre em massa de índios em todo o continente americano e de aborígenes na Oceania, além de indianos na Índia e de africanos na África do Sul, que destruiu civilizações inteiras em sua cultura roubando tudo que podia ter valor econômico nela, acontecimentos tão midiáticos como as decapitações do Estado Islâmico, agora, se vê novamente diante da presença de um conflito contra seu próprio passado civilizado ao ver suas atrocidades sendo repetidas por "terroristas", como são chamados agora quem mortifica com crueldade, massacra em massa, destroi civilizações e rouba tudo que lhe pode ter valor econômico, outrora chamado civilizado.

É o outro lado da cilização europeia que se vê descoberto nas ações do Estado Islâmico e agora a presença do outro não está mais distantes dos europeus como estavam seus colonizados em terras estrangeiras. Um outro com o qual ela precisa conviver atravessando suas próprias fronteiras como ela atravessou outrora a deles e eles tiveram que conviver por anos com a presença dos europeus, subjugados em seu próprio território. Um outro que lhe pede uma hospitalidade ainda que condicional, tendo em vista que uma hospitalidade absoluta como pensava Derrida é impossível. Um outro, porém, cuja simples presença do rosto é já um temor e faz tremer, uma afronta maior do que todas as condições, muitas vezes humilhantes impostas a eles pelos civilização europeia, como no caso recente de mulheres e crianças que foram violentadas para obter documentos nos países que tentavam entrar.

Na linha de fuga entre dois estratos civilizatórios cruéis as pessoas que fogem dos países em conflito para os países europeus se veem então no pior labirinto imaginado por Jorge Luís Borges, o labirinto em linha reta, aquele do qual nunca podemos escapar, pois é lhes é negado a presença tanto de um lado como do outro pelo Estado Islâmico e os países europeus. Este labirinto borgeano no qual se converteu principalmente o Mar Mediterrâneo e as fronteiras da Europa é o que se coloca a elas como sua última tentativa de escapar do já inescapável conflito labiríntico em que vivem entre o Estado Islâmico e o Ocidente. Um conflito que é da civilização europeia em sua presença no mundo com a qual se depara agora em espelho e que, se revê algumas ações suas do passado, produz senão outras que trazem à tona tudo aquilo que estava presente, mas oculto, em seu processo civilizatório.

Ao defender sua estabilidade econômica, isto é, seu capitalismo, posto em crise pela presença do outro, a Europa retoma mais uma vez a perspectiva do fascismo de Hitler em relação aos judeus, bem como de toda colonização europeia em outros lugares quando não tolerava nenhuma revolta que fosse um problema para sua acumulação de riqueza. Uma perspectiva totalitária que se não produz as atrocidades de antes, finca raízes cada vez que se impõem mais fronteiras e se nega a presença do outro em sua cultura diante de si, na medida em que o outro serve de humor nefasto semelhante aos dos nazistas para com os judeus, como no caso do menino sírio morto afogado na praia ridicularizado pelo Charlie Hebdo e na medida em que as ações de alguns refugiados sejam motivos para não serem aceitos ou para serem expulsos deliberadamente. O que deste modo vê-se novamente justificado o discurso fascista de Hitler contra os judeus, acusados de pôr em crise a estabilidade econômica alemã e cuja cultura era senão ridicularizada.

Contudo, o que passam os imigrantes na europa não é algo a ser visto apenas como exterior, pois cada pessoa que se vê destituída de seus direitos em relação às regras ainda que não explícitas de um grupo de pessoas se vê também como alguém em busca de abrigo e refúgio. É uma pessoa cuja simples presença impõe temor e tremor pelo que ela é em relação à presença daquele grupo. Assim, todos os discriminados em seus direitos e na liberdade, que é um dever e não um direito concedido ao ser como se diz comumente, todos aqueles que caminham sobre as fronteiras da civilidade com a sua presença estão envolvidos nesta crise europeia, ainda mais que quase a totalidade do mundo foi colonizada pela Europa e comunga dos mesmos valores de fraternidade, igualdade e liberdade europeus. E não por menos todos aqueles que negam abrigo aos que pedem refúgio por fundamentalismos também se colocam na mesma perspectiva totalitária na qual se fundamenta toda e qualquer negação do outro em sua presença.

Desse ponto de vista, a crise europeia em seu ser com o outro é mais profunda do que imagina a vã filosofia em seu cotidiano e o labirinto em linha reta ainda é a única linha de fuga possível, mesmo que inescapável.

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