Corrupção: um problema de todos

Há mais de um ano no Brasil, todos os dias, o café da manhã, o almoço, o jantar e os lanches a cada intervalo de refeições são a corrupção da Petrobras investigada pela operação Lava-jato que envolve políticos de vários partidos e empresas multinacionais brasileiras, um caso sui generis tendo em vista a amplitude que ele tem tomado para demonstrar as entranhas da corrupção no país que não é nem vai ser apenas o problema de um partido, de algumas pessoas, ou de um país, o Brasil, como se pretende demonizar, mas um problema a todos os seres humanos a cada momento e desde o início dos tempos, pode-se dizer.

O que define propriamente a corrupção é a submissão dos interesses públicos, coletivos, de todos, da sociedade, a interesses privados, de alguns poucos, particulares, individuais. É o que está na raiz do problema da corrupção da Petrobras que por mais complexa que seja em seu modus operandi demonstra esta simplicidade que qualquer pessoa em seu simples cotidiano consegue entender e muitas vezes partilha em pequenas atitudes semelhantes a dos políticos e empresários envolvido em busca de obterem uma vantagem para si em detrimento dos outros. É o pecado original do ser humano, por assim dizer, sacrificando o paraíso aos seus interesses particulares representado pelo fruto proibido, seja ele qualquer for e por mais que exista apenas como mito judaico-cristão.

O que se coloca de modo mítico não deve ser negligenciado. Toda e qualquer religiosos tem como pressuposto o sacrifício do privado em relação ao todo, no caso, um poder absoluto, o poder de um deus. Em princípio, isto quer dizer que a relação religiosa entre os seres humanos e Deus com suas leis próprias visa estabelecer uma sociedade a partir de princípios morais religiosos que tem como principal objetivo senão lembrar a corrupção dele a partir do pecado original e evitar a corrupção novamente dele a partir desta lembrança religando-o a Deus, mas também à sociedade. Não importa, neste sentido, a religião que se professe, pois, em qualquer delas, há um pecado original que promove a ruptura dos seres humanos com Deus e a necessidade de restabelecerem esta ligação como ele pela religião, o que isto é promovido com a assunção de comportamentos culturais e sociais e leis de Estado a partir de princípios religiosos.

De um ponto de vista religiosos, o paraíso perdido representa também uma ordem natural que, enquanto tal, foi rompida pela ação humana. A questão desta ordem natural está muito presente no modo como os primeiros gregos viam a natureza, muito particularmente a partir de sua ordem social, como pressupõe Jean-Pierre Vernant. Apesar das diferenças entre a corrupção humana em relação à ordem social e a corrupção natural em relação à ordem da natureza, o que se coloca em questão é o mesmo princípio de que a corrupção é a submissão do todo em detrimento do particular.

Em seu texto, Da geração à corrupção, Aristóteles demonstra claramente como o problema da corrupção se coloca na natureza, por corrupção ele entendendo justamente a degeneração dos seres em sua substância, isto é, no que são propriamente, ou ainda, em sua ordem natural. Algo que é, segundo esta mesma ordem natural, inevitável haja vista um devir do seres na natureza, o que demonstra que a corrupção é inerente ao ser natural, em contrapartida também, ao ser humano, pois assim com tudo se gera, tudo se corrompe, ou degenera, e cabe senão se tentar entender como isto acontece, como ele tenta fazer neste texto.

A virtude de Aristóteles, principalmente, em sua ética, foi perceber que assim como acontece uma corrupção inevitável da ordem na natureza, também na sociedade isto também acontece em meio aos vícios que os seres humanos estão submetidos. Não por acaso, por sua vez, as virtudes consistem em em sua ética numa pequena parcela de ações do seres humanos, quando atingem um meio-termo necessário, mas dificilmente alcançável em relação aos vícios das carências e excessos aos quais tendem o ser humano naturalmente. Vícios que Thomas Hobbes viu como o princípio fundante da sociedade na medida em que determinar que o homem no estado de natureza é mau, isto é, que num estado originário anterior a qualquer forma de sociedade, desprovido de leis e uma ordem que o regre, livre para fazer o que quiser, o homem é, por natureza própria, lobo de si mesmo e não um cordeiro religioso, pode-se dizer.

Mais do que se tornar corrupto segundo um mito qualquer, ou estar em meio à geração e corrupção da natureza, o que se coloca em Hobbes é que o homem é corrupto por natureza ao submeter sempre os interesses coletivos aos seus interesses privados e que um contrato social e o estabelecimento de uma sociedade por meio de um Estado soberano e absoluto, totalitário e ditatorial em sua forma mais recente, capitalista e comunista, é a única forma de se evitar a sua corrupção inerente. Neste sentido, se novamente se coloca na teoria política moderna de Hobbes aquilo que a religião e a teoria política natural antiga colocavam, isto é, a prevalência de um todo, religioso, natural ou social, sobre os seres humanos em particular, porém, não é Deus, a sociedade ou a natureza que representam o bem necessário a ser conseguido, mas um monstro, o Leviatã, ou ainda, um mal necessário a ser admitido para se evitar o estado de natureza humano, no caso, o Rei em sua liberdade e vontade soberana e absoluta na forma de Estado despótico como representante político a limitar a liberdade e vontade de todos, já que todos os seres humanos não conseguiriam limitar a si mesmo num estado de natureza.

Afora, a questão óbvia de como o rei e o Estado absoluto e soberano conseguiriam evitar eles mesmos um estado de natureza também deles ou do que viria a ser Estado soberano e absoluto na realidade, cuja demonstração se viu no último século, com o surgimento deste Estado nas formas dos Estados totalitaristas fascistas, nazistas e socialistas, bem como dos Estados ditatoriais capitalistas, que seguiram a teoria política hobbesiana, o que se coloca em questão é que o estado de natureza tal como pensou Hobbes hipoteticamente em sua ciência política é mais uma descrição da sociedade humana tal como ela se estabelece a partir de uma apropriação privada capitalista insurgente na Europa, mas não necessariamente natural a ela, do que a descrição dos seres humanos em um estado de natureza anterior a estas condições. Mais ainda, que é a corrupção da sociedade a partir de uma apropriação privada que se coloca como problema no início da modernidade de modo econômico político que, todavia, não era vista como um problema, mas solução na medida em que o egoísmo era um mal necessário à economia capitalista tanto quanto o Estado soberano absoluto a um política. Porém, como se mostrou este não sendo um mal necessário à sociedade capitalista insurgente na época em seu egoísmo particular que Hobbes tentava senão enfrentar com seu Rei-Leviatã, já que o Rei-divino, já não dava conta disto.

Como percebeu muito bem Rousseau, portanto, a corrupção não é inerente ao homem, mas algo a que ele se submete a partir do momento em que ele estabelece a sociedade a partir de uma apropriação privada. Isto porque, segundo ele, em seu estado de natureza, o homem é bom, um bom selvagem, tal como ele entendia tendo em mente e imaginação os recém-descobertos habitantes do Novo Mundo, da América, que viviam em comunidade entre si e com a natureza, portanto, sem todos os vícios da sociedade capitalista, da sociedade antiga e do mito e religião antigas europeias. Um homem que vivia, e ainda vive na medida do possível, integrado à natureza, à sociedade e a Deus de uma forma totalmente diferente da cultura e leis que se tinha até então. Um homem que era um bom selvagem porque tinha vivido até então à margem de toda a religião, filosofia e ciência, natural, social e política, que existia em diversas partes do mundo então conhecido. Um homem que, como se percebeu empiricamente foi corrompido pela sociedade europeia tal como Rousseau demonstrara hipoteticamente, posto que foi submetido a ela totalmente à medida em que suas terras foram invadidas pelos europeus e tornadas propriedade privada deles, submetidos ao egoísmo e ao Estado soberano absoluto como mal econômico político necessário ao desenvolvimento do velho mundo europeu.

Apesar dos indígenas americanos não serem o bom selvagem que Rousseau imaginara em muitos de seus aspectos, é obvio que eles não partilhavam da corrupção econômico política capitalista que surgia na Europa refreada de modo duro pelo Estado absoluto e soberano em princípio, depois atenuada pelo Esta liberal. Imersos, porém, dentro do egoísmo capitalista e regidos pelo Estado europeu, pouco a pouco, os indígenas foram sendo transformados em civilizados e cidadãos deste Estado e, também foram adquirindo formas de corrupção para manterem suas culturas. Pois, obrigados a admitirem o domínio cultural e político que não fora definido por eles, encontraram senão meios de sincretizar isto a seu favor, o mesmo acontecendo com os negros que aportaram aqui com a escravidão e que já não aconteceu com os europeus que imigraram para a América com o declínio econômico político da Europa.

Regidos por um Estado que lhe era distante não apenas em quilômetros, mas em interesses econômicos políticos, o contrato social formado a partir da colonização deixava claro que a sociedade em formação era algo alheio a ele. Não havia, como não há ainda, hoje, por exemplo, no Brasil, nenhuma empatia entre o Estado como unidade e totalidade social e a sociedade que se submete a ele, posto que não há nenhum benefício social amplo que torne possível isto. Isto porque, desde o início da formação do Estado brasileiro, a corrupção, isto é, a submissão dos interesses públicos em detrimento dos privados, e não o contrário, foi o modo de organização política da sociedade em relação ao Estado, desde sua independência até os dias de hoje.

Tal corrupção da sociedade em termos políticos em relação ao Estado se pode perceber na Independência do Brasil, quando os interesses políticos de alguns fizeram D. Pedro I ficar no Brasil, e quando os interesses deste se tornaram mais importantes do que o Brasil, o fizeram sair. Se viu os mesmos interesses privados agirem novamente com o seu filho, empossado aos 5 anos de idade, envolvidos desde cedo com os interesses privados da então elite brasileira, com a Proclamação da República do Brasil, com militares alçados ao poder e que se mantiveram nele o quanto puderam favorecendo os interesses privados, não apenas seus, mas dos que o queriam no governo em detrimento do público, estabelecendo o lema que marcaria a maior ruptura ideológica do Estado com a sociedade, Ordem e Progresso, o qual seria estampado na bandeira brasileira como insígnia de toda a corrupção do país. Isto porque ele se manteria até hoje apenas como lema, tão exterior como o Estado português ao Brasil colônia em empatia, assim como o Estado brasileiro e suas diversas instâncias de governo estatais em relação à sociedade.

Importado da França, o lema Ordem e Progresso, demonstra que a corrupção no Brasil se estabelece como total contraponto a isto, pois, celebrado como ideal da sociedade brasileira, o que se tem historicamente acontecido no Brasil é a corrupção deste lema em detrimento de interesses privados em todos os momentos da história do Brasil, de pouco mais de cem anos efetivamente como Estado independente. Boa parte deste período governado por interesses militares em obterem benefício a si próprio, como no período inicial da república, mas também durante os 20 anos de ditadura brasileira, ainda que digam que foi para o "bem" do país. E a outra parte restante, tal ordem e progresso sendo apenas o de uma região em específico, a sudeste, com um desenvolvimento aos pouco da sul do país, as restantes praticamente constituindo um país a parte ante os privilégios destas regiões em vários aspectos ao longo da história, desde a política café com leite ao governo do próprio país instaurado na "cidade maravilhosa".

Diante da corrupção desta Ordem e Progresso que deveria ser comum a todos do Brasil e não apenas para os sulistas, nada mais a esperar do que a mesma corrupção se instaurasse nas outras regiões do país, nas quais os interesses privados de famílias oligarcas e coronelistas valem mais até hoje do que os interesses públicos, de todos. Nada mais a esperar também que, diante disto, pobres não vejam nos "poderes públicos" senão uma forma de conseguirem seus poucos privilégios, como ser o primeiro a ser atendido nos serviços públicos por meio de pagamentos, isto é, propinas, ou enriquecer com o pagamento destas, e sempre reclamando pela falta de ordem e progresso, como os demais habitantes da terra brasilis, tão ansiosos pelo governo público, mas preocupados com os seus interesses privados.

O que isto nos leva a uma questão central em relação à corrupção instalada no país que não foi descoberta pela Lava-jato, isto é, que ainda vive plenamente na vida de cada brasileiro cotidianamente e ele faz crescer o máximo que pode. Tal questão é uma questão ética que se coloca plenamente agora com todo o vigor, mas tende a ser escamoteada por ideologismo partidários e suprapartidários fascistas, que é a de que enquanto se buscar um favorecimento particular em detrimento dos favorecimentos públicos, de todos, não por menos corrupção do ideal de Ordem e Progresso evocados na bandeira brasileira estará presente.
Ideal advindo do filósofo francês Auguste Comte que tinha como princípio o amor que vinha anterior à ordem e o progresso e foi suprimido da bandeira, corrompendo-se o lema dele, que manifestava no ideal comteano a coordenação das ações individuais e coletivas, isto é, uma relação do particular com o público, e não por menos o interesse daquele em manter este e não o contrário. Bem como foi corrompido o lema Ordem e Progresso também naquilo que ele pretenderia, que se deve ter em mente sobretudo hoje em dia: "'melhorar conservando', isto é, conservar e aperfeiçoar o que é bom e corrigir e eliminar o que é ruim."

Ao se resgatar estes princípios comteanos fundadores do Brasil e bastantes desgastados com o tempo, não se quer com isto revalorizar uma ordem baseada em princípios militares, tal como é ridiculamente interpretado por muitos, tão pouco um progresso baseado no exclusivismo econômico de alguns empresários e o consumismo de muitos trabalhadores empregados como muitos entendem, menos ainda a religiosidade pressuposta no lema comteano estampado na bandeira brasileira. Ao contrário disto, se busca fazer pensar que a corrupção é um problema ético de todos que vivem na sociedade a cada momento de suas vidas, em cada momento dela tendo que decidir se o que o mais importa são seus interesses privados ou os interesses públicos do país, nação. Pois, enquanto se decidir que os interesses privados, seja dos indivíduos em particular, seja dos Estados em particular, forem mais importante do que os interesses públicos e do país, o Brasil será sempre o país do passado e nunca do futuro, sua ordem e progresso apenas flamulando na bandeira sem representar a ninguém nem quando canta o hino nacional num estádio de futebol.

Enfim, uma sociedade nunca será a soma de interesses particulares, pois ela é senão o contrário, a diminuição dos interesses particulares que todos devem ter em mente se quiser que ela exista, enfim, em harmonia amorosa, ordem e progresso. 

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