Ano novo, dívida nova

No fim do ano, as pessoas sempre desejam o impossível, isto é, aquilo que elas não têm, não conseguiram realizar ou desejam que apareça, que aconteça em geral como promessa, algo positivo como se acredita ser tudo que é novo desde o surgimento da modernidade. Contudo, mal passa o ano, a realidade que aparece não é nenhum pouco nova, pois remete ao endividamento infinito delas na economia capitalista, seja com o aumento de preços, que já endividam o aumento do salário, seja com as dívidas com a comemoração do ano novo. Assim a alegria do ano novo se esvai na primeira compra do mês no supermercado, com os impostos a serem pagos e as dívidas no cartão de crédito.

O aumento de salário na passagem de um ano para outro, o décimo terceiro ganho totalmente ou em parcela no fim do ano passado, que faria o trabalhador gozar de um lucro ou de um excedente do seu trabalho semelhante ao que acontece com o capitalista a todo momento, logo se transforma em dívida, mesmo quando ele serve para pagar dívidas antigas. Isto porque o saldo de dívidas antigas visa muitas vezes a possibilidade e a necessidade de se fazer novas dívidas adiadas até então. De modo que é num profundo endividamento econômico, mas também político, que o trabalhador se submete ao sistema capitalista e deste modo que deve se resumir sua existência.

É a dívida do trabalhador e não a miséria dele que é o oposto do lucro capitalista, pois se o lucro é um excedente em dinheiro a mais que o capitalista obtém a partir do trabalho do trabalhador, a dívida é senão o excendente também em dinheiro só que a menos ao qual o trabalhador deve estar sempre submetido para que o sistema capitalista funcione, isto é, para que o capitalismo seja necessária na vida das pessoas. A miséria seria, pelo contrário, aquilo que escapa a este sistema, pois ela não constitui nenhum excedente para mais nem para menos, já que é tanto desprovida de lucro como de dívida. E todo discurso que tenta e planeja reduzir a miséria no mundo é um discurso que engendra o miserável no sistema capitalista por temer menos que as pessoas não tenham dinheiro para comprar, mas que elas simplesmente não desejem comprar vendendo sua força de trabalho, vivendo completamente à margem do capitalista, como os mais marginais de todos. Não como vilões anticapitalistas que desejam destruir o sistema com sua maldade oposta a todo o bem que o dinheiro representa, posto que estes vilões ainda fazem parte do sistema, já que ainda visam o dinheiro e não são nenhum pouco opostos a eles de fato, mas como aqueles que não se importam nem um pouco com o sistema capitalista e todo o seu discurso voltado para o trabalho. De modo que é o miserável vagabundo e não qualquer contravetor da lei em sua força, o que mais teme o capitalista, pois faz ruir com sua miséria todo o discurso do trabalho, do valor do trabalho e, sobretudo, da mais-valia do trabalho.

Toda a lógica capitalista é a lógica de um endividamento das pessoas para que seja sempre necessário elas trabalharem, isto é, tornarem-se trabalhadoras, pois o trabalho delas é sempre necessário para que o sistema capitalista continue circulando em seu mercado. É a dívida que torna necessário mesmo o trabalho no sistema capitalista para o bem e para o mal. No caso para o bem, quando as pessoas se submetem a trabalhar seguindo as regras da produção capitalista, inserindo-se em sua economia política, submetendo-se tanto às leis econômicas, ditadas por quem os emprega segundo o valor de mercado, como às leis políticas, ditadas pelo Estado que cuida dos interesses dos mercado. E para o mal, quando estas leis não são aceitas absolutamente pelas pessoas que criam suas próprias leis econômicas e políticas num chamado mercado negro, que pela referência ao mercado permanecem ainda ditadas por eles, ainda que não por suas regras e métodos de modo absoluto, apenas relativo, de gerenciamento e aumento da riqueza.

O bandido ou vilão, seja ele político ou econômico, apenas aparentemente é um marginal, pois ele ainda se submete ao mercado, emprega força de trabalho, vende seu produto buscando sempre a mais-valia e faz os cortes, na carne se for preciso literalmente, necessários para manter seu negócio de pé, e emprega não por menos a força necessária para isto construindo seu próprio aparelho de Estado. E não por acaso assim como a expressão mercado negro remete ainda a uma pertença do bandido ao mercado, a expressão estado paralelo ainda demonstra que o bandido, por pior que ele seja, ainda emprega sua lei tanto quanto o Estado com a força e violência necessária em cada caso, sem negar a força e violência extrema em casos específicos. O que se o bandido se opõe ao empresário não é porque ele nega o mercado branco e o poder do Estado, mas porque ele encarna isto de forma personalista tanto quanto o monopolista e isto é prejudicial para o sistema, pois leva justamente a pensar que todo o seu trabalho, enfim, é em vão, pois não é possível competir no mercado dominado por apenas um capitalista ou por um bandido, motivo pelo qual se rejeita os monopólios tanto quanto se rejeita a noção de bandido, que se remete mais propriamente a um bando, ou seja, a uma multiplicidade. Com o agravante que os bandidos costumam geralmente guardar sua acumulação produtiva em espécie e não em divídas bancárias, como no caso do capitalista monopolista, o que faz dele, apesar de tudo, endividado de alguma forma e ser visto, como se pode vê-lo, como um trabalhador, empregando seu tempo a um trabalho, o de empregador mesmo.

Contudo, é apenas aparentemente que o capitalista se endivida. Todo o seu "trabalho" é se livrar de dívidas buscando sempre um lucro entre a compra e a venda, a oferta e a procura. Deste modo tudo que ele compra é vendido por um preço que não apenas paga sua dívida, mas vai além dela sempre, constituindo um a mais ou mais-valia que ele nunca deixa se reduzir a zero, ou pior, menos do que isto, indo para o vermelho, excedendo de modo negativo o limite de compra e venda. A lei da oferta e da procura é senão o que lhe permite fazer isto, pois se ela se refere em alguns momentos a fatos objetivos, como a estiagem ou superabundância em algum momento de produtos, ela é muitas vezes condicionada por fatos subjetivos, motivo pelo qual se diz que o marketing e a propaganda são a alma do negócio atualmente. Isto porque é tocando a alma, esta parte subjetiva do ser, buscando afetá-la de algum modo que há uma procura e, dependendo desta, é oferecido a pessoa o produto, muitas vezes com um preço mais elevado do que ele tem em sua produção ou teria caso seu valor fosse regulado ou tabelado. Por isto, todo o temor capitalista dos monopólios ou dos cartéis que tabelam preços impedindo que as pessoas compre mais de um e não de outro, mas também porque toda a sua lógica de fazer os preços subirem e baixarem quando querem segundo a demanda dita do mercado seja descoberta em sua lógica mais excusa. Bem como o temor dele dos regimes políticos totalitaristas ou que regulem demais o mercado, pois eles precisam fazer oscilar a oferta conforme a procura para ganharem bem mais do que já ganham, conforme sua anunciação de que quanto mais a procura, mais alto o preço do produto em oferta e quanto menor a procura, também, pois eles precisam suprir o que perdem na produção não vendida. O que é apenas em épocas de liquidação que a lei do quanto maior a oferta, menores os preços do produto, pois neste caso não se trata de obter lucro, mas obter espaço no estoque para novos produtos e novos endividamentos.

É assim, portanto, que a cada ano, é uma dívida nova a qual devemos contrair para que o nosso trabalho seja sempre necessário e fugir a esta lógica só se torna cada vez mais difícil quando se está em crise econômica cujo temor maior de todos que fazem parte do sistema capitalista para o bem e para o mal é se tornarem miseráveis, uma preocupação que o miserável ele mesmo não tem, sempre abaixo da linha da pobreza, vivendo com o pouco que tem se preocupar com lucros ou dívidas.

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