O mestre e o discípulo

A grande virtude de um mestre é ensinar. A de um discípulo, aprender. Quando estas duas virtudes se encontram há um movimento aberrante, para usar um termo de Deleuze no qual se deteve ontem David Lapoujade na apresentação deste termo e de seu livro " Deleuze: os movimentos aberrantes" na galeria Antônio Bandeira do Centro Cultural Banco do Nordeste.

Como aluno de Deleuze e amigo dele, Lapoujade fez sua apresentação com a voz pausada do mestre medindo as palavras para que elas tenham o efeito desejado, ainda mais por ter ao seu lado como tradutor Laymert Garcia dos Santos, quem traduzira recentemente seu livro Deleuze: movimentos aberrantes. Falar pausadamente é a virtude de um mestre que procura no movimento de sua fala fazer escutar-se não pela força da voz, mas pelo pensamento, ainda que numa sala tão vasta quanto a que foi proferida a palestra e na qual se ensina muitas vezes, é preciso ter uma voz gutural ou um bom amplificador dela. Ainda também que sem falar a língua dos presentes, ele necessite também de um tradutor que não o traia. Amplificador que, na interlocução do mestre com seus discípulos produz senão um efeito díspar que é o de aumentar o som da voz nos ouvidos dos discípulos e ao mesmo tempo diminuí-la na boca do mestre fazendo-o falar mais suave e calmamente. O tradutor, por sua vez, não produzindo um efeito menos díspar ao trair, ao mesmo tempo, sua língua ao traduzir sua língua para a do outro e a do outro para seus a seus ouvintes.

Fazer-se escutar por seu pensamento, porém, não é algo simples e por isto somente algumas pessoas conseguem, pois nenhuma força ou tecnologia que aumente a potência de uma voz consegue que a faça escutar como o pensamento faz, diante do qual força e tecnologia são, senão, impotentes para se fazer ouvir o pensamento. Ao fazer-se escutar diante dos presentes pelo pensamento mais do que pela força das palavras ou do amplificador de som, David Lapoujade falava como Deleuze, como um mestre a seus discípulos, mostrando-lhes caminhos em sua voz, orientando o pensamento para aquilo que um mestre quer fazer os discípulos ouvirem e que, muitas vezes, não é a si mesmo, mas a outro mestre, do qual ele foi discípulo, e assim continuar o devir do pensamento. E deste modo Lapoujade também se punha como discípulo fazendo seus discípulos no momento ouvirem Deleuze por meio de sua boca como se bebessem por meio dela da fonte da qual os discípulos se distanciam e querem estar ao mesmo tempo tão próximos em seus ouvidos.

Ouvir não é menos fácil do que falar e a virtude dos discípulos não é ouvirem bem as palavras do mestre repetindo-as como ele as disse, religiosamente. É ouvir seus pensamentos em diálogo com os do mestre numa frequência que não é a da voz, mas do próprio pensamento. Uma frequência que somente ele pode ouvir no encontro da boca com o ouvido à distância, do som com o tímpano, passando a seu ouvido interior onde a voz se perde num labirinto e discípulo e mestre se desencontram, muitas vezes entrando em conflito. Nada que uma boa conversa não resolva.

Ao ouvir um mestre, o discípulo aprender tudo que ele sabe, mal sabendo que isto não é possível. Assim como o mestre busca explicar tudo que sabe, mal sabendo que tudo que sabe não pode ser explicado pelas palavras, ainda que ditas com amor ou com uma justa indignação. Mestre e discípulos sempre estão em busca um do outro, mas nunca se encontram de fato, apenas em pensamento e quando mais nada a ser dito entre eles. Quando o som já não se faz presente e o silêncio invade a conversa que entretém agora sozinhos em seus pensamentos, quando um faz pensar o outro e, em pensamento, ambos pensam juntos, caminham peripatéticos em suas mentes.

Há discípulos que seguem o mestre e vão com ele para onde for, como era o caso de Platão e outros que seguiam Sócrates tentando reter de sua voz o máximo que podiam e, quando não conseguem, desesperavam com sua ignorância, como fazia Alcibíades. Outros, se distanciam do mestre, construindo seu próprio pensamento em amabilidade com o dele, como fez Aristóteles em relação a Platão. Os primeiros tentam sempre se religar ao pensamento do mestre falando como que por sua boca palavra por palavra tudo que ouviram como Sócrates pede mesmo que seus interlocutores falem algumas vezes e eles mesmos querem falar o que ouviram nos mínimos detalhes. São religiosos buscando na palavra do mestre uma fonte ou a origem de seus pensamentos, tentando se orientar sem conseguir senão com a voz do mestre a dirigi-los pelo bom ou mau caminho. Os segundos tentam se distanciar o máximo que podem do mestre sem saber que quanto mais se distanciam mais se ligam a eles num movimento aberrante do pensamento, buscando orientarem-se por si próprios, mas isto somente sendo possível quando ouvem o mestre não a viva voz, mas à distância em seu íntimo, e ao mestre reverenciam por lhes fazer aprender, no caso, aprender a pensar por si próprio, como um filósofo.

David Lapoujade é, senão, o segundo tipo de discípulo e ao ouvi-lo falar sobre si e sobre Deleuze, mestre e discípulo, portanto, se punham ali ao mesmo tempo num movimento aberrante que somente o pensamento pode entender, ainda que não o compreenda totalmente, pois entender é já colocar-se do ponto de vista do outro, sem a necessidade de compreendê-lo totalmente, o que não é possível de fato, dando a ele o direito de ser o que é, em seu corpo, pensamento e povo, pois é isto que um mestre ensina a seus discípulos quando lhes ensina a filosofia, o direito de ser ao mesmo tempo mestre e discípulo do seu próprio pensamento e saber que nunca está só, pois sempre haverá amigos do saber que o acompanhem no silêncio de sua mente.

Um comentário:

Tecnologia do Blogger.