A corrida da esperança
Em sua crítica ao essencialismo o filósofo Karl Popper diz que por trás da realidade não há uma essência e, sim, outra realidade. São estas outras realidades que geralmente os documentários têm a pretensão de nos mostrar. Uma realidade que quase sempre não conseguimos enxergar em meio às realidades com as quais nos deparamos todos os dias e que com o documentário Nascidos das cinzas (Rising from Ashes, 2012), não seria diferente.
Dirigido por T.C. Johnstone e produzido por Forest Whitaker, este documentário mostra o desenvolvimento da equipe de ciclismo de Ruanda, um país devastado por um genocídio em 1994 que entrou para a história como um dos mais sangrentos, com quase um milhão de pessoas mortas a facadas e porretes em três meses quando os hutus se rebelaram contra os tutsis, uma minoria que ascendeu ao poder a partir dos colonizadores belgas, os mesmos que os dividiram os habitantes de Ruanda nestes dois grupos conforme a cor dos olhos e o tamanho do nariz em sua política colonizatória segregando os hutus das políticas do país. Em meio a este contexto histórico dos mais tristes na década de 90, outro fato interessante deste documentário é que o treinador da equipe é Jacques (Jack) Boyer, o primeiro ciclista americano a partir do Tour de France e que foi condenado a prisão por "comportamento lascivo com uma menor" e passou um ano preso e 5 em condicional.
Talvez vejamos neste documentário mais um filme sobre a superação de povos africanos em esportes incomuns a eles, como os retratados em filmes como a comédia como Jamaica abaixo de zero ou como no drama Invictus. Diferente destes, Renascidos das cinzas não é um filme de ficção, apesar de seu roteiro ser digno de um e tão bom quanto Invictus, com um final não menos surpreendente. Como um documentário, ele não pretende divertir ou emocionar, mas mostrar o que aconteceu numa determinada época, com algumas pessoas, deixando-nos o olhar aberto para o que pudermos pensar sobre ele. Mas muitas vezes, isto não é o que acontece, e esta é a diferença também deste filme pois é difícil não sentirmos nele a mesma emoção que temos em filmes cuja pretensão é nos fazer rir ou nos emocionar, e nos faz sentir até mesmo emoções maiores que filmes de ficção, como foi em relação a mim Nascidos das cinzas.
A primeira e principal emoção que este filme nos desperta é o sofrimento sem o qual, diz Jacques, ninguém pode ser ciclista e do qual nenhum ciclista escapa. Um sofrimento que ele vê estampado nos olhos dos cinco ciclista escolhidos primeiramente por ele para compor a equipe de Ruanda. Ciclistas que viram de perto a morte de seus parentes no genocídio que acontecera em 1994 e do qual muitos não falam tamanho o sofrimento vivido por eles e que pode ser resumido em outra frase de Jacques sobre Adrien Niyonshuti, o principal ciclista da equipe: "Adrien subiu na bike para fugir do passado que o persegue."
Não apenas Adrien fez isto, porém, mas todos eles, incluindo Jacques, depois da prisão que encontrou no ciclismo uma forma de fugir de seu próprio passado, não apenas da cadeia, mas também familiar, de quando seus pais se separaram e ele se viu só como muitos dos integrantes da equipe tendo se responsabilizar por sua própria vida com sua mãe. Um passado que o fez se unir à equipe de ciclismo e principalmente a Adrien no sofrimento de terem perdido já muito em suas vidas.
Sofrimento é a emoção predominante no ciclismo e neste filme sobre um esporte do qual esperamos poucas emoções comparadas a de outros esportes em lances memoráveis a cada momento ou em momentos decisivos. Não há muito o que se vê e talvez nos perguntemos mais profundamente se se trata mesmo de um esporte subir numa bicicleta e pedalar o quanto pode e o mais rápido possível. Bem como poderíamos nos perguntar o que há de importante para se ver em uma equipe de ciclismo de um povo africano sem nenhuma estrutura nem mesmo para oferecer equipamentos decentes para atletas de ciclismo.
Em cada esporte, porém, há algo que o torna sublime tal como Kant definia esta palavra. Um momento em que ele deixa de ser uma habilidade ou competência que muitos podem adquirir para se tornar algo que somente poucos conseguem e ser como estes poucos ou melhores do que eles se torna o grande objetivo. No ciclismo não seria diferente e o que define a sublimidade deste esporte não é saber andar de bicicleta mais rápido ou por mais tempo do que outros, mas saber resistir física e mentalmente às adversidades que cada caminho põe às pedaladas. O ponto em que alguém consegue resistir ao sofrimento é o que define quem vence e, neste sentido, talvez podemos dizer que todos que cruzam a linha de chegada são vencedores, mesmo não ganhando medalhas, pois resistiram o quanto puderam a tudo que lhes aconteceu no percurso.
A equipe de Ruanda se tornou vitoriosa a cada vez que conseguiu chegar à linha de chegada por superar a cada caminho e seus obstáculos o passado de sofrimento que a persegue todos os dias. Um passado que é aliviado por organizações não-governamentais, mas que também é aumentado em seu sofrimento a cada momento em que estas organizações deixam o país entregue a própria sorte como o encontram sem conseguir mudar a realidade dele. Um passado que aumenta em dor a cada separação e a cada momento em que o povo de Ruanda se vê abandonado pelo resto do mundo como pelo seu próprio governo.
Unidos pelo sofrimento a equipe de Ruanda não é uma equipe de ciclismo apenas, mas um povo unido em sua dor, mas principalmente em sua esperança. Em cada pedalada é o passado que eles tentam deixar para trás sem conseguir evitar pneus furados ou correntes quebradas no meio do caminho atrapalhando seus objetivos, como quando Adrien tenta conseguir uma vaga na olimpíada de 2012, em Londres. Um dos momentos mais emocionantes deste documentário que mostra como assim como uma equipe um povo não vive sem que cada um comungue da dor do outro e o tente ajudar abdicando muitas vezes de seu próprio sonho.
A esperança de conseguir uma vaga nas olimpíadas não é para a equipe de Ruanda um sonho, mas uma realidade que eles perseguem de mudança para si mesmos, mostrando para si mesmo que são capazes de conseguir seus objetivos. É a vitória de uma corrida em que a esperança move pernas e pés com mãos, tronco e cabeça impávidos descortinando o vento, o maior obstáculo de um ciclista, inimigo invisível que fustiga os olhos fazendo perder o foco e adormece o corpo e a alma com sua força. Vento que não consegue vencer Adrien, a quem Jacques escolhe para equipe por sua calma e paciência, virtudes incomuns para um ciclista, talvez se pense em sua preocupação em ser mais rápido ou mais forte do que outros, e cujo louro da vitória vem quando ele sustenta solitário na pista de atletismo na abertura das Olimpíadas de Londres a bandeira de seu país, porém com a força de sua equipe que o ajudou a chegar ali e de um povo que o assiste a milhas de distância e o ajuda a seguir em frente como ele o faz a cada vez que pedala em sua bicicleta.
Difícil descrever a importância desta cena neste filme, bem como na realidade, facilmente despercebida por bilhões de olhares que não sabem o que aquele momento representa para ele e para o povo de Ruanda. Um cena que bilhões de pessoas viram, como eu, sem saber que naquela olimpíada Adrien corria pela esperança de seu povo num futuro melhor que apenas o fato de estar ali era para si uma vitória, algo que comumente pensamos nestes momentos olímpicos sem imaginar a realidade que há por trás de singulares momentos como este até a vermos como neste documentário.
Dirigido por T.C. Johnstone e produzido por Forest Whitaker, este documentário mostra o desenvolvimento da equipe de ciclismo de Ruanda, um país devastado por um genocídio em 1994 que entrou para a história como um dos mais sangrentos, com quase um milhão de pessoas mortas a facadas e porretes em três meses quando os hutus se rebelaram contra os tutsis, uma minoria que ascendeu ao poder a partir dos colonizadores belgas, os mesmos que os dividiram os habitantes de Ruanda nestes dois grupos conforme a cor dos olhos e o tamanho do nariz em sua política colonizatória segregando os hutus das políticas do país. Em meio a este contexto histórico dos mais tristes na década de 90, outro fato interessante deste documentário é que o treinador da equipe é Jacques (Jack) Boyer, o primeiro ciclista americano a partir do Tour de France e que foi condenado a prisão por "comportamento lascivo com uma menor" e passou um ano preso e 5 em condicional.
Talvez vejamos neste documentário mais um filme sobre a superação de povos africanos em esportes incomuns a eles, como os retratados em filmes como a comédia como Jamaica abaixo de zero ou como no drama Invictus. Diferente destes, Renascidos das cinzas não é um filme de ficção, apesar de seu roteiro ser digno de um e tão bom quanto Invictus, com um final não menos surpreendente. Como um documentário, ele não pretende divertir ou emocionar, mas mostrar o que aconteceu numa determinada época, com algumas pessoas, deixando-nos o olhar aberto para o que pudermos pensar sobre ele. Mas muitas vezes, isto não é o que acontece, e esta é a diferença também deste filme pois é difícil não sentirmos nele a mesma emoção que temos em filmes cuja pretensão é nos fazer rir ou nos emocionar, e nos faz sentir até mesmo emoções maiores que filmes de ficção, como foi em relação a mim Nascidos das cinzas.
A primeira e principal emoção que este filme nos desperta é o sofrimento sem o qual, diz Jacques, ninguém pode ser ciclista e do qual nenhum ciclista escapa. Um sofrimento que ele vê estampado nos olhos dos cinco ciclista escolhidos primeiramente por ele para compor a equipe de Ruanda. Ciclistas que viram de perto a morte de seus parentes no genocídio que acontecera em 1994 e do qual muitos não falam tamanho o sofrimento vivido por eles e que pode ser resumido em outra frase de Jacques sobre Adrien Niyonshuti, o principal ciclista da equipe: "Adrien subiu na bike para fugir do passado que o persegue."
Não apenas Adrien fez isto, porém, mas todos eles, incluindo Jacques, depois da prisão que encontrou no ciclismo uma forma de fugir de seu próprio passado, não apenas da cadeia, mas também familiar, de quando seus pais se separaram e ele se viu só como muitos dos integrantes da equipe tendo se responsabilizar por sua própria vida com sua mãe. Um passado que o fez se unir à equipe de ciclismo e principalmente a Adrien no sofrimento de terem perdido já muito em suas vidas.
Sofrimento é a emoção predominante no ciclismo e neste filme sobre um esporte do qual esperamos poucas emoções comparadas a de outros esportes em lances memoráveis a cada momento ou em momentos decisivos. Não há muito o que se vê e talvez nos perguntemos mais profundamente se se trata mesmo de um esporte subir numa bicicleta e pedalar o quanto pode e o mais rápido possível. Bem como poderíamos nos perguntar o que há de importante para se ver em uma equipe de ciclismo de um povo africano sem nenhuma estrutura nem mesmo para oferecer equipamentos decentes para atletas de ciclismo.
Em cada esporte, porém, há algo que o torna sublime tal como Kant definia esta palavra. Um momento em que ele deixa de ser uma habilidade ou competência que muitos podem adquirir para se tornar algo que somente poucos conseguem e ser como estes poucos ou melhores do que eles se torna o grande objetivo. No ciclismo não seria diferente e o que define a sublimidade deste esporte não é saber andar de bicicleta mais rápido ou por mais tempo do que outros, mas saber resistir física e mentalmente às adversidades que cada caminho põe às pedaladas. O ponto em que alguém consegue resistir ao sofrimento é o que define quem vence e, neste sentido, talvez podemos dizer que todos que cruzam a linha de chegada são vencedores, mesmo não ganhando medalhas, pois resistiram o quanto puderam a tudo que lhes aconteceu no percurso.
A equipe de Ruanda se tornou vitoriosa a cada vez que conseguiu chegar à linha de chegada por superar a cada caminho e seus obstáculos o passado de sofrimento que a persegue todos os dias. Um passado que é aliviado por organizações não-governamentais, mas que também é aumentado em seu sofrimento a cada momento em que estas organizações deixam o país entregue a própria sorte como o encontram sem conseguir mudar a realidade dele. Um passado que aumenta em dor a cada separação e a cada momento em que o povo de Ruanda se vê abandonado pelo resto do mundo como pelo seu próprio governo.
Unidos pelo sofrimento a equipe de Ruanda não é uma equipe de ciclismo apenas, mas um povo unido em sua dor, mas principalmente em sua esperança. Em cada pedalada é o passado que eles tentam deixar para trás sem conseguir evitar pneus furados ou correntes quebradas no meio do caminho atrapalhando seus objetivos, como quando Adrien tenta conseguir uma vaga na olimpíada de 2012, em Londres. Um dos momentos mais emocionantes deste documentário que mostra como assim como uma equipe um povo não vive sem que cada um comungue da dor do outro e o tente ajudar abdicando muitas vezes de seu próprio sonho.
A esperança de conseguir uma vaga nas olimpíadas não é para a equipe de Ruanda um sonho, mas uma realidade que eles perseguem de mudança para si mesmos, mostrando para si mesmo que são capazes de conseguir seus objetivos. É a vitória de uma corrida em que a esperança move pernas e pés com mãos, tronco e cabeça impávidos descortinando o vento, o maior obstáculo de um ciclista, inimigo invisível que fustiga os olhos fazendo perder o foco e adormece o corpo e a alma com sua força. Vento que não consegue vencer Adrien, a quem Jacques escolhe para equipe por sua calma e paciência, virtudes incomuns para um ciclista, talvez se pense em sua preocupação em ser mais rápido ou mais forte do que outros, e cujo louro da vitória vem quando ele sustenta solitário na pista de atletismo na abertura das Olimpíadas de Londres a bandeira de seu país, porém com a força de sua equipe que o ajudou a chegar ali e de um povo que o assiste a milhas de distância e o ajuda a seguir em frente como ele o faz a cada vez que pedala em sua bicicleta.
Difícil descrever a importância desta cena neste filme, bem como na realidade, facilmente despercebida por bilhões de olhares que não sabem o que aquele momento representa para ele e para o povo de Ruanda. Um cena que bilhões de pessoas viram, como eu, sem saber que naquela olimpíada Adrien corria pela esperança de seu povo num futuro melhor que apenas o fato de estar ali era para si uma vitória, algo que comumente pensamos nestes momentos olímpicos sem imaginar a realidade que há por trás de singulares momentos como este até a vermos como neste documentário.
Nenhum comentário: